
TRANSLINGUAGEM NA EDUCAÇÃO DE SURDOS: UM OLHAR CRÍTICO SOBRE INCLUSÃO E ASSIMETRIA SENSORIAL
Translanguaging in Deaf Education: A Critical Perspective on Inclusion and Sensory Asymmetry
Translenguaje en la Educación de Sordos: Una Perspectiva Crítica sobre Inclusión y Asimetría Sensorial
Isaías dos Santos Ildebrand[1]
RESUMO
Este ensaio discute a translinguagem na Educação de Surdos, analisando seus desafios e possibilidades. Argumenta-se que, se aplicada criticamente, pode favorecer a inclusão linguística; porém, caso negligencie a assimetria sensorial, pode minimizar a ação da língua de sinais. Com base em Lodi (2005), Meulder et al. (2019) e Larrosa, Dorneles & Fischer (2003), enfatiza-se a necessidade de uma abordagem situada, crítica e reflexiva.
Palavras-chave: Educação de Surdos; Translinguagem; Libras; Linguística Aplicada.
ABSTRACT
This essay discusses translanguaging in Deaf Education, analyzing its challenges and possibilities. It argues that, if applied critically, it can promote linguistic inclusion; however, if it neglects sensory asymmetry, it may minimize the role of sign language. Based on Lodi (2005), Meulder et al. (2019), and Larrosa, Dorneles & Fischer (2003), the need for a situated, critical, and reflective approach is emphasized.
Keywords: Deaf Education; Translanguaging; Libras; Applied Linguistics.
RESUMEN
Este ensayo analiza la translingüística en la Educación de Sordos, explorando sus desafíos y posibilidades. Se argumenta que, si se aplica de manera crítica, puede fomentar la inclusión lingüística; sin embargo, si se ignora la asimetría sensorial, puede minimizar el papel de la lengua de señas. Basado en Lodi (2005), Meulder et al. (2019) y Larrosa, Dorneles & Fischer (2003), se enfatiza la necesidad de un enfoque situado, crítico y reflexivo.
Palabras clave: Educación de Sordos; Translingüística; Libras; Lingüística Aplicada.
INTRODUÇÃO
A Linguística Aplicada, como campo interdisciplinar, busca compreender e intervir em questões que envolvem a linguagem na sociedade, especialmente no contexto educacional. A Educação de Surdos tem sido historicamente marcada por disputas ideológicas sobre a legitimidade da língua de sinais e seu papel na formação de sujeitos surdos (Lodi, 2005). Nesse cenário, a translinguagem surge como uma abordagem que propõe o uso flexível dos recursos linguísticos, desafiando fronteiras rígidas entre línguas (Meulder et al., 2019). No entanto, a adoção dessa perspectiva levanta questionamentos sobre seu impacto na valorização das línguas de sinais e na garantia de uma educação verdadeiramente bilíngue para surdos.
Diante desse contexto, a questão central deste ensaio é: como a translinguagem pode ser compreendida no contexto educacional dos surdos sem ameaçar a legitimidade das línguas de sinais? Enquanto alguns teóricos a veem como um meio de ampliar a inclusão linguística, outros alertam para o risco de que essa abordagem enfraqueça o reconhecimento das línguas de sinais como línguas naturais e minoritárias (Meulder et al., 2019). Para explorar essa tensão, é necessário um olhar crítico sobre as implicações políticas e educacionais da translinguagem, especialmente no que se refere à assimetria sensorial entre surdos e ouvintes e ao direito dos surdos à sua própria língua.
Ao adotar uma estrutura ensaística, inspirada na perspectiva de Larrosa, Dorneles e Fischer (2003), este texto não busca apresentar respostas definitivas, mas sim provocar reflexões sobre os desafios da translinguagem na Educação de Surdos. Larrosa, Dorneles e Fischer (2003) criticam a rigidez da escrita acadêmica tradicional e propõem uma abordagem que valoriza a experiência, a subjetividade e o questionamento das normas estabelecidas. Assim, a escrita deste ensaio se propõe a dialogar com diferentes perspectivas, reconhecendo algumas contradições e alguns paradoxos que atravessam esse debate, sem a pretensão de uma única solução ou de uma conclusão fechada.
A seguir, no desenvolvimento, será apresentada a trajetória histórica da Educação de Surdos, destacando o embate entre o oralismo e a língua de sinais, conforme discutido por (Lodi, 2005). Em seguida, será explorada a noção de translinguagem no contexto da comunicação surda, a partir das reflexões de Meulder et al. (2019), considerando seus desafios e potencialidades. Por fim, será retomada a abordagem ensaística de Larrosa, Dorneles e Fischer (2003) para refletir sobre como a Linguística Aplicada pode contribuir para um entendimento mais crítico e sensível das práticas linguísticas na Educação de Surdos.
EDUCAÇÃO DE SURDOS E TRANSLINGUAGEM: TENSÕES, DESAFIOS E POSSIBILIDADES
A história da Educação de Surdos é marcada por disputas ideológicas e políticas que influenciaram profundamente as metodologias de ensino como destaca Lodi (2005). Desde que a oralização foi adotada como abordagem predominante no século XIX, os surdos enfrentaram barreiras linguísticas que limitavam seu acesso ao conhecimento. Enquanto as línguas de sinais eram proibidas nas escolas, a pedagogia centrada na oralidade negligenciava as especificidades comunicativas da comunidade surda. Esse contexto reforçou a marginalização dos surdos na sociedade, de modo que sua educação passou a ser pautada pela tentativa de adaptação ao modelo ouvinte, em vez do reconhecimento de suas singularidades linguísticas e culturais.
A autora (Lodi, 2005) realça sobre o embate entre a Libras e o português reflete a tensão entre a valorização da cultura surda e a imposição da norma oralista. Assim que a Libras começou a ser sistematicamente suprimida, os surdos perderam a possibilidade de se desenvolver plenamente em uma língua natural para eles. Tanto que, por mais de um século, a educação foi conduzida sob a premissa de que a oralização garantiria sua inclusão social. No entanto, essa política não levou em conta as dificuldades de muitos surdos em adquirir o português como língua materna, criando um modelo excludente.
Desse modo, as ideologias linguísticas e educacionais que moldaram essa trajetória baseavam-se em concepções hierárquicas de linguagem, que viam a escrita e a oralidade como superiores à comunicação visuoespacial. Desde que a linguística estruturalista consolidou a noção de línguas “legítimas”, as línguas de sinais foram frequentemente desconsideradas como sistemas plenos. Esse viés foi reforçado por discursos médicos e pedagógicos que associavam a surdez à deficiência, de forma que a Libras foi tratada como um recurso auxiliar, e não como uma língua completa. Apenas nas últimas décadas, com o avanço dos Estudos Surdos e das pesquisas linguísticas, esse paradigma começou a ser questionado.
Enquanto a Libras continua a ganhar seu reconhecimento como língua oficial e fundamental para a identidade surda, a translinguagem surge como um conceito que desafia fronteiras linguísticas rígidas. No entanto, sua aplicação na Educação de Surdos precisa ser analisada criticamente, de modo que não se torne um mecanismo de diluição da língua de sinais em um modelo bilíngue assimétrico.
Nesse sentido, a translinguagem tem sido defendida como uma abordagem situadana Educação de Surdos, pois reconhece a fluidez das práticas comunicativas e a diversidade de recursos linguísticos utilizados por indivíduos bilíngues. Se aplicada de forma consciente e crítica, essa perspectiva pode contribuir para a inclusão e o reconhecimento das múltiplas formas de comunicação usadas por surdos. No entanto, caso seja adotada sem considerar o contexto histórico e sociopolítico da surdez, pode se tornar um instrumento de dominação linguística (Meulder et al., 2019), reforçando a ideia de que a Libras é secundária em relação ao português (Lodi, 2005).
O conceito de assimetria sensorial, discutido por De Meulder et al. (2019), destaca que a experiência linguística dos surdos é diferente da dos ouvintes, pois suas práticas de linguagem estão ancoradas na visualidade. Se a translinguagem for aplicada sem levar essa assimetria em conta, pode acabar legitimando modelos educacionais que favorecem o português falado e escrito, em detrimento da língua de sinais. Do mesmo modo que o oralismo historicamente desconsiderou as especificidades surdas, uma abordagem translinguística mal planejada pode reforçar desigualdades. Portanto, é essencial que qualquer modelo educativo respeite a singularidade linguística e sensorial da comunidade surda.
A defesa da translinguagem pode ser libertadora, pois desafia fronteiras rígidas entre línguas e permite que surdos usem todos os seus recursos comunicativos (Meulder et al., 2019). No entanto, caso seja usada como argumento para diluir a Libras em um sistema híbrido que não valoriza sua estrutura, pode comprometer a luta histórica dos surdos pelo reconhecimento de sua língua (Lodi, 2005). Tal qual ocorreu em abordagens educacionais anteriores, há o risco de que a translinguagem seja apropriada por políticas que favorecem a língua majoritária, enfraquecendo a identidade e a autonomia da comunidade surda em sua própria educação.
Para tanto, assim como a defesa do bilinguismo, a adoção da translinguagem na Educação de Surdos deve ser acompanhada de um olhar crítico sobre as relações de poder que atravessam as práticas linguísticas. Se a proposta for implementada respeitando a língua de sinais como língua primária dos surdos, garantindo sua presença nas salas de aula, materiais didáticos e formação de professores fluentes, poderá contribuir para um ensino que promova o desenvolvimento cognitivo, a autonomia e a participação ativa dos surdos na construção do conhecimento. No entanto, caso sirva apenas para flexibilizar o ensino do português sem garantir espaços formais para a Libras, pode resultar em um retrocesso.
A translinguagem, ao desafiar fronteiras linguísticas, pode ser uma ferramenta pertinente na Educação de Surdos, de maneira que permite a adaptação a diferentes contextos comunicativos (Meulder et al., 2019). Ainda assim, sua implementação deve ser crítica, a fim de que não reforce assimetrias sensoriais nem subordine a Libras ao português. Tão importante quanto reconhecer a diversidade linguística dos surdos é garantir que sua língua tenha um papel central no ensino. Se a translinguagem for aplicada sem considerar o histórico de marginalização das línguas de sinais (Lodi, 2005), corre-se o risco de perpetuar a exclusão educacional dessa comunidade.
A perspectiva bakhtiniana adotada por Lodi (2005) ajuda a compreender que as línguas de sinais sempre existiram em um embate ideológico com as línguas orais, de modo que qualquer abordagem educacional precisa considerar as relações de poder que atravessam essas disputas. A translinguagem, assim como outras práticas pedagógicas, pode ser transformadora, desde que seja utilizada para ampliar o repertório linguístico dos surdos sem descaracterizar sua identidade linguística e cultural. Essa questão exige uma reflexão profunda para que a Educação de Surdos não se torne um espaço de mera adaptação ao modelo ouvinte, mas um lugar de reconhecimento e valorização da diferença.
Por fim, a escrita ensaística, conforme defendida por Larrosa, Dorneles e Fischer (2003), propõe um pensamento aberto e questionador, de maneira que permite explorar essas tensões sem a necessidade de respostas definitivas. A fim de que a translinguagem seja uma aliada da Educação de Surdos, é fundamental que seja aplicada com consciência crítica, garantindo que a Libras permaneça no centro das práticas pedagógicas. Com o propósito de que essa abordagem não se torne um novo instrumento de opressão linguística, é preciso um olhar atento às experiências concretas dos sujeitos surdos, respeitando sua autonomia e assegurando o direito a uma educação situada à realidade das pessoas que se valem da língua de sinais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A questão central deste ensaio foi discutir como a translinguagem pode ser compreendida no contexto educacional dos surdos sem ameaçar a legitimidade das línguas de sinais. Ao longo do texto, argumentou-se que, se aplicada de forma crítica e reflexiva, a translinguagem pode ser uma ferramenta pedagógica situada, capaz de promover a flexibilidade e a inclusão linguística. No entanto, caso sua implementação desconsidere as desigualdades estruturais e a assimetria sensorial entre surdos e ouvintes, pode reforçar a marginalização da Libras no ambiente escolar. Assim como Lodi (2005) aponta a importância do reconhecimento da língua de sinais como fundamental para a identidade surda, Meulder et al. (2019) alertam que a translinguagem não pode se tornar um pretexto para dissolver o estatuto das línguas de sinais em um modelo bilíngue assimétrico.
Dessa forma, a Linguística Aplicada deve manter um olhar crítico sobre como as práticas linguísticas são enquadradas e institucionalizadas. O pensamento ensaístico permite explorar essa tensão sem reduzir o debate a uma resposta única e definitiva (Larrosa, Dorneles & Fischer, 2003). De modo que a translinguagem possa ser uma aliada na Educação de Surdos, é preciso que sua aplicação fortaleça, e não dilua, a presença da Libras nas práticas pedagógicas. Isso implica não apenas reconhecer a diversidade linguística dos surdos, mas também assegurar políticas educacionais que garantam espaços legítimos para sua língua e cultura. A fim de que a Educação de Surdos se desenvolva de maneira situada e adequada a cada realidade, é necessário que a translinguagem seja incorporada de forma reflexiva e crítica, respeitando a autonomia dos sujeitos surdos e o direito a uma educação plenamente bilíngue.
REFERÊNCIAS
LODI, Ana Claudia Balieiro. Plurilingüismo e surdez: uma leitura bakhtiniana da história da educação dos surdos. Educação e Pesquisa, v. 31, n. 03, p. 409-424, 2005.
MEULDER, Maartje et al. Describe, don’t prescribe. The practice and politics of translanguaging in the context of deaf signers. Journal of Multilingual and Multicultural Development, v. 40, n. 10, p. 892-906, 2019.
LARROSA, Jorge; DORNELES, Malvina do Amaral; FISCHER, Rosa Maria Bueno. O ensaio e a escrita acadêmica. Educação & realidade. Porto Alegre. Vol. 28, n. 2 (jul./dez. 2003), p. 101-115, 2003.

[1] Mestre em Linguística Aplicada – UNISINOS. Especialista em Alfabetização pela FURG. Especialista em Educação Especial e Inovação Tecnológica pela UFRRJ. Graduação em Educação Especial pela UFSM. Graduação em Letras pela ULBRA. Graduação em Matemática pela FCE.