O PENSAMENTO DECOLONIAL COMO PERSPECTIVA PARA CONSTRUÇÃO DE UM NOVO CURRÍCULO
Cláudia Luíza A. Gonçalves1
Gabrielle F. Martins¹
Lorrany A. Oliveira¹
Resumo: O presente texto vem discutir a necessidade de problematizar esse movimento de exclusão de diferentes sujeitos como mulheres, negros/as, indígenas, do currículo tradicional e apresentar a perspectiva do pensamento decolonial, que apesar de não ser diretamente uma teoria do currículo é uma perspectiva para mediar a escolha dos conteúdos no intuito da construção de um currículo novo e diverso que objetiva romper com a ideia de hierarquia e subalternização de determinados conhecimentos e culturas. A metodologia utilizada foi uma revisão bibliográfica.
Palavras-chave: Educação; Currículo; Cultura; Decolonialidade;
Abstract: This text discusses the need to problematize this movement of exclusion of different subjects such as women, black people, indigenous people, from the traditional curriculum and presents the perspective of decolonial thinking, which despite not being directly a curriculum theory is a perspective to mediate the choice of content with the aim of building a new and diverse curriculum that aims to break
with the idea of hierarchy and subordination of certain knowledge and cultures. The methodology used was a bibliographic review.
Keywords: Education; Curriculum; Culture; Decoloniality;
Introdução
Tomaz Tadeu da Silva (2007) em seu livro Documentos de Identidade apresenta um panorama acerca da discussão a respeito das teorias do currículo na educação, ele afirma que “A questão central que serve de pano de fundo para qualquer teoria do currículo é a de saber qual conhecimento deve ser ensinado […]
O currículo é sempre o resultado de uma seleção […]” (pp. 14, 15). Nessa perspectiva, assume-se que o currículo é constituído a partir da escolha de um grupo de conhecimentos, estabelecendo aquilo que deve ser ensinado e, consequentemente, o que fica de fora no processo de escolha. Sendo o currículo
construído desta maneira, não é possível assumir que exista uma neutralidade no processo de decisão dos conhecimentos ensinados nas escolas.
Quando analisamos parte dos currículos das escolas ou lembramos de nossas experiências escolares é possível observar que o conhecimento ensinado é um conhecimento elaborado por uma classe social, uma raça e um gênero específico e de um modo europeizado, enquanto aquilo que não se encaixa neste determinado
padrão é excluído do currículo. É possível relacionar a hegemonia dos currículos e este movimento excludente com o que chama-se colonialidade do saber, que consiste no processo de exclusão ou subalternização de epistemologias fora do eixo europeu e dos padrões brancos e majoritariamente masculinos, fruto do processo de colonização sofrido por diferentes povos.
Nesse horizonte, é necessário problematizar esse movimento de exclusão de determinados conhecimentos, entendendo que o currículo é um campo de disputa e poder que precisa ser pensado de outros modos, a partir de outras visões e concepções acerca das diferentes culturas. Existem diversas teorias que elaboram essa problematização, com o objetivo de romper com o lugar de subalternização
imposta a determinados grupos e criticam a postura excludente do currículo tradicional. A proposta do presente trabalho é apresentar a perspectiva do pensamento decolonial, que apesar de não ser diretamente uma teoria do currículo é uma perspectiva para mediar a escolha dos conteúdos e a elaboração de um currículo novo e diverso.
Reflexões sobre uma perspectiva decolonial do currículo
Ao direcionarmos nossa atenção para discussões a respeito dos currículos escolares e também acadêmicos nota-se que é crescente a problematização do fato de que muitos dos currículos reforçam e colaboram para manutenção de um pensamento colonial, hegemônico e excludente. Tomaz Tadeu da Silva (2007) sinaliza em Documentos de Identidade que ao analisarmos as teorias do currículo é
fundamental compreender que na construção dos currículos também está intrínseco às relações de poder e dominação que são impostas na sociedade. Nesse horizonte, refletir a respeito daquilo que escolhemos ensinar à luz de um pensamento que se coloque enquanto resistência à manutenção da hegemonia é fundamental para construção de uma educação inclusiva, rica e diversa. Abordar a diversidade e as
diferentes formas culturais é essencial para enfrentar o silenciamento imposto ao longo dos anos a diferentes grupos minoritários.
O pensamento decolonial procura desafiar as estruturas coloniais persistentes, questionando e reconstruindo narrativas históricas, sociais e culturais.
Em um contexto educacional, isto significa repensar o currículo para incluir diversas perspectivas, valorizando diferentes conhecimentos produzidos por diferentes povos.
Existem vários intelectuais indígenas que contribuem muito para discussões acerca do movimento de decolonizar o pensamento e os currículos. Pensar um currículo decolonial, requer mudar a forma em que compreendemos a construção dos saberes e práticas educativas, neste processo é fundamental a desconstrução de estereótipos negativos e equivocados que o pensamento colonial sustentou ao longo dos anos.
Um bom exemplo para pensarmos um novo currículo no horizonte decolonial é o trabalho em sala de aula com a cultura dos diversos povos indígenas, para isso é necessário trazer o conhecimento desenvolvido na perspectiva do protagonismo indígena, sem a ideia de hierarquia e com materiais de referência adequados.
De acordo com Kayapó e Brito as políticas de desestruturação dos povos originários ocorrem desde a invasão dos portugueses em 1500 e se estende até os dias de hoje, o extermínio ocorre atualmente na invisibilidade que é imposta até mesmo nas escolas, local que deveria ser de valorização e promoção da diversidade.
Os currículos não privilegiam a história dos povos originários, além de continuar reforçando estereótipos como apontam os autores: “Deste modo, a escola criou historicamente o mito do índio genérico – que fala Tupy, adora Tupã, vive nu nas florestas etc, representado nas escolas repleto de estereótipos, sobretudo, por ocasião do dia 19 de abril, data comemorativa do dia do índio.”
A implementação da Lei nº 11.645/2008, que define a inclusão das temáticas Afro-brasileira e Indígena no currículo oficial da rede de ensino visando a promoção da diversidade étnico-racial e as contribuições dos povos negros e originários para formação cultural do país, surge como ferramenta de combate ao racismo e discriminação quanto a diversidade existente no Brasil. A lei é um marco histórico
de grande relevância, mas que não garante uma sociedade igualitária e consciente na formação da identidade brasileira. Mesmo com a obrigatoriedade da presença destes conteúdos no currículo, muitas vezes o trabalho não é realizado, ou é explicado carregado ainda de um pensamento estereotipado e preconceituoso. É necessário a real inclusão nos currículos com conteúdos programáticos que garantam
a efetivação transversal com as demais disciplinas, formação adequada dos profissionais da educação além de materiais e produções que contemplem a diversidade étnico-racial, principalmente os produzidos por autores negros e indígenas, o chamado “nada sobre nós, sem nós”.
O estudo de teorias decoloniais é uma alternativa para mudança do pensamento estrutural. Aplicar o pensamento decolonial ao currículo, a história, a cultura e a sabedoria indígenas, por exemplo, podem ser trabalhadas de forma mais aprofundada e desvencilhada do pensamento e da compreensão colonial que muitas vezes perpassa o ensinamento de diferentes culturas. Isto inclui identificar e respeitar as formas tradicionais de conhecimento, bem como aproximar-se criticamente das perspectivas coloniais dominantes rompendo com a ideia de hierarquia na construção do conhecimento. A proposta não seria excluir aquilo que está presente no currículo tradicional, mas pensar estes conteúdos de maneira crítica e trabalhar também conteúdos que fogem do padrão que predomina. O currículo resultante promove uma
percepção mais abrangente e equitativa da diversidade cultural, auxiliando para mudança no ensino e a construção de uma educação mais inclusiva e respeitosa. É importante ressaltar que o processo de construção de um currículo pensado na perspectiva decolonial, é um processo contínuo de reflexão e adequação e deve ser produzido em colaboração de toda sociedade educacional, assim respeitando e
valorizando as diferentes perspectivas e disciplinas.
O ponto de partida para a construção de um currículo decolonial é dado pela identificação de que o racismo é estrutural, ou seja, encontra-se e se renova frequentemente em todas as áreas da nossa comunidade, está presente na estrutura e no pensamento consequência do processo de colonização sofrido por diferentes grupos. O intelectual Silvio Luiz de Almeida, em seu livro Racismo Estrutural aponta
que:
O racismo é elemento constituinte da política e da economia
sem o qual não é possível compreender suas estruturas […] a
ideologia da democracia racial produz um discurso racista e
legitimador da violência e da desigualdade racial […] Portanto,
não é o racismo estranho à formação social de qualquer Estado
capitalista, mas um fator estrutural que organiza as relações
políticas e econômicas. (ALMEIDA, 2019, p.141)
Para mudança e resistência contra esse modelo estrutural é necessário empenhos antirracistas que caminhe em sentido contrário a essa conduta. O combate contra o racismo pode se dar de diferentes maneiras na educação: O estudo e reflexão acerca do genocídio e de populações afrodescendentes e indígenas, as escolas tornarem-se parte de uma rede extensiva de acolhimento dos estudantes e
das suas famílias, auxiliando a promover os seus direitos e, sobretudo, a construção de um conhecimento crítico e aprofundado acerca do apagamento, na história, da civilização e da identidade de um povo visando modificar essa realidade abrindo espaço para um nova forma de ensinar a história e os conhecimentos desenvolvidos por outras culturas.
A particularidade de um bom currículo decolonial é a sua preparação coletiva.
Isto significa que educadores e administradores, devidamente formados e apoiados pelo Ministério da Educação, precisam ouvir os alunos, as famílias e os funcionários e trabalhar em conjunto para construir projetos de políticas pedagógicas (PPP) nas escolas a partir de uma perspectiva antirracista. Sem o diálogo e engajamento de toda a comunidade escolar, implementar um currículo crítico, novo e diverso torna se muitas vezes uma tarefa difícil para professores individuais, sem interdisciplinaridade, e em momentos muito específicos, com os alunos incapazes de encontrar neste trabalho uma ligação interpessoal.
Para transgredir a matriz colonial a descolonização da mente é essencial, visto que se trata de uma libertação dos padrões cultural e intelectual reproduzidos ao longo dos anos na perspectiva dos colonizadores. Não sendo apenas limites geográficos, mas que permeia a mente e ações dos colonizados se perpetuando de forma naturalizada. É preciso romper, problematizar as estruturas de poder e
narrativas históricas eurocêntricas. Essa descolonização da mente promove a diversidade e valorização das culturas, privilegia também as tradições locais além da valorização das vozes que foram marginalizadas no processo histórico de narrativa unilateral. A descolonização da mente proporciona múltiplas perspectivas e formas de conhecimento, bem como defendem Kayapó e Brito sobre a Lei 11.645/2008 que, conforme os autores rompe com a visão apenas do colonizador no ensino de história
e para isso a mente precisa também ser descolonizada:
Abre novos horizontes para o ensino da História e cultura dos povos
indígenas, possibilitando o rompimento com o silêncio e com a
memória produzida pelos grupos hegemônicos, colocando sob
suspeita o currículo que produz e reproduz a invisibilidade e a
inaudibilidade destes povos, rejeitando o reducionismo de suas
memórias e histórias. (Kayapó e Brito, 2014, p.3)
Descolonizar é um processo contínuo que requer mudanças internas e externas, a partir da escolonização da mente e das práticas educativas ocorre a desnaturalização e o questionamento da importância de um currículo que abarque conhecimentos indígenas, desta forma é essencial interculturalização de forma crítica para descolonizar, conforme pressupõe João Alberto Steffen Munsber, Henri Luiz Fuchs e Gilberto Ferreira da Silva apoiados em Candau:
Entende-se que a denominada interculturalidade crítica, e no seu bojo
mais especificamente a educação intercultural, seja o caminho para
a decolonização em sua essência e amplitude, pois se constitui num
projeto de transformação das relações em todas as instâncias,
enfrentado processos discriminatórios e promovendo o autêntico
diálogo entre culturas. (FERREIRA, FUNCHS; MUNSBER, 2019, p. 11)
Pensar um currículo por uma perspectiva decolonial é pensar um currículo com abordagem diferenciada, antirracista para um mundo onde os outros possam existir e que todos tenham suas histórias e a produção dos seus conhecimentos ensinadas não apenas pela visão eurocêntrica do colonizador “salvador” que proporcionou o progresso. O currículo não deve ser excludente, visto que a história
e cultura indígena, assim como outras diferentes culturas, é viva e não acabou após a colonização. O silenciamento e preconceito com o destino de diferentes povos não pode ecoar, é preciso romper com o pensamento colonial que aprisiona, ampliar o repertório e eliminar os estereótipos criados ao longo dos anos com a valorização cultural e problematização do silenciamento e naturalização histórica que foi imposta de forma intencional na sociedade, questionando o poder dominante.
Considerações finais
O objetivo do trabalho não era perpassado pelo desejo de esgotar aqui toda a discussão, mas abrir espaço para reflexão a respeito da perspectiva decolonial inserida nas discussões a respeito do currículo e dos conteúdos que o compõem. É importante ressaltar que descolonizar o currículo significa questionar a suposta universalidade de qualquer conhecimento, modo de vida e modo de ser em todas as áreas do conhecimento e da prática. E é de extrema importância estarmos atentos ao que e como ensinamos, buscando sempre trabalhar com uma abordagem crítica e reflexiva que reconhece as desigualdades sistêmicas e procura a equidade, e além disso é necessário que a educação supere os estereótipos culturais para trabalhar contra a exclusão de grupos, proporcionando uma verdadeira compreensão
intercultural.
Referências
ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, (Feminismos Plurais / coordenação de Djamila Ribeiro)
BRASIL. Lei 11.645/08 de 10 de Março de 2008. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília.
FLEURI, Reinaldo Matias. OKAWATI, Juliana Akemi de Andrade. (Orgs.).
Descolonizar a Educação: entretecer caminhos de Bem Viver. São Carlos: ed. Pedro & João, 2023.
KAYAPÓ, E.; BRITO, T. A pluralidade étnico-cultural indígena no Brasil: o que a escola tem a ver com isso? Caiacó, v. 15, n. 35, 2014.
SILVA, Tomaz Tadeus da. Documentos de identidade: Uma introdução às teorias do currículo. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2007
UNILASALLE, J. A. S. M.; UNILASALLE, H. L. F.; UNILASALLE, G. F. da S. O currículo decolonial: da reflexão à prática intercultural. Religare: Revista do Programa de Pós Graduação em Ciências das Religiões da UFPB, [S. l.], v. 16, n. 2, p. p.593–614, 2019.
DOI: 10.22478/ufpb.1982-6605.2019v16n2.44085. Disponível em:
https://periodicos.ufpb.br/index.php/religare/article/view/44085. Acesso em: 10 nov. 2023.
1Estudantes do curso de Pedagogia da Universidade Federal de Uberlândia/ FACED,
claudia.luiza@ufu.br, gabrielle.fernandes@ufu.br, lorrany.oliveira@ufu.br,