Crônicas Espiritualidade Margarete Hülsendeger

AS GUARDIÃS DO SAGRADO

AS GUARDIÃS DO SAGRADO

Por vezes sentimos que aquilo que fazemos não é mais do que uma gota de água no mar. No entanto, o mar seria menor se lhe faltasse uma gota.

Madre Teresa de Calcutá

Margarete Hülsendeger
Nos terreiros de Umbanda e Candomblé, o toque dos tambores reverbera com uma força particular, como se o som vibrasse em sintonia com as mulheres que conduzem os destinos da casa. São elas que, com a sabedoria de quem conhece as forças do invisível, assumem a liderança espiritual, personificando uma resistência secular. As mães de santo, figuras centrais dessas religiões, carregam nas mãos e nas palavras o peso de gerações que, por meio da fé, lutaram para preservar seus legados.

Desde os tempos da escravidão, quando o Brasil recebeu milhares de africanos, essas mulheres foram fundamentais para manter vivos os rituais, as crenças e as práticas religiosas de seus povos. A repressão era intensa: os rituais de matriz africana eram vistos como “feitiçaria” pelas autoridades coloniais e, mais tarde, pelo Estado brasileiro. Foi nesse cenário que as mulheres, com sua capacidade de organização e acolhimento, criaram refúgios dentro dos terreiros, cuidando da preservação dos saberes ancestrais. Como resultado, o terreiro tornou-se, ao mesmo tempo, um espaço de fé e de resistência cultural.

Figuras como Mãe Aninha, fundadora do Ilê Axé Opô Afonjá na Bahia, e Mãe Menininha do Gantois, uma das mais respeitadas mães de santo do Candomblé, exemplificam essa liderança. Nos anos 1920, Mãe Aninha enfrentou as autoridades para garantir que os rituais pudessem ser realizados, defendendo o direito de culto das religiões afro-brasileiras. Já Mãe Menininha, com sua doçura e firmeza, conquistou não apenas o respeito de sua comunidade, mas também de intelectuais, artistas e políticos, levando o Candomblé além das fronteiras do terreiro e lutando contra o preconceito. A figura de Mãe Stella de Oxóssi também é emblemática. Líder espiritual influente, ela desmistificou a religião para o grande público, quebrando preconceitos e educando sobre seus valores e ritos. Com mulheres como essas, os terreiros se transformaram em lugares de abrigo, aprendizado e, acima de tudo, resistência.

Essa predominância feminina tem raízes históricas profundas. Enquanto os homens escravizados eram majoritariamente alocados em trabalhos braçais nas lavouras, muitas mulheres trabalhavam nas casas-grandes, onde conseguiam formar redes de solidariedade e transmitir os conhecimentos religiosos. Além disso, as divindades cultuadas nas religiões de matriz africana, como as Iyabás – Iemanjá, Oxum, Iansã, Obá, Nanã –, representam a força do feminino, reforçando a centralidade das mulheres tanto no plano espiritual quanto no cotidiano das comunidades religiosas.

Essas divindades femininas estão intimamente ligadas à vida cotidiana dessas comunidades, e o respeito por suas histórias e atributos reforça o poder das mulheres dentro dos terreiros. Assim como as Iyabás equilibram cuidado e força, as mães de santo desempenham, em suas comunidades, o papel de guiar com sensibilidade, mas também com firmeza, quando necessário. Nos terreiros, elas são as líderes naturais, responsáveis pelos ensinamentos, pelos rituais e, sobretudo, pelo cuidado com os filhos de santo. Esse cuidado vai além do espiritual: abrange o bem-estar físico e emocional, consolidando o poder dessas mulheres como guardiãs da comunidade.

Esse papel de liderança contrasta com a estrutura patriarcal da sociedade, onde as mulheres, por muito tempo, foram relegadas a posições de subordinação. Nos terreiros, porém, o poder é compartilhado entre o masculino e o feminino de maneira harmoniosa, mas cabe às mães de santo a responsabilidade de conduzir os destinos do grupo, tomando decisões sobre os ritos, a vida espiritual e, muitas vezes, até sobre questões materiais dos filhos de santo.

Margarete Hülsendeger – Possui graduação em Licenciatura Plena em Física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1985), Mestrado em Educação em Ciências e Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002-2004), Mestrado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2014-2015) e Doutorado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2016-2020). Foi professora titular na disciplina de Física em escolas de ensino particular. É escritora, com textos publicados em revistas e sites literários, capítulos de livros, publicando, em 2011, pela EDIPUCRS, obra intitulada “E Todavia se Move” e, pela mesma editora, em 2014, a obra “Um diálogo improvável: homens e mulheres que fizeram história”.

Assim, ao observarmos as mães de santo e suas trajetórias, não estamos apenas vendo líderes espirituais, mas testemunhando um legado de resistência que desafia as lógicas de poder estabelecidas. Essas mulheres continuam a enfrentar preconceitos e violências, mas o fazem com a dignidade e a força de quem carrega consigo o peso de uma história ancestral.

Ao entrar em um terreiro, mesmo pela primeira vez, sente-se rapidamente que ali há algo muito maior do que um espaço físico. É um espaço espiritual, guiado por mãos femininas que sabem que cada palavra, cada canto e cada gesto são, em si, atos de resistência. No final, o que se revela é que, nas encruzilhadas entre fé e resistência, são as mulheres que guiam, cuidam e, acima de tudo, preservam o que há de mais sagrado. As mães de santo e as Iyabás nos lembram que o feminino não é apenas um papel de apoio; é o próprio alicerce sobre o qual as religiões de matriz africana se sustentam e florescem, desafiando, até hoje, qualquer tentativa de silenciamento.

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