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UMA PEDAGOGIA ANTIRRACISTA: A DESCOLONIZAÇÃO DE PRÁTICAS PEDAGÓGICAS POR MEIO DA LITERATURA INFANTIL E DO HIP-HOP BRASILEIRO

Júlia Gabriella Alexandre Mota*

RESUMO

O presente estudo surge visando discutir a necessidade de descolonizar as práticas pedagógicas dos docentes, tendo como, base a implementação da Lei 10.639, a legislação que tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas. A partir da utilização de uma literatura infantil com representatividade e protagonismo de personagens negros, e do hip-hop brasileiro, que tem historicamente em seu repertório cultural o processo de vivência, orgulho e luta da negritude, pretende-se colocar em evidência a questão da inferioridade racial, do mito da democracia racial brasileira, e o processo do combate a essas ideologias racialistas através da contação de histórias, tanto por meio da literatura infantil, quanto por meio da musicalidade do rap. Além disso, busca pensar na formação do leitor literário numa perspectiva identitária e antirracista, contribuindo para a formação de identidade e autoestima de crianças negras. A análise efetuada abre possibilidades para pensar o rap na educação e na luta antirracista, onde se faz necessário refletir melhor sobre as noções de cultura e identidade a partir de uma perspectiva crítica, possibilitando uma prática docente antirracista nas escolas públicas brasileiras. O trabalho reúne os seguintes aportes teóricos: Munanga (2000, 2015), Santos (2008), Pereira (2017), entre outros. Quanto à metodologia, consiste em uma pesquisa bibliográfica e uma análise descritiva das seguintes obras literárias infantis: Amoras (2018), de Emicida e  “O Pequeno Príncipe Preto” (2020), de Rodrigo França. E das músicas “Corra” (2018), de Djonga, e “Jóia Rara” (2019), de Cristal.

Palavra-chave: Literatura Infantil, HIP-HOP, Educação Antirracista. Educação.

ABSTRACT

This study aims to discuss the need to decolonize teachers’ pedagogical practices, based on the implementation of Law 10.639, the legislation that made the teaching of Afro-Brazilian and African history and culture compulsory in all schools.  Through the use of children’s literature with representation and protagonism of black characters, and Brazilian rap, which historically has in its cultural repertoire the process of experiencing, taking pride in and fighting blackness, the aim is to highlight the issue of racial inferiority, the myth of Brazilian racial democracy, and the process of combating these racialist ideologies through storytelling, both through children’s literature and through the musicality of rap. It also seeks to think about the formation of literary readers from an identity and anti-racist perspective, contributing to the formation of black children’s identity and self-esteem. The analysis opens up possibilities for thinking about rap in education and in the anti-racist struggle, where it is necessary to better reflect on the notions of culture and identity from a critical perspective, enabling an anti-racist teaching practice in Brazilian public schools. The work draws on the following theoretical contributions: Munanga (2000, 2015), Santos (2008), Pereira (2017), among others. As for the methodology, it consists of bibliographical research and a descriptive analysis of the following children’s literary works: Amoras (2018), by Emicida, “O Pequeno Príncipe Preto” (2020), by Rodrigo França. And the songs “Corra” (2018), by Djonga, and “Jóia Rara” (2020), by Cristal.

Keyword: Children’s Literature, HIP-HOP, Anti-racist Education. Education.

  1. INTRODUÇÃO

Em 2003,  teve-se a criação e institucionalização da Lei 10.639, a legislação que tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas, públicas ou particulares, do ensino fundamental até o ensino médio. Essa Lei, que foi resultado das ações do Movimento Negro, impulsionou a luta antirracista no Brasil. A Lei 10.639/2003 proporciona uma oportunidade de desenvolvimento da ampliação do conhecimento em relação às questões étnicos-raciais, e de estabelecer diálogos sobre diferentes identidades e origens de uma forma positiva. Como afirma Pereira (2017, p. 13):

Essa construção foi possível, em grande medida, graças às articulações estabelecidas, especialmente a partir dos anos 1980, entre setores do movimento negro brasileiro e as diferentes instâncias e/ou organizações do Estado nos âmbitos municipal, estadual e federal, bem como deste com partidos políticos e organizações da sociedade civil.

A partir dessa perspectiva, chega-se em um questionamento: por que ensinar a história africana e afro-brasileira nas escolas? Seguindo essa questão, coloca-se em evidência que o Brasil é uma das maiores diásporas africanas no mundo, tendo-se um grande índice de pessoas pretas e pardas no país. Segundo os dados do estudo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, do IBGE (2022), as populações preta e parda representam, respectivamente, 9,1% e 47% da população brasileira. Dentro disso, deve-se ter uma preocupação no ensino brasileiro em abordar questões étnico-raciais, principalmente pelo fato de que vivemos em uma sociedade estruturalmente racista.

O Brasil é um país extraordinariamente africanizado. E só a quem não conhece a África pode escapar o quanto há de africano nos gestos, nas maneiras de ser e viver e no sentimento estético do brasileiro. Por sua vez, em toda a outra costa atlântica se podem facilmente reconhecer os brasileirismos. Há comidas brasileiras na África, como há comidas africanas no Brasil. Danças, tradições, técnicas de trabalho, instrumentos de música, palavras e comportamentos sociais brasileiros insinuaram-se no dia-a-dia africano. […] Com ou sem remorso, a escravidão foi o processo mais importante de nossa história. […] O escravo ficou dentro de todos nós, qualquer que seja a nossa origem. (Costa e Silva, 2003 apud SANTOS, 2008).

 Tendo-se como perspectiva a necessidade de uma educação que proporcionasse o desenvolvimento de diálogos e aberturas para a problematização do ensino eurocêntrico nas escolas brasileiras, a Lei 10.639/2003 surge como uma possibilidade de trilhar caminhos para a descolonização do ensino e das práticas pedagógicas realizadas em sala de aula, perpetuando uma educação antirracista. Apontando a importância do ensino sobre a história da África e do povo africano e afro-brasileiro, Munanga (2015) aponta: “[…] implementar políticas que visem ao respeito e ao reconhecimento da diferença, centradas na formação de uma nova cidadania por meio de uma pedagogia multicultural.”

Quando se pensa no ensino da história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas brasileiras, normalmente já se remete às atividades ligadas ao 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra, e aniversário de morte de Zumbi dos Palmares. É muito comum as escolas darem atenção às pautas negras exclusivamente no mês de novembro, realizando atividades e programações nesse mês. Contudo, esse reducionismo de abordar sobre a negritude apenas em novembro chega a ser problemático, pois retira o sentido da intencionalidade da Lei 10.639/2003, que é lutar contra o racismo de forma significativa no sistema de ensino brasileiro, sendo algo que deve ser constante, e não apenas no mês de novembro.

Ademais, quando se remete ao ensino da histórica africana nas escolas fora de novembro, como nas disciplinas de História ou Geografia, tem-se um ensino eurocêntrico, estereotipado e depreciativo sobre a população negra, induzindo a uma inferioridade racial. O ensino se remete somente à escravidão no Brasil e a abolição da escravatura, negando a história do povo negro, e resumindo-a apenas ao período de escravidão. Um grande exemplo dessas narrativas eurocêntricas, é o ensino de que a princesa Isabel do Brasil, filha do Imperador Pedro II do Brasil, é a “redentora” que salvou os negros da escravidão no Brasil, por assinar a Lei Áurea em 1888, colocando ênfase no sentimento de “salvação” do branco europeu.  Munanga (2015, p. 10) pontua:

A memória da escravidão no Brasil é ora esquecida ou negada, ora descrita negativamente como uma simples mercadoria ou uma força animal de trabalho sem habilidades cognitivas. A construção da memória da escravidão começa por justificativas ideológicas. Estas apresentam a escravidão como um gesto civilizador para integrar o africano na “civilização humana”.

Por meio disso, chega-se em uma conclusão: quem controla nossas memórias, controla o nosso futuro. O ensino brasileiro estimula a continuação de uma história que não condiz, de fato, com a história do povo negro, e acaba por realizar reducionismos e estereótipos, reproduzir consciente ou inconscientemente os preconceitos que permeiam nossa sociedade. Com isso, compactuando com ideologias racialistas, como o mito da democracia racial brasileira e a inferioridade racial, perpetuando o racismo, e continuando a manter os privilégios sociais, econômicos, políticos e subjetivos da branquitude. A história de um povo é a base para um processo de construção de identidade, e é por isso que as ideologias de dominação perpetuam um ensino racista sobre a história daqueles que foram dominados (Munanga, 2015). Tem-se, então, um caminho a ser trilhado para a mudança da contação da história do povo negro nas escolas.

  1. A LITERATURA INFANTIL COMO FERRAMENTA PEDAGÓGICA ANTIRRACISTA

Quando se reflete sobre a estrutura eurocêntrica em que o ensino brasileiro tem como base, é evidente que a literatura infantil trabalhada nas escolas é majoritariamente branca e europeia, como exemplos comuns, tem-se Chapeuzinho Vermelho ou Branca de Neve, contos originalmente europeus,em suas diversas versões, e por meio disso, as instituições escolares acabam, consciente ou inconscientemente, por meio do currículo e das obras literárias trabalhadas em sala, reforçando os ideais de estética racistas: o branco e loiro europeu visto como superior e almejado, enquanto o fenótipo negro (cabelos cacheados/crespos, nariz e boca grande) é considerado feio e inferior, sendo ignorado. Para o desenvolvimento de uma prática antirracista efetiva por meio da literatura, é de suma importância considerar os livros selecionados para a leitura das crianças, e questionar-se da intencionalidade das histórias. Accorsi e Silva (2021, p. 3) pontuam:

Quais histórias são contadas sobre esses povos? Qual é o protagonismo das personagens negras, indígenas e asiáticas nas obras escolhidas para o trabalho na escola? Tudo isso engloba desafios importantes que precisamos enfrentar logo para o desenvolvimento de uma efetiva prática antirracista desde as primeiras experiências escolares das crianças, visando ao desenvolvimento também da consciência das alterações e aquisições obtidas através da experiência com a literatura.

Entende-se que o ensino da história de um povo faz parte do processo da construção de identidade em sua amplitude, estendendo-se para aspectos sociais, culturais e estéticos. À vista disso, a literatura infantil surge como uma possibilidade didático-pedagógica de reconstrução de identidades raciais, a partir de obras infantis que retratam a cultura de etnias, em uma nova perspectiva (não mais depreciativa ou estereotipada), oportunizando o ensino de uma diversidade étnico-racial no âmbito escolar (Accorsi & Silva, 2021). Nesse sentido, a literatura infantil utilizada em uma prática pedagógica reflexiva e crítica pode contribuir para desmistificar estereótipos racistas que perpassam tanto os conteúdos escolares, quanto as vivências dos alunos em relação a comportamentos preconceituosos – na sua reprodução e normalização, e retirar a perspectiva do mito da democracia racial brasileira. Segundo Costa, Pereira e Dias (2022, p. 7):

A dinâmica das relações sociais brasileiras se fundamenta em uma falsa democracia racial que funciona como um importante componente ideológico que mantém o status quo, beneficiando aqueles que usufruem dessa estruturação de poder organizada em torno da discriminação racial. Por isso, se faz tão importante que a população negra conheça sua própria história e compreenda as relações estabelecidas entre negros e brancos, até então. Um conhecimento deve ser acessível a todo o povo brasileiro para que entendam como o racismo opera em nossa sociedade.

Há um século, não havia protagonismo negro nas obras literárias no geral. Segundo Gouvêa (2005, p. 79), “nas obras produzidas até a década de 1920 os personagens negros eram ausentes ou remetidos ao recente passado escravocrata”. Nesse contexto, um grande autor de literatura infantil brasileiro que perpetuou diversas nomenclaturas racistas em suas obras endereçadas para crianças foi Monteiro Lobato. Livros como “Caçadas de Pedrinho” (1939), e “Reinações de Narizinho” (1931), possuem diversas passagens que inferiorizam a figura da Tia Nástacia, uma das poucas personagens negras do universo do Sítio do Pica-Pau Amarelo, e esses livros são utilizados em diversas escolas públicas como base para sua formação educacional e literária.

Quando se coloca o racismo em evidência, a contextualização histórica das obras de Lobato para as crianças se faz necessária, ainda mais se tratando de obras para educação básica, ou seja, para a formação de indivíduos e cidadãos (Martelli & Carneiro, 2023). A sociedade, de modo geral, é estruturada historicamente pelo racismo, e ele é perpetuado e normalizado pela Branquitude, que defende a ideia de que vivemos em uma “democracia racial”. Contudo, essa ideia supostamente positiva é responsável pela conservação do racismo, e pela grande dificuldade em combatê-lo. Como suas manifestações são muito sutis, costumam passar despercebidas, ou tendem a ser minimizadas. Afinal, apelidos, piadas e comentários que podem ser reproduzidos pelas crianças após a leitura de termos como “macaca de carvão”, “negra beiçuda” ou “negra de estimação” em alusão à Tia Nastácia, são naturalizados, e não parecem trazer maiores consequências. Como pontua a autora Cita Bento, no livro “O Pacto da Branquitude”:

“[…] Esse fenômeno tem um nome, branquitude, e sua perpetuação no tempo se deve a um pacto de cumplicidade não verbalizado entre pessoas brancas, que visa manter seus privilégios” (Bento, 2022, p. 18).

Ao definir-se uma literatura antirracista, é de suma importância conceituar o significado dessa literatura e das histórias narradas, partindo do pressuposto de que as histórias têm uma função social de construção de identidade (Accorsi & Silva, 2021). Nesse sentido, a literatura infantil dá a possibilidade de trilhar uma narrativa positiva sobre a estética, história e cultura negra africana e afro-brasileira, podendo construir um senso de pertencimento e identidade, aumentando a autoestima de crianças negras, e colocando em perspectiva (de forma positiva) a diversidade racial para as crianças brancas. Conforme as autoras:

É imprescindível refletir a respeito dos efeitos que as leituras literárias possuem sobre o desenvolvimento do caráter social de um povo, de seus sujeitos, a começar pela infância. A literatura exerce uma função para a formação do indivíduo, ainda nas séries iniciais e ao longo de sua vivência educacional, inicialmente procedendo como ferramenta de transferência do simbólico, que é a leitura de mundo, contribuindo para o progresso linguístico, o prazer estético e a independência intelectual. (Accorsi; Silva, 2021).

Abordando sobre livros com protagonismo negro, o livro “Amoras” (2018), do escritor e rapper Emicida, apresenta narrativas com possibilidades para letramento racial. O livro aborda figuras negras de liderança muito importantes para a história do povo negro em diferentes contextos históricos, como Martin Luther King, Malcolm X e Zumbi dos Palmares. Ademais, o livro também traz questões como o empoderamento de crianças negras, contando uma simples história de uma garotinha que se viu como uma garota preciosa também -mesmo sendo pretinha-, assim como a amora mais doce é a mais escura. O autor colocou, em palavras simples, em uma história simples, a importância do reconhecimento e orgulho de ser quem se é para as crianças negras.

Desse modo, ao trazer uma literatura infantil com protagonismo negro com a intencionalidade de desenvolver uma formação de leitor literário numa perspectiva identitária, contribui-se, então, para a construção de uma pedagogia antirracista, auxiliando para o processo de formação de identidade e autoestima de crianças negras. Accorsi e Silva (2021, p.8) ressaltam: “[…] não apenas trazer representatividade negra, mas, sobretudo, tratar as personagens negras de forma digna, libertando-as dos estereótipos que as limitavam até então.”

  1. O HIP-HOP COMO POSSIBILIDADE PARA O LETRAMENTO RACIAL E AUTOESTIMA NEGRA

Frente à possibilidade de assumir o Hip-Hop como referência na educação formal, é importante citar que, em sua essência histórica e cultural, tem sua origem advinda de povos não-brancos, majoritariamente negros. Seu surgimento veio na década de 70, do meio periférico de subúrbios negros e latinos no Bronx, em Nova Iorque.  De certa forma, pode-se afirmar que o Hip-Hop surgiu como um escape para as pessoas do gueto, que passavam por diversos problemas de ordem social, como a pobreza, violência, racismo, tráfico de drogas, entre outros. Desde então, o Hip-Hop tornou-se um símbolo de resistência, e compartilhamento dessas vivências, abrangendo não só a musicalidade do Rap, mas também as expressões artísticas de pichação, e também a dança, como o break.

No Brasil, o Hip-Hop inicia-se por volta da década de 80 na periferia de São Paulo. São os Racionais MC’s que popularizam o movimento com suas músicas. Galieta (2020, p. 14) cita:

Com o grande sucesso dos Racionais MC’s, nos anos 90, o Rap passa a ser conhecido nacionalmente como porta voz de jovens negros periféricos a partir de temas relacionados ao cotidiano, às drogas, à exclusão social, ao crime e à discriminação racial.

Por meio da utilização do Hip-Hop como referência na educação formal, pode-se introduzir para as crianças a cultura das periferias, fortalecendo identidades e reforçando vínculos com ascendências e ancestralidades, que são marginalizadas por esse racismo sistêmico vivenciado pelos estudantes negros (Galieta, 2020). Nesse sentido, o diálogo com conceitos e reflexões elaboradas por meio da musicalidade do Hip-Hop permite explorar distintas nuances do racismo brasileiro, as violências sofridas por grupos minoritários e periféricos, além de também possibilitar abordar sobre a autoestima negra.

Ao pensar-se em músicas da cultura Hip-Hop para utilizar como instrumento didático-pedagógico para a construção de uma educação antirracista, destaca-se a música “Corra” (2018), do cantor Djonga. O rapperDjonga tem se destacado na cena do rap nacional desde o final de 2016. O artista tem desenvolvido diversos trabalhos, e contribuído grandemente para a cena do Hip-Hop brasileiro. “Corra” é a sétima faixa do álbum do seu álbum titulado “O Menino Que Queria ser Deus” (2018). O nome da faixa, assim como sua introdução, faz referência ao filme de terror psicológico “GET OUT (CORRA)”, do diretor negro Jordan Peele, lançado em 2017, que aborda questões como eugenia e racismo científico. A letra da música se constrói em um diálogo de um casal (preto) que, ao decorrer da música, aborda sobre o racismo estrutural.

“Amor, olha o que fizeram com nosso povo.

Amor, esse é o sangue da nossa gente.

Amor, olha a revolta do nosso povo.

Eu vou, juro que hoje eu vou ser diferente.

Éramos milhões, até que vieram vilões.

O ataque nosso não bastou.

Fui de bastão, eles tinham a pólvora.

Vi meu povo se apavorar.

E às vezes eu sinto

que nada que eu tente fazer

 vai mudar” (Djonga, Corra, 2018).

A música “Corra” de Djonga, aborda historicamente a posição do povo negro desde a colonização, o desespero do povo negro e indígena com a chegada do colonizador, e contextualiza, até os dias atuais, a posição do povo negro na sociedade e a imposição da inferioridade racial estruturada pelo racismo, além de aspectos como o mito da democracia racial, que é uma ideologia idealizada e mantida pela branquitude, que fez com que se propagasse no Brasil uma das formas mais perversas de racismo: o racismo velado mascarado pelo status liberal e democrático (Munanga, 2000).

Ademais, é importante ressaltar a importância de também trazer referências positivas e dignas para as crianças (Accorsi; Silva, 2021). Nesse sentido, pode-se citar a música “Jóia Rara” (2019), da cantora gaúcha Cristal. Essa música tem como foco central abordar sobre autoestima, e trazer aspectos culturais e estéticos marcantes das pessoas negras, ressaltando o orgulho e aceitação.

“Isso é black skin, white keep watching.

Pra que Barbie girl, se nós pode ser uma Abayomi?

Nunca cai do salto, quem já nasceu uma Naomi.

Uso joia rara pra combinar com meu nome.

Mano eu sou uma estrela, minha pele brilha.

Pergunte o segredo e eu digo: Melanina!

Solta os dread, solta as trança e esse black, nigga.

Brilha tipo estrela, nossa pele brilha.

Com a cor de Jesus, olhei por vocês.

Melanina!” (Cristal. Jóia Rara, 2020).

Cristal traz na música o afastamento da cultura eurocêntrica, como a boneca Barbie, e traz símbolos como a Abayomi, que são bonecas confeccionadas com nós e amarrações, cujo corpo é feito de tecido preto. Acredita-se que a boneca tem origens na cultura africana, e continuou sendo feita nas senzalas como forma de amuleto. Hoje, as bonecas Abayomis são produzidas como um símbolo da resistência e orgulho negro, referenciando de forma positiva a identidade afro-brasileira. Segundo Gonçalves e Pereira (2020, p.14): “As bonecas Abayomi são vistas como um recurso lúdico que faz frente à ausência de bonecas negras no mercado e é um facilitador para dialogar sobre identidade.”

Por meio do seu rap, Cristal faz um regaste da cultura afro-brasileira, e enaltece a estética do povo negro: o dread, as tranças e o black power. De acordo com as autoras Ludmila Witzel e Ximena Merino (2016, p. 205) “A retomada da consciência negra se dá […] pelo resgate do passado negro, da cultura africana, de personagens históricos ou ficcionais africanos […]”. Com isso, pode-se afirmar que a literatura que o Hip-Hop desenvolve por meio do Rap abre novas possibilidades para uma educação que aborde sobre questões identitárias e culturais afro-brasileiras. Por meio da utilização do Hip-Hop como instrumento pedagógico, podem ser explorados elementos históricos, sociais e culturais atrelados à diáspora africana no Brasil, que está presente nas periferias e favelas dos centros urbanos.

  1. PEDAGOGIA ANTIRRACISTA: CAMINHOS E DESAFIOS

Apesar de já ter se passado duas décadas desde a institucionalização da Lei 10.639/2003, a implementação efetiva da lei nas escolas no país ainda enfrenta diversas dificuldades. Os desafios que a implementação da Lei confronta se relacionam com a luta contra o racismo, que possui seus aspectos objetivos e subjetivos. Além disso, destaca-se aqui a problemática com a formação docente, com seu currículo majoritariamente influenciado pela cultura europeia enraizada em nosso país, produzindo dificuldades em fazer com que os professores pensem, criticamente, a implementação da cultura afro-brasileira e africana nas suas salas de aula.

Conclui-se, portanto, a importância do corpo docente buscar construir seus conhecimentos sobre História Africana e afro-brasileira em uma perspectiva de emancipação, tendo uma formação continuada e fortificada para desenvolver e apresentar práticas pedagógicas inovadoras aos alunos em sala de aula, buscando desmistificar a discriminação enraizada no racismo estrutural em relação ao continente africano e a Cultura Afro-Brasileira, e abordar a história de diferentes perspectivas, para construir uma visão crítica com os alunos, e desenvolver seu senso de identidade e pertencimento.

É a partir de uma pedagogia que desenvolve processos identitários e socioculturais que se pode melhorar as relações educativas e estruturais. A partir da elaboração e aplicação de atividades com intencionalidades voltadas para uma pedagogia antirracista, é possível fortalecer uma visão crítica, contextualizada historicamente (não só por uma visão única), mas por outras perspectivas descolonizadoras.

REFERÊNCIAS

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Júlia Gabriella Alexandre Mota – graduanda em Pedagogia pela Universidade Federal do Amazonas – UFAM. Manaus, Amazonas, Brasil.
Email: julialexandre@live.com

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