Crônicas Margarete Hülsendeger

VOZES DA TRADIÇÃO

VOZES DA TRADIÇÃO

Deus? O mesmo Deus da Igreja é o do Candomblé. A África conhece o nosso Deus tanto quanto nós, com o nome de Olorum. A morada dele é lá em cima e a nossa, cá embaixo.

Mãe Menininha do Gantois

Margarete Hülsendeger

No Candomblé e na Umbanda, os líderes religiosos desempenham um papel fundamental na orientação e liderança de suas comunidades espirituais. Esses líderes são conhecidos por diferentes títulos – babalorixás[1], ialorixás[2], pais e mães de santo – e são responsáveis por manter as tradições, cuidar dos Orixás, realizando diferentes rituais e oferecer apoio espiritual aos seus seguidores.

Historicamente, esses líderes têm atuado em contextos de resistência cultural e social. Durante o período colonial e a escravidão no Brasil, os sacerdotes e sacerdotisas mantiveram vivas suas tradições, muitas vezes de forma clandestina, preservando a identidade cultural de seus povos e criando espaços de solidariedade e apoio comunitário. No período pós-abolição (e até os dias atuais), enfrentaram o racismo e a intolerância, mas continuaram a fortalecer suas comunidades por meio da espiritualidade e da prática religiosa.

No Candomblé, os babalorixás e as ialorixás são escolhidos mediante um processo espiritual rigoroso e recebem treinamento extensivo sobre os rituais, os cânticos, as danças e a história da religião. Além de liderar as cerimônias, eles também são conselheiros e guias para os membros da comunidade, ajudando-os a resolver seus problemas, oferecendo curas espirituais e realizando previsões. Entre os mais conhecidos no Brasil estão Mãe Menininha do Gantois, uma ialorixá que liderou o Terreiro do Gantois em Salvador e é lembrada por sua sabedoria e dedicação, e o Pai Cido de Oxalá, conhecido por seu trabalho comunitário e pelo fortalecimento da cultura afro-brasileira em São Paulo.

Na Umbanda, os pais e mães de santo desempenham funções semelhantes, mas com algumas diferenças significativas. Eles lideram terreiros, onde são realizadas sessões de incorporação nas quais entidades espirituais, como pretos-velhos, caboclos e crianças, se manifestam com a ajuda dos médiuns. Esses líderes orientam as sessões, interpretam as mensagens dos espíritos e ajudam os fiéis a encontrar soluções para suas dificuldades. Além disso, organizam práticas de purificação e proteção, como os banhos de ervas e as defumações, para afastar energias negativas e promover o bem-estar espiritual. Pai Ronaldo Linares, fundador da Federação Umbandista do Grande ABC, é um exemplo de pai de santo que tem promovido a disseminação da Umbanda e defendido os direitos dos praticantes.

Outra diferença significativa entre a atuação dos sacerdotes no Candomblé e na Umbanda é a relação com as divindades e entidades espirituais. No Candomblé, os babalorixás e ialorixás se concentram nos orixás, realizando rituais complexos que envolvem cânticos, danças e oferendas específicas para cada divindade. As cerimônias são altamente estruturadas e seguem tradições ancestrais, com um foco profundo na preservação da cultura e dos costumes trazidos da África. Um exemplo concreto do papel desses líderes pode ser observado durante uma festa de Orixá, como o “Xirê[3] de Oxum”, onde a ialorixá conduz os cânticos e danças que homenageiam a Orixá das águas doces. Durante essa cerimônia, ela não só coordena os rituais, mas também oferece conselhos aos fiéis que procuram orientação sobre questões amorosas ou familiares.

Já na Umbanda, os pais e mães de santo lidam com uma variedade maior de entidades espirituais, incluindo os Orixás, mas também espíritos de ancestrais, caboclos, pretos-velhos e crianças. As sessões de Umbanda são geralmente mais flexíveis e podem incluir incorporações, onde os médiuns permitem que essas entidades se manifestem para oferecer conselhos e curas aos fiéis. Os rituais são mais adaptáveis e frequentemente combinam elementos de diferentes tradições religiosas, como o catolicismo e o espiritismo kardecista. Assim, na Umbanda, um pai de santo pode ser visto durante uma sessão de consulta espiritual, quando interpreta as mensagens de uma entidade e sugere rituais específicos, como oferendas ou velas, para ajudar o consulente a superar suas dificuldades. Pai Maneco, do Rio de Janeiro, é um exemplo notável, conhecido por suas incorporações e pelos ensinamentos que compartilha com a comunidade.

Margarete Hülsendeger – Possui graduação em Licenciatura Plena em Física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1985), Mestrado em Educação em Ciências e Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002-2004), Mestrado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2014-2015) e Doutorado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2016-2020). Foi professora titular na disciplina de Física em escolas de ensino particular. É escritora, com textos publicados em revistas e sites literários, capítulos de livros, publicando, em 2011, pela EDIPUCRS, obra intitulada “E Todavia se Move” e, pela mesma editora, em 2014, a obra “Um diálogo improvável: homens e mulheres que fizeram história”.

O trabalho desses sacerdotes e sacerdotisas em suas comunidades se mostrou tão importante que, em 20 de julho de 2023, foi aprovada a resolução 715 do CNS, na qual se destaca a importância das religiões afro como complementares ao SUS. Em alinhamento com a Constituição Federal de 88 e a Lei Federal nº 8.080/1990, a Resolução estabelece a saúde como um direito universal, ressoando com as políticas de saúde dos terreiros de diversas religiões irmãs[4]. A resolução também considera a ideia de que locais como terreiros têm sido portas de acesso para os mais necessitados e define esses espaços como promotores de saúde, combatendo o preconceito e a discriminação.

Portanto, o trabalho desses guias religiosos combina não só conhecimento ancestral, habilidades rituais, como também um profundo compromisso com o bem-estar espiritual de seus seguidores. São eles que mantêm viva a tradição e a cultura afro-brasileira, oferecendo suporte e orientação em todos os aspectos da vida cotidiana. Hoje, esses líderes continuam a atuar em contextos sociais desafiadores, enfrentando a intolerância religiosa e promovendo a inclusão e a valorização das tradições afro-brasileiras.


[1] Babalorixá é uma palavra composta por “baba” (pai) e “orixá” (divindade), significando “pai de santo” ou “pai do orixá”. Refere-se ao líder masculino responsável por conduzir os rituais e cuidar das divindades dentro do Candomblé.

[2] Ialorixá é uma palavra composta por “ia” (mãe) e “orixá” (divindade), significando “mãe de santo” ou “mãe do orixá”. Refere-se à líder feminina que desempenha funções similares às do babalorixá, cuidando dos rituais e das divindades.

[3] Xirê é uma palavra Yorubá que significa roda, ou dança, para a evocação dos Orixás conforme cada nação.

[4] Fonte: https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/a-ponte-entre-os-terreiros-de-matriz-africana-e-o-sistema-unico-de-saude/. Acesso: 31 jul 2024.

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