Crônicas Margarete Hülsendeger Margarete Hülsendeger

RESISTÊNCIA E IDENTIDADE

RESISTÊNCIA E IDENTIDADE

A intolerância é inclinada a censurar, e a censura promove a ignorância dos argumentos dos outros e, portanto, a própria intolerância: um círculo rígido e cruel que é difícil de quebrar.

Primo Levi

Margarete Hülsendeger

Desde sua chegada forçada às Américas, os africanos escravizados enfrentaram discriminação e violência. Como resultado, as religiões de matriz africana tornaram-se um refúgio espiritual e cultural, permitindo não só a preservação de suas identidades, mas também um espaço de luta contra a desumanização imposta pelos colonizadores. No Brasil, o Candomblé e a Umbanda foram sistematicamente perseguidos e marginalizados, mas persistiram e se mantiveram vivos, simbolizando a resistência negra.

As religiões afro-brasileiras estimulam uma visão de mundo que valoriza a diversidade e a ancestralidade, desafiando diretamente as narrativas racistas que desvalorizam a cultura africana. Além disso, a defesa dos direitos humanos está intrinsecamente ligada às práticas e aos valores dessas religiões. Elas promovem a igualdade, a justiça e a solidariedade, princípios fundamentais dos direitos humanos. Do mesmo modo, seus líderes religiosos frequentemente se posicionam em defesa dos direitos das populações negras e marginalizadas, denunciando a violência e a desigualdade racial.

Na Umbanda e no Candomblé, os rituais, cantos e danças são expressões vivas da riqueza cultural africana, divergindo das narrativas de inferioridade impostas pelo racismo. São espaços de fortalecimento comunitário e de empoderamento, que oferecem uma estrutura de apoio social e emocional, onde os membros encontram solidariedade e suporte mútuo. Esse senso de comunidade é fundamental para enfrentar as adversidades e as diferenças raciais, promovendo a autoestima e a dignidade não só dos indivíduos afrodescendentes, como de todos os praticantes dessas tradições.

Assim, os terreiros e centros espirituais transformaram-se em espaços de acolhimento, onde a luta contra o racismo é articulada e praticada diariamente. Eles atuam como importantes centros de mobilização social, nos quais campanhas e ações em defesa dos direitos humanos são planejadas e executadas. O enfrentamento a intolerância religiosa e a discriminação racial são temas centrais nesses espaços, onde a espiritualidade está diretamente ligada ao ativismo social. Eles também são centros de preservação de tradições, línguas, músicas e danças africanas, onde a cultura africana é vivenciada e transmitida de geração em geração, proporcionando um sentido de pertencimento e continuidade histórica. Por meio das práticas espirituais, seus seguidores reconectam-se com suas ancestralidades, fortalecendo sua identidade cultural.

No entanto, nos últimos anos, a atuação das igrejas neopentecostais tem representado um desafio significativo para as religiões afro-brasileiras. Essas igrejas frequentemente demonizam as práticas e as divindades das religiões africanas, retratando-as como malignas e perigosas. Essa retórica gera e alimenta preconceitos, levando a atos de intolerância e violência contra praticantes das religiões de matriz africana. Templos de Candomblé e Umbanda são muitas vezes alvos de vandalismo e ataques, incentivados por discursos de líderes neopentecostais que buscam deslegitimar essas tradições religiosas.

A expansão dessas igrejas seguidamente ocorre em áreas onde as comunidades afrodescendentes são predominantes, criando um ambiente de conflito religioso. Os neopentecostais, em sua missão de evangelização, confrontam diretamente os terreiros, tentando converter seus seguidores e desmantelar suas práticas. Isso não só fere a liberdade religiosa, como também mina a coesão social e cultural dessas comunidades, atacando um dos pilares de sua identidade.

Margarete Hülsendeger – Possui graduação em Licenciatura Plena em Física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1985), Mestrado em Educação em Ciências e Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002-2004), Mestrado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2014-2015) e Doutorado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2016-2020). Foi professora titular na disciplina de Física em escolas de ensino particular. É escritora, com textos publicados em revistas e sites literários, capítulos de livros, publicando, em 2011, pela EDIPUCRS, obra intitulada “E Todavia se Move” e, pela mesma editora, em 2014, a obra “Um diálogo improvável: homens e mulheres que fizeram história”.

Para corroborar esse quadro, um estudo realizado no Rio de Janeiro, em 2022, demonstrou que 91% dos ataques na cidade são dirigidos contra templos e casas de Umbanda e Candomblé. A pesquisa também apontou que, em mais da metade das ocorrências de intolerância religiosa (56%), o agressor está ligado a igrejas evangélicas[1]. Em um estudo anterior, a Secretaria Nacional de Direitos Humanos já indicava um crescimento de casos de intolerância religiosa (quase 700 casos) entre 2011 e 2015, a maioria registrada nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais[2].

Com base nessas pesquisas, fica claro que ainda é necessário o estabelecimento de instrumentos capazes de minimizar a frequência com que as religiões de matriz africana vêm sofrendo com o preconceito religioso e a discriminação. Esse debate levanta diversas questões acerca da promoção efetiva de liberdade religiosa a todas as crenças e a importância de descontruir narrativas e inverdades acerca dessas religiões. É preciso compreender que elas, além de oferecerem uma conexão espiritual, também proporcionam um senso de comunidade, identidade e resistência. Valorizar e reconhecer a importância dessas religiões é essencial para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, onde a diversidade cultural e a dignidade humana sejam plenamente respeitadas. Enfrentar a intolerância religiosa e promover o respeito entre diferentes tradições espirituais é um passo crucial para essa construção.


[1] Disponível em https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2022/01/22/estudo-mostra-que-religioes-de-matrizes-africanas-foram-alvo-de-91percent-dos-ataques-no-rj-em-2021.ghtml. Acesso: 01 jul 2024.

[2] Disponível em https://www.politize.com.br/religioes-de-matriz-africana/. Acesso em: 01 jul 2024.

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