Adilson Luiz Gonçalves Colunistas

MEUS CANTEIROS

Infelizmente, vivemos num mundo onde o ódio tem predominado sob múltiplas formas, mesmo quando travestido de amor.

As palavras duras e neologismos sem sentido têm tornado cada frase difícil e expressão culpada por novas formas de preconceitos.

Até uma poesia, entendida como máximo afloramento dos sentimentos que nos tornam humanos, corre riscos. Mesmo a boa música, que te traz prazer, pode ser considerada um acinte, uma afronta a que vivem a espera do pior, por parte do mundo.

Poesia! Música!

Toda música cantada é, em tese, uma poesia. Mas nem toda a poesia pode ser vertida em música.

Tenho extremo carinho por duas músicas de Fagner: “Velas do Mucuripe” e “Canteiros”.

A primeira é uma parceria com Belchior, letra e música acomodadas numa das mais belas obras do cancioneiro nacional. Poesia e melodia compostas sob o encanto de dois jovens cheios de amor.

Já “Canteiros” tem melodia de Fagner e a letra é uma poesia de Cecília Meireles, Cecília como a minha! É uma obra póstuma, pois sua autora nos deixou em 1974, bem antes de Fagner se encantar com seu texto.

Como a poesia perdeu espaço para palavras de ordem e “calabocas” intolerantes.

“Canteiros” é um pouco triste, mas sempre a revisito, ainda mais por expressar um pouco do sinto, ainda mais de uns tempos para cá. Nem tanto expressa, mas me faz refletir.

Não sou tão moço, e aquilo a que me entrego ainda me traz contentamento.

Venho negociando prorrogações de vida há algum tempo, de forma cirúrgica. Nesse processo, muito do que me falaram e falam me faz sentir alegria. Alegria por estar vivo! Alegria por ter uma família que me ama e apoia! Alegria por ter amigos e colegas que me querem por perto, com todos os meus muitos defeitos e algumas virtudes!

Tristezas são tão inevitáveis como as alegrias são desejadas, e isso dá sabor à vida. Um sabor que pode ser de framboesa, ou de outra fruta, colhida nos canteiros do mato ou das cidades, pois a poesia está em todo e qualquer lugar. E não preciso correr por esses canteiros, mas ter um olhar atento, desarmado em relação à vida.

Cecília Meireles teve nessa poesia um momento de reflexão. Aliás, só vejo poesia no que sai do sentimento. A boa poesia, em minha opinião, não se produz: ela se sublima num momento de profunda reflexão. E só a entendo como uma elegia à vida, que em vez de desmotivar a viver, nos dá força para prosseguir. Afinal, não importa a idade, não se pode aceitar  viver com tanta tristeza e desencanto. “E deixemos de coisa e cuidemos da vida, pois se não chega a morte ou coisa parecida, e nos arrasta moço, sem ter visto a vida”.

A vida é para ser vista e vivida! E, nesse sentido, vale a frase de Belchior, quando se trata de mágoas e tristezas: “Vou levar as minhas mágoas pras águas fundas do mar”.

Assim como nos canteiros de Cecília e nos campos de Belchior, framboesas e paletós de linho branco fazem parte de uma colheita poética, que nos encanta e motiva.

A poesia é um dom de Deus! Mas os tempos atuais nos têm afastado de ambos. Tanto que às vezes é preciso passar por momentos que, mesmo tristes, nos fazem lembrar que existem canteiros no mundo, que precisam ser cuidados: família, amigos e amores! Ah, trabalho que me encanta também!

Cada um tem os seus canteiros. Esses são os meus!

Adilson Luiz Gonçalves Rua Maestro Heitor Villa-Lobos, 27/22 Santos – SP

Adilson Luiz Gonçalves

Escritor, Engenheiro, Pesquisador Universitário e membro da Academia Santista de Letras

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