As palavras não permitem que se diga tudo. Quanto mais perto a gente chega do fim, mais há por dizer.
Paul Auster
Margarete Hülsendeger |
Em tempos de mudanças climáticas extremas, guerras na Europa e no Oriente Médio é difícil não lembrar dos muitos livros que abordam as diferentes formas pelas quais a sociedade humana pode entrar em colapso. Desde antes do memorável 1984, de George Orwell, até o juvenil Jogos Vorazes, de Suzanne Collins, vários escritores têm nos mostrado sua visão do futuro. Um futuro pouco esperançoso, no qual a raça humana regride a um estado de barbárie, preocupando-se apenas em sobreviver, não importa a que custo. Por isso não estranhei quando descobri que um importante escritor americano também escreveu sobre o que a humanidade pode ter de enfrentar em um futuro não tão distante. O autor ao qual me refiro é Paul Auster e a obra é No país das últimas coisas[1].
Publicado em 1987, logo após a publicação de A trilogia de Nova York (1985-1986) – obra pela qual ficou conhecido –, No país das últimas coisas é uma longa carta escrita por uma mulher chamada Anna Blume para um destinatário desconhecido. Nessa missiva ela descreve suas experiências em um país imaginário onde as coisas “vão desaparecendo para nunca mais voltar” e a realidade é difícil de compreender e até mesmo de imaginar. As descrições feitas pela personagem nos transportam a um lugar onde as cidades estão em ruínas e as pessoas vagam pelas ruas sobrevivendo do que conseguem encontrar. Não são dadas explicações sobre as causas que teriam levado o país ao colapso, se foi uma guerra, uma pandemia ou qualquer outro evento catastrófico. O que fica claro é que as instituições responsáveis por dar algum tipo de estabilidade e ordem deixaram de existir.
Quando Anna chega a esse lugar seu objetivo é encontrar o irmão desaparecido há vários meses, após ter sido enviado, como jornalista, para descobrir o que estava acontecendo dentro das fronteiras desse país. Contudo, a busca pelo irmão fica rapidamente em segundo plano quando a personagem se vê obrigada a sobreviver em um ambiente onde a esperança deixou de existir ou, como ela explica, “quando você descobre que desistiu de ter esperança na própria possibilidade de ter esperança”. Em uma atmosfera opressiva, ela se depara com diferentes grupos que, à sua maneira, tentam encontrar uma saída que os liberte da angústia e do sofrimento.
Há os que procuram morrer o mais depressa possível, como a “seita dos corredores” ou os que escolhem o “Último Salto”. Enquanto os primeiros correm pelas ruas o mais rápido que podem até caírem mortos pela exaustão, os segundos optam por subirem aos lugares mais altos e deixarem-se cair. Como escreve Anna, o “Último Salto” é algo que qualquer um pode fazer, pois “corresponde aos íntimos anseios de todos: morrer subitamente, obliterar-se num breve e glorioso momento”.
No entanto, nem todos querem morrer. Existem aqueles para os quais “a morte também se tornou uma fonte de vida”. E aqui a protagonista descreve como, em meio a miséria e a violência, os negócios que envolvem a morte “florescem”. Entre os mais lucrativos estão as clínicas de eutanásia, todas com nomes bem sugestivos: “Viagem de Volta, “Viagem das Maravilhas” ou, ainda, “Cruzeiro do Prazer”. Há, porém, outras maneiras de comprar a própria morte. Assim, se as pessoas são muito medrosas podem recorrer aos “clubes”, onde assassinos são designados para matar sem que as vítimas fiquem sabendo quando ou onde. Como observa Anna, a morte nesse lugar “já não é uma abstração e sim uma possibilidade real e presente a todos os momentos da vida”.
No ambiente descrito pela personagem fica pouco espaço para emoções ou sentimentos positivos como o amor, a empatia ou a solidariedade, mas nada é impossível quando se trata da natureza humana. Por isso, Anna, apesar de todo o sofrimento, consegue encontrar o amor e viver, segundo ela, seus dias mais felizes. Do mesmo modo, quando o inevitável acontece e ela fica muita próxima de “viver a vida de uma pedra”, Anna esbarra em pessoas que ainda se importam. Esse acontecimento anuncia a última virada da história, com a protagonista reencontrando um motivo para continuar vivendo.
Ler No país das últimas coisas é experimentar o desespero de viver em uma sociedade onde a esperança e a amizade são artigos de luxo. É sentir como é fácil, em face das dificuldades, desvanecer-se em um “vagaroso, mas inelutável processo de esmorecimento”. E esse é o objetivo de todas as distopias: confrontar-nos com as consequências de nossos atos, não só sobre nós ou os outros, mas também sobre o planeta. Ademais, elas também nos lembram de que tudo com o qual estamos habituados pode, em um estalar de dedos, desaparecer como se nunca tivesse existido. Por isso, as distopias sempre têm alguma conexão com o mundo do presente, mas referindo-se a um futuro imaginado surgido pela ação ou inação humana, por comportamentos reprováveis ou pela simples e destrutiva ignorância. No país das últimas coisas Paul Auster soube representar esses comportamentos destrutivos, dando à frase de George Orwell um significado ainda mais poderoso: “A humanidade precisa se libertar do conceito de deus e diabo e admitir que ela faz o bem e o mal”.
[1] AUSTER, Paul. No país das últimas coisas. São Paulo: Editora Best Seller, 2000.
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