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A ÚLTIMA IDADE

Para compreender a realidade e a significação da velhice, é, portanto, indispensável examinar o lugar que é destinado aos velhos, que representação se faz deles em diferentes tempos, em diferentes lugares.

Simone de Beauvoir

Por Margarete Hülsendeger

A frase “Não se nasce mulher torna-se mulher” é uma daquelas frases que, com frequência, aparecem em ensaios, trabalhos acadêmicos e, nos últimos anos, em muitas postagens nas redes sociais. A autora, a filósofa francesa Simone de Beauvoir (1908-1986), tornou-se um dos grandes referenciais do feminismo moderno ao publicar, em 1946, O segundo sexo, um arrasador ensaio filosófico no qual defendia que nenhum destino biológico, psíquico e econômico define a imagem da mulher. A contribuição de Beauvoir, nessa obra, foi essencial para começar a imaginar outros destinos possíveis para o sexo feminino. Destinos que não eram determinados exclusivamente pela biologia, mas também pela educação e a cultura.

O que, talvez, alguns não saibam é que a filósofa francesa escreveu outra grande obra na qual aborda um tema igualmente importante, mas, durante muito tempo, marginalizado: a velhice. O livro foi publicado em 1970 quando a autora estava com 62 anos e, portanto, já vivia as limitações físicas e psicológicas impostas pela idade. A obra, com cerca de 600 páginas, está dividida em duas partes: a primeira com foco no ponto de vista da exterioridade, ou seja, como a velhice foi e é percebida pela sociedade e a segunda centrando-se em como a velhice é sentida e vivida por homens e mulheres de diferentes épocas. O livro é, portanto, uma combinação de tratado antropológico, histórico e filosófico do processo de envelhecimento.

A velhice[1] alcançou repercussão mundial pela coragem e honestidade com a qual a filósofa guia o leitor em um estudo cujas principais perguntas são: o que as palavras idoso, velho e envelhecido realmente significam? Como elas são usadas pela sociedade e como elas definem uma geração que é ensinada a castigar e evitar ao invés de respeitar e amar? E a mais importante: como o nosso tratamento dessa geração reflete os valores e prioridades de nossa sociedade?

A partir dessas questões, Beauvoir explica que antes que a velhice se abata sobre nós, ela começa como algo que só concerne aos outros. São os outros que primeiro percebem o sinal inequívoco de início de uma metamorfose. São os outros os primeiros a notar que as carências, antes esporádicas e facilmente contornadas, começam a se tornar importantes e inevitáveis. E são os outros que primeiro tomam consciência de que o corpo, antes forte e saudável, está em um processo de declínio. Um processo que, por mais preparado que alguém esteja amedronta porque “aos 20 anos, aos 40 anos, imaginar-se velha é imaginar-se uma outra”.

Por isso, para entender essa “metamorfose” é preciso, segundo Beauvoir, compreendê-la em sua totalidade, ou seja, entender que ela “não é somente um fato biológico, mas também um fato cultural”. Para alcançar esse entendimento, a autora analisa como a velhice foi encarada desde a antiguidade até os tempos modernos. Essa reconstituição histórica nos permite acompanhar como o conceito de velhice foi tratado em diferentes épocas e por diferentes pensadores. Hipócrates, por exemplo, foi o primeiro a comparar as etapas da vida humana às quatro estações da natureza, com a velhice sendo o inverno. E como, com o avanço da industrialização e o ritmo de trabalho mais rápido, tornaram as empresas cada vez mais impacientes no seu desejo de “eliminar” as pessoas idosas.

A autora também examina algumas das características dessa etapa da existência – alteração da memória, redução da velocidade das operações mentais, dificuldade de adaptar-se as novas situações – e como isso impacta na vida de relação do idoso ou da idosa. No entanto, citando o gerontologista americano Howell, reduz o impacto dessas informações ao dizer que a senescência “não é uma ladeira que todos descem com a mesma velocidade. É uma sucessão de degraus irregulares onde alguns despencam mais depressa que outros”. A velocidade da “queda” depende de inúmeros fatores, nem todos biológicos, muitos estando ligados as emoções, os hábitos passados e o nível de vida. Logo, a boa saúde física precisa vir acompanhada de uma moral elevada para que o processo de envelhecimento ocorra da forma mais tranquila possível. Contudo, apesar de todos os cuidados, o fato é que nenhum homem que vive muito tempo escapa à velhice, “um fenômeno inelutável e irreversível”.

Em A velhice, Beauvoir também traz inúmeros exemplos de escritores, artistas, cientistas, filósofos e políticos para demonstrar como a idade afeta a mente e o comportamento de uma pessoa. Ela fala da emotividade de Goethe que, aos 73 anos, tinha lágrimas nos olhos por qualquer motivo. De como Einstein, no fim da vida, negou-se a aceitar os novos conceitos da Física Quântica, mesmo sendo considerado um dos pais dessa disciplina. E de como, apesar de pregar a castidade, Leon Tolstoi, aos 69 e 70 anos, ao voltar de longos passeios ia para cama com a esposa. E falando em mulheres, o texto de Beauvoir é pobre quando se trata de falar delas, mas, como explica, a razão é que a mulher idosa rara vez foi objeto de interesse da história ou da literatura, a não ser quando aparecia, de forma estereotipada, no papel de bruxa ou alcoviteira.

Em tempos nos quais uma mulher de 45 anos é hostilizada por suas colegas mais jovens por estar cursando uma faculdade, a leitura da obra de Simone de Beauvoir, não só é necessária, como essencial. Apesar de ter sido escrito há mais de 50 anos, o texto é supreendentemente atual ao analisar como o processo de envelhecimento está ligado à maneira como a sociedade vê e trata o idoso ou a idosa. Assim, para ela, o verdadeiro problema da “última idade” é como “deveria ser uma sociedade para que, em sua velhice, um homem permanecesse um homem?”. A resposta de Beauvoir a essa questão é simples: “seria preciso que ele [ela] fosse tratado como homem [mulher]”. Contudo, a simplicidade dessa resposta não esconde o fato de que essa solução passa por uma mudança radical de mentalidade, ou seja, não valorizar um indivíduo apenas por sua capacidade de produzir. Na contemporaneidade quando uma pessoa deixa de ser produtiva, a sociedade costuma afastá-la, vendo-a como uma espécie estranha e, muitas vezes, colocando sobre ela uma mortalha feita de silêncios e preconceitos. Para Simone de Beauvoir, esse comportamento apenas demonstra o fracasso de toda a nossa civilização porque “um homem não deveria chegar ao fim da vida com as mãos vazias e solitário”. E eu, com meus 60 anos, concordo com ela.


[1] BEAUVOIR, Simone de. A velhice. Tradução Maria Helena Franco Martins. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2018.

Margarete Hülsendeger – Possui graduação em Licenciatura Plena em Física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1985), Mestrado em Educação em Ciências e Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002-2004), Mestrado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2014-2015) e Doutorado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2016-2020). Foi professora titular na disciplina de Física em escolas de ensino particular. É escritora, com textos publicados em revistas e sites literários, capítulos de livros, publicando, em 2011, pela EDIPUCRS, obra intitulada “E Todavia se Move” e, pela mesma editora, em 2014, a obra “Um diálogo improvável: homens e mulheres que fizeram história”.

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