Weverton Freitas Nascimento[*]
RESUMO: Esta resenha tem por objetivo explanar sobre a obra de Grada Kilomba – Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Fazendo considerações sobre os relatos da autora e as entrevistas realizadas, nas quais mulheres negras relatam o racismo vivenciado ao longo de suas histórias de vida. Nesse sentido, a leitura busca o entendimento das narrativas, bem como ressignificar o olhar sobre o racismo cotidiano. A análise foi feita na busca de melhor compreender a obra.
Palavra-chave: Decolonialidade. Racismo. Racismo Cotidiano. Decolonialidade.
Abstract: This review aims to explain the work of “Grada Kilomba – Plantation Memories: episodes of everyday racism”. Making considerations about the reports of the author and the interviews conducted, in which black women report the racism experienced throughout their life stories. In this sense, the reading of the work seeks to understand the narratives, as well as to give new meaning to the view of everyday racism. The analysis was made in the search for a better understanding of the work.
Key-words: Decoloniality. Racism. Everyday racism.
No livro intitulado Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano, a escritora, psicóloga, teórica e artista interdisciplinar Grada Kilomba aborda as variadas formas de racismo no cotidiano de Mulheres Negras, focando em entrevistas com duas afro-descentes, uma afro-americana e uma afro-alemã. Estas relatam as formas preconceituosas que passam o dia a dia com seus companheiros. A obra é dividida em 14 capítulos, os quais apontaremos alguns deste.
A autora inicia demonstrando a diferença na flexão de gênero de alguns termos no inglês e português. Na primeira língua citada os termos: sujeito, objeto, outro, negro etc., não tem a redução para o masculino, na segunda tradução tem: o sujeito, o objeto, o negro. Esses termos são traduzidos para o gênero masculino, assim gerando exclusão do feminino.
A estratégia de apresentação de Kilomba é apresentar a realidade dos afro-descentes enfatizada na Mulher Negra. Assim a escritora expõe como os termos preto e negro são colocados em diferentes territórios, Estados Unidos, Alemanha e países de língua portuguesa por exemplo. Ela relata que as história e fatos dos negros não são contados por eles, mas por outros. Na introdução ressalta as memórias, traumas, colonialismo, máscaras e a descolonização, mostra as medidas brancas para silenciar as vozes negras, como a máscara (escrava Anastácia) para tampar a boca e só o branco ter voz ativa. E ainda descreve sobre a construção da negritude.
Nos capítulos posteriores a autora expressa vários fatores sobre o racismo, em destaque as partes 2 e 3, em que para Kilomba (2019, p.30) “no racismo, corpos negros são construídos como corpos impróprios, como corpos que estão fora do lugar e, por essa razão, corpos que não podem pertencer”. Ainda delineando que o racismo é uma realidade violenta, pois bem, na Europa se fortaleceu com o plano de escravização e colonização para assim dominar e conquistar novos territórios. Kilomba define racismo com a presença de três características: a construção da diferença – aqui é apresentado as diferenças dos sujeitos negros como origem racial e religião – negro é diferente do branco, ou branco é diferente do negro. A segunda está ligada à diferença, portanto o branco sendo diferente, ele ocupará um estado hierárquicosuperior, sendo o patrão, o dono e/ou pertencente do outro. Portanto a terceira característica seria a junção das duas primeiras, formando então o Poder. Da ligação entre diferença e o poder, surge o racismo.
A entrevista citada acima do texto, foi realizada com duas mulheres afrodescendentes, sendo de origem estadunidense e a outra alemã. Elas foram selecionadas entre 5 candidatas, o critério foi baseado não na nacionalidade e sim por serem negras. Segundo Kilomba (2019. p. 81) “A metodologia do estudo, procura entender, reconstruir e recuperar experiências de mulheres negras com o racismo em uma sociedade branca patriarcal”.
As mulheres selecionadas para as entrevistas foram submetidas a um período de três horas a três horas e meia de duração, com perguntas relacionadas a vivências e experiencias em relação a identidade racial e como o racismo na infância, percepção de racismo com familiares e da vida cotidiana, cabelo e corpo feminino negro e sexualização da mulher negra. Foram dados os nomes de Alicia (afro-alemã) e Kathleen (afro-americana), que ofereceram suas experiências ricas em depoimentos e em suas falas. As entrevistas foram nas línguas das entrevistadas para que elas se sentissem mais confortáveis, o método foi narrativa biográfica não diretiva para conseguir definir sua realidade subjetiva e o racismo em suas vidas.
Alicia, em várias situações passa por questionamentos de qual local, cidade ou país ela é, sempre relacionam a sua cor com outros países ou territórios, e ela responde que é alemã, mesmo respondendo, continuam perguntando e insistindo que seus traços não são regionais e que ela não pode ser alemã, pelos seus traços e cor de pele. A entrevista fala sobre o voyeurismo, o povo branco fica curioso sobre seu corpo de forma exótica — ela provoca prazer. Destaca que “elas querem ouvir uma história exótica”, na qual suas fantasias sobre a/o “outra/a” remota/o são revividas[…] (Kilomba, 2019, p.118). Então Alicia, se torna a expressão do prazer e da excitação do outro.
Ainda sobre o depoimento de Alicia, é relatado por ela sobre a relação com seu cabelo, constantemente constrangida por tocarem nele, ela se sente como um cachorro sendo tocada. Desde de criança tocavam em seu cabelo, ela explicava a sua mãe sobre o incomodo, mesmo assim não surgia efeito contrário ao seu pedido, sempre encostavam em seus cabelos de forma deliberada, fazendo-a sentir-se invadida e desrespeitada. A mãe branca de Alicia, não a via de forma diferente. A entrevistada relata que em uma de suas experiencias, namorou um homem branco que em determinado momento ele ficou furioso por ela ter retirado suas tranças e ter deixado seu “black natural”, ele a insultou, dizendo que ela estava feia em seu estado natural.
Kilomba (2019), afirma:
O estilo do cabelo de Alicia pode, assim, ser visto como uma declaração política de consciência racial […]. As ofensas, no entanto, são respostas de desaprovação a tal redefinição e revelam a ansiedade branca sobre perder o controle sobre a/o colonizada/o. De certa forma, as ofensas alertam Alicia de que ela está se tornando muito negra ao mostrar muitos sinais da negritude. (KILOMBA, 2019. p.127).
Em continuidade aos relatos de Alicia, fala de um namorado que ironiza o cheiro do seu cabelo, que estava com cheiro de coco, devido a produtos de estética, esse namorado associa sua fragrância aos macacos, e ainda cantam uma música típica colonial, satirizando o seu cabelo. Nesse sentido, corpos negros são diminuídos, ridicularizados e submetidos a todo tipo de preconceito, tornando-os objetos de escárnio e desaprovados por pessoas brancas.
A segunda entrevistada, Kathleen começa seu depoimento com um fato que aconteceu com seu ex-namorado branco, com piadas racistas de seu cotidiano, porém de forma camuflada. Nesta piada ele reproduz em uma folha de papel, triângulos dentro de um círculo, correspondendo a organização norte americana racista, Ku Klux Klan[†], olhando para um negro dentro de um buraco, demonstrando todo preconceito racial que o ex namorado dela demonstrava ao brincar com seus amigos brancos em seu grupo musical. O pensamento dominante, branco, patriarcal e racista se mostra com piada declaradamente preconceituosa, com teor racista. Esse grupo musical representado por homens brancos, só reproduz o pensamento hegemônico e excludente, este compilado confirma o distanciamento e o posicionamento de poder para com Kathleen.
As declarações das duas entrevistadas, manifesta um pouco do racismo cotidiano vivenciado por mulheres negras, com seus companheiros brancos que ocultam seus preconceitos com o povo preto, ora mostrado em relação ao cabelo, outrora com piadas racistas envolvendo organizações racista.
Nos capítulos seguintes, Kilomba relata que as pessoas utilizavam algumas letras como “N” para definir negro de forma pejorativa, com um tom mais agressivo e forte para chamar uma pessoa negra. O “M”. para diferenciar a tonalidade de pele e/ou a mistura de 50/50 de raça, mais escura e menos escura, porém sempre com teor preconceituoso e hostil. Os pais adotivos de Alicia utilizavam o “M”, mas ouvia o N. de forma diferente com uma certa intensidade e dureza. Alicia quando passeava com sua mãe de criação branca, sentia-se confusa em relação aos diferentes, pois conhecia identificar o/a outro/a, mas não conseguia reconhecer a si, em essência de criança negra, pois não se via na TV, nas ruas e em outros lugares, não se sentia representada.
De acordo com Kennedy (2002, p.4 apud KIMBOLA, 2019, p.156) “Originalmente, a palavra N. deriva da palavra latina para a cor preta: niger. Porém, no final do século XVIII, a palavra N. já havida tornando-se um termo pejorativo, usado estrategicamente como forma de insulto…”. Kathleen ao perceber o tom da palavra N. ligada a sociedade de forma bruta e agressiva, vem na memória o trauma que esta mesma organização (KKK) de pessoas é presumida como branca.
Para Kathleen, muitas pessoas elogiando seu tom de pele, falando que N. linda e queria ter sua cor, porém trata de forma singular, extravagante e invejoso, devido a ligação com a natureza e realidade do ser negro. Ela descreve que em sua cidade há uma nítida separação territorial de pessoas negras das brancas, podendo assim ter um referencial de setores onde é habitável e frequentado por negros ou brancos, resumindo em segregação racial, pois negros não podem frequentar ou estar próximo de pessoas brancas. Discorrendo sobre localidade, a afro-americana menciona que no bairro onde morava, só existia duas famílias negras, uma dessas família era a dela. A referência com outras famílias negras foi marcante, pois em seu bairro era predominantemente branco — mantendo seu poder e segregando as outras famílias negras da região, como uma cota sustentável para mantê-las ali, em um ambiente educacional melhor, além da condição de vida elevada.
A escritora aborda um pouco da história de escravização do povo africano, focando na retirada, no arrancamento desse povo de seu território, para ser escravizado violentamente, sendo separado de suas famílias e terra natal, jogados e vendidos nos países colonizados, assim perdendo sua identidade, cultura e religião. O Tráfico Negreiro persistiu por longo período, com venda, compra, assassinato, extermínio de um povo, pois vários territórios foram desmembrados. Alicia destaca em uma das suas falas que em sua fase de criança não entendia e sentia-se incomodada com negros se olhando, cumprimentando e sorrindo uns para os outros quando se cruzavam nas ruas mesmo sem se conhecerem, só mais tarde ela pode compreender a importância e significância do ato tão puro e nobre dos descendentes africanos, que quase não é visto em outros povos.
Para finalizar, Kilomba evidencia a sua descolonização, o termo descolonizar refere-se à desconstrução do colonialismo. O empoderamento e a conquista da autonomia por parte dos colonizados. Tendo ligação direta com o racismo e o racismo cotidiano, quando Alicia relatava os toques em seu cabelo, quando perguntava de onde ela vinha, o porquê de estar ali, as piadas preconceituosas do ex companheiro de Kathleen, desta forma eram colocadas em marginalização nesses círculos de pessoas brancas.
As entrevistadas expõem a quantidade de vezes em que Alicia e Kathleen tiveram de explicar sobre cabelo, origem, inteligência e até a afirmação em relação aos seus companheiros. Para descontruírem o racismo cotidiano camuflado ou exposto da sociedade em que estão inseridas.
Diante do estudo e compreensão da obra, cabe aqui fazer algumas considerações. Primeiramente é importante ressaltar que a autora faz uma narrativa de sua vida e experiencia com o racismo cotidiano, a leitura aborda fatos coerentes e reais, vivenciados por pessoas negras cotidianamente.
Portanto, observou-se que a escritora explica palavras colocadas pelos colonizadores brancos, com distinção dos negros, como as palavras N., M. para enfatizar a tortura radical que o racismo faz, assim eles, os brancos, utilizam esses termos como forma de depreciar, humilhar e diminuir os negros. O livro é de acessível leitura, sendo indicada para todas as pessoas negras e brancas que estejam dispostas para o processo de desconstrução do preconceito racial ensinado e praticado durante a infância até a fase adulta, pois a descolonização é uma ferramenta que leva ao entendimento teórico sobre o tema.
Referências
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Berlim: Editora Cobogó, 2019.
SILVA, D. N. Ku Klux Klan. 2018. Disponível em: <https://mundoeducacao.uol.com.br/sociologia/ku-klux-klan.htm>. Acesso em: 02 fevereiro. 2022.
[*] Graduado em Educação Física pela Universidade Federal de Uberlândia. Professor Especialista em Educação Física Escolar. E-mail: wevertonfn@hotmail.com
[†] A Ku Klux Klan (KKK) ou Klan é uma organização terrorista que foi fundada em uma pequena cidade do Tennessee, Estados Unidos, entre os anos de 1865 e 1866. Essa organização, que se pauta pelo supremacismo branco, promovia e promove atos terroristas contra pessoas negras e simpatizantes dos direitos dos negros.