SOBRE A CIÊNCIA
Margarete Hülsendeger
A ciência jamais responderá a todas as perguntas pelo simples motivo de que jamais saberemos todas as perguntas que podem ser feitas! Ao avançar, a ciência encontra novas perguntas que não poderia ter antecipado.
Marcelo Gleiser
Falar – mal ou bem – da ciência está na moda. Há aqueles que resolveram ressuscitar antigas teorias com o único objetivo de provar seus pontos de vista, mesmo que todas as evidências mostrem exatamente o contrário. Existem também os que colocam em dúvida práticas, métodos, que já se mostraram eficazes inúmeras vezes, inclusive salvando muitas vidas. E há aqueles que trouxeram de volta o velho debate: quem é o “dono da verdade”, a ciência ou a religião?
Essas discussões fazem-me lembrar de uma história envolvendo um dos grandes nomes da ciência de todos os tempos, o matemático e físico italiano Galileu Galilei (1564-1642). Contam que, ao orientar o telescópio para o céu, Galileu não apenas demonstrou que o universo não era perfeito, como também se opôs ao que os discípulos de Aristóteles vinham defendendo há séculos. A bizarrice dessa história está no fato de que, ao serem convidados para observar através do aparelho, os aristotélicos negaram veemente o que seus olhos estavam vendo, alegando tratar-se de algum tipo de farsa ou magia armada pelo físico italiano. Seus preconceitos impediram que enxergassem que a lua, além de não ser de cristal, estava constituída de vales, montanhas e grandes depressões e que o céu estava cheio de estrelas e planetas em contínuo movimento.
No final dos anos 1930 e início dos 1940 essa história foi imortalizada pelo dramaturgo alemão Bertholt Brecht (1898-1956) na peça A vida de Galileu[1]. Nela aparece uma discussão entre um filósofo e um matemático (ambos aristotélicos) e Galileu na qual os dois primeiros esforçam-se em demonstrar que as observações do físico são falsas:
O MATEMÁTICO: Nãos seria o caso de dizer que é duvidoso um telescópio no qual se vê o que não pode existir?
GALILEU: O que o senhor quer dizer?
O MATEMÁTICO: Seria tão mais proveitoso, Senhor Galileu, se o senhor nos desse as suas razões, as razões que o movem quando supõe que na esfera mais alta do céu imutável as estrelas possam mover-se e flutuar livremente.
O FILÓSOFO: Razões, Senhor Galileu, razões!
GALILEU: As razões? Mas se os olhos e as minhas anotações mostram o fenômeno? Meu senhor, a disputa está perdendo o sentido.
O MATEMÁTICO: Se houvesse a certeza de que o senhor não se irritaria mais ainda, seria possível dizer que o que está no seu tubo e o que está no céu são coisas diferentes.
O FILÓSOFO: É impossível exprimir esse pensamento de maneira mais cortês[2].
Portanto, não é de hoje que as descobertas científicas são colocadas em dúvida. A quebra de um paradigma é sempre um processo complicado, sujeito a muitos debates e discussões. Na época de Galileu, quando a Igreja se acreditava a dona da verdade, era difícil uma ideia “revolucionária” prevalecer, principalmente quando negava dogmas e doutrinas há muito estabelecidas. Com o tempo aprendeu-se que verdades absolutas não existiam, pois a qualquer momento uma nova “verdade” podia surgir para, novamente, ser questionada e refutada. E é assim que até os dias de hoje a ciência é feita. E isso é muito bom, afinal, o fundamento sobre o qual ela se baseia é o reconhecimento de que não se sabe tudo, que somos imperfeitos e, consequentemente, sujeitos ao erro.
Por isso, o cientista é muito cuidadoso ao expor suas descobertas, pois entende que assim que vierem a público estará obrigado a apresentar provas de seus achados. E não basta apenas expor suas “razões”, como diz o filósofo na peça de Brecht, porque a razão também tem um alcance limitado. Esse é o motivo da demora em anunciar conclusões sobre determinado fato ou fenômeno. É necessário tempo para elaborar hipóteses e realizar experimentos que abarquem um espectro amplo de situações e possibilidades. Um cientista sério e responsável tem de apresentar mais do que meras opiniões, ele precisa fundamentar suas ideias com dados sólidos e consistentes.
Esse procedimento, no entanto, não está livre do erro ou do engano. Como em todas as áreas do conhecimento, na ciência também existem charlatães, indivíduos inescrupulosos que manipulam dados para vender uma ideia, sem se preocupar com as consequências de seus atos. São eles que, muitas vezes, nos empurram para situações que beiram a loucura, pois, mexem com nossos medos mais básicos impossibilitando qualquer pensamento racional. Um exemplo atual é o que está acontecendo com as vacinas. Conforme explica a escritora e professora Eula Biss, no livro Imunidade[3] (2014), os debates sobre vacinação são muitas vezes apresentados como “debates sobre a integridade da ciência, embora possam também ser facilmente entendidos como discussões sobre poder”. Segundo Biss, as pessoas, ao resistirem a vacinação, estão em parte preocupadas com a sua própria liberdade, mas também pensam que seus corpos não são potencialmente contagiosos e, portanto, perigosos para a sociedade. Essa atitude reforça a ideia de que sempre é mais fácil acreditar que o perigo são os “outros”, de preferência os mais pobres e vulneráveis. E quando a esse debate somam-se “pesquisas” que acabam, depois de um severo escrutínio, não apresentando nenhuma base científica, temos como resultado mães e pais negando-se a vacinar seus filhos por medo de as vacinas provocarem autismo[4].
De qualquer modo, é muito estranho, em pleno século XXI, ouvir pessoas questionando a eficácia das vacinas ou defendendo a teoria de que a Terra é plana. É como se, de repente, voltássemos no tempo a uma época na qual queimavam em fogueiras homens por defender que a Terra não era o centro do universo e mulheres por utilizarem ervas para curar dores de barriga. Um tempo onde o espírito crítico não era bem visto e as pessoas seguiam, como cordeiros, as ordens que lhes eram dadas sem questionar ou duvidar.
Mesmo que os defensores dessas ideias retrógradas ainda sejam uma minoria, há sempre o receio de um movimento como esse se tornar a regra e não a exceção. Contudo, se isso ocorrer, fica a lição da ciência nas várias vezes em que foi colocada contra a parede: a resistência. Uma resistência que está na base do trabalho científico já que fazer ciência é e sempre será:
- antepor-se à ignorância e à arbitrariedade;
- resistir a todos que, por motivos diversos, querem travar a melhoria da sociedade humana;
- saber que nada se sabe e que o desconhecido nos cerca;
- refutar teorias obsoletas, em busca de uma teoria que melhor explique, compreendendo que mais adiante poderá haver uma explicação melhor, mais completa, apesar de nunca ser definitiva;
- aceitar o fracasso, pois é graças a ele que aprendemos a ser tolerantes, não apenas com os nossos erros, mas, principalmente, com o dos nossos vizinhos.
Fique atento a todos aqueles que não respeitam esses princípios, pois com certeza eles também não vão respeitar você.
Leia, informe-se e não acredite em tudo o que você lê nas redes sociais; a maioria dessas informações não tem nenhuma base científica. Portanto, seja “científico”. Duvide, questione, analise, reflita e volte a questionar. Isso é fazer ciência!
[1] BRECHT, Bertholt. A vida de Galileu. Tradução de Roberto Schawrz. São Paulo: Abril, 1977.
[2] BRECHT, Bertholt. A vida de Galileu. Tradução de Roberto Schawrz. São Paulo: Abril, 1977, p. 81
[3] BISS, Eula. Imunidade: germes, vacinas e outros medos. Tradução de Pedro Maia Soares. São Paulo: Todavia, 2017 (Edição Kindle).
[4] Em relação a essa questão específica Eula Biss apresenta o testemunho do médico Paul Offit, professor de pediatria na Universidade da Pensilvânia e chefe da Divisão de Doenças Infecciosas do Hospital Infantil da Filadélfia. Em seu livro Autism’s False Prophets, Offit deixa claro que a “questão de saber se as vacinas provocam autismo não é tema de qualquer debate científico em curso”. Em outras palavras: não há qualquer evidência cientifica que aponte para a relação entre autismo e vacinação.
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