Quando o flâneur assume o volante…
Mara Rovida
A sensação do observador desavisado é a de que possivelmente se trata de um domingo ou de um dia de descanso bem no meio de um feriado prolongado, mas não! Trata-se de uma segunda-feira como outra qualquer e bem que podia ser terça-feira ou qualquer outro dia da semana. O fato é que para esse cara não há pressa.
Sua postura ao volante é bem relaxada. Ele coloca o banco um tanto reclinado como se estivesse se acomodando para um cochilo ou coisa do tipo. Ele fuma calmamente e mostra isso ao deixar metade do braço cair pela janela aberta do carro. A mão sobe em direção à boca para voltar sem nenhuma pressa para o descanso da janela, num movimento cadenciado e totalmente descompromissado com tudo que se passa ao redor. A cadência que embala o pitador-motorista se reflete na vagareza com que seu carro flana pela rua.
Ele passa bem devagar por cada esquina, deixa os pedestres atravessarem, mesmo onde não há faixa, e não se incomoda em dar a vez para quem quer entrar. É um verdadeiro cavalheiro! Quando para em um sinal vermelho, aguarda a“autorização” para seguir em frente com toda a alegria de mais algumas tragadas. Esse é o tipo de cidadão que respeita “muito bem” as regras do trânsito e os demais cidadãos que ali se encontram. Como de costume, sua calma também cadencia sua “arrancada” quando o sinal fica verde. Ele aguarda dois segundos, então, muito calmamente, pisa na embreagem até que engata a primeira. Só ai, se passaram 10 segundos. O detalhe é que aquele semáforo fica aberto por míseros 25 segundos!
Esse motorista poderia parecer num primeiro momento o modelo de bom comportamento, de boa educação no trânsito. Mas, ninguém quer ficar atrás dele numa segunda-feira chuvosa em São Paulo, ainda mais quando há algum compromisso com hora certa para chegar.
Um dia desses, saí com pressa, e acabei “esbarrando” num motorista-pitador desses que parecem, como diria meu pai, estar com a vida ganha. Mas, eu não! Tinha que chegar logo. O trajeto não era longo, muito pelo contrário, algumas quadras apenas. Só que, para meu azar, eu deixei que ele entrasse na minha frente dois quarteirões antes do tal semáforo de 25 segundos…..foi inevitável o nervosismo quando percebi que, mesmo sendo a segunda pessoa da fila, não conseguiria passar. Alguém lá de trás, bem menos paciente, cortou pela contramão e saiu cantando pneu. Nem assim, ele perdeu a calma.
Não pude evitar compará-lo àquela figura caricata do século 19, o flâneur. Um cara bem vestido, com certa elegância e que distribui gentilezas aos demais. Mas, alguém que está mesmo com a vida ganha, que não tem preocupações ou compromissos, alguém que flana pelas ruas sem destino. Uma espécie de vagabundo com estilo que se deixa levar pelas belezas ou curiosidades da cidade. Um ser urbano que surge em Paris e se torna um modelo de bon-vivant muito apreciado por pensadores ilustres como Walter Benjamin.
Sem sombra de dúvidas, aquele era um flâneur ao volante!
Mara Rovida [e doutoranda em Ciências da Comunicação na ECA-USP. Jornalista, professora e membra do Grupo de Pesquisa da Comunicação na Sociedade do Espetáculo da Faculdade Cásper Libero.