LIMA, Rosimeire Simões de*
KLUG, Marlise Buchweitz*
Resumo: No trabalho docente com o Ensino Médio desenvolve-se a prática da auto-narrativa dos alunos, ou seja, que escrevam sobre seu inventário pessoal, sobre o lugar onde vivem, através da escrita de memórias que são repletos de enredos, informações, fotos sobre o seu lugar, preciosidades únicas que se encarregam de compor e tecer a vida e a identidade de cada um. Para tanto, a metodologia incluiu a leitura de textos literários que têm o lugar como parte da narrativa ficcional – Minha Aldeia, do escritor Luís Augusto Fischer, e A Menina que Veio de Longe, da escritora Andréa Ilha.
Palavras-Chave: Memória. Leitura. Lugar. Escrita.
Abstract: In our opinion High School teaching process includes the practice of students self-narrative, which is to write about their personal life, where they live, through the writing of memories that are full of plots, information, environment photos, that are responsible for composing their life and identity. For this purpose, the methodology included reading literary texts that have the place as part of the fictional narrative – Minha Aldeia, by Luis Augusto Fischer, and A Menina que Veio de Longe, by Andréa Ilha.
Keywords: Memory. Reading. Place. Writing.
Introdução
A escola Carmosina Vaz Guimarães localizada no interior do município de Piratini, aproximadamente setenta e oito quilômetros da sede. A escolha da escola ocorreu de forma intencional visto que é a segunda do município o oferecer ensino médio no interior. Piratini possui duas escolas estaduais de ensino médio, uma na cidade denominada Ponche Verde que comemorou oitenta e um anos em atividade e a E. E. E.M. Carmosina Vaz Guimarães localizada no interior e está apenas no sétimo ano de funcionamento. Está mais próxima de Santana da Boa Vista e Canguçu conforme a localização geográfica. Os alunos e suas famílias raríssimas vezes vêm a Piratini. Convém lembrar que Santana da Boa Vista e Piratini ainda não são contemplados com livrarias. Todos moram em propriedades particulares que vem de herança familiar de agricultura e pecuária em sua maioria desenvolvem culturas de subsistência. Trabalhos em grupo e de pesquisa geralmente tornam-se inviável devido às grandes distâncias que separam uma localidade da outra.
A escola é o espaço para as socializações e é um centro de referência unânime na vida de todos. Embora a aceitação e o apreço que sentem pelo lugar onde vivem ficam perceptível e recorrente nas “falas” dos alunos observados desde o início do trabalho. Em suas produções textuais ou em diferentes momentos que se oportunizam devido ao encontro das aulas que ocorrem nas disciplinas que ministro três vezes por semana. Percebo em suas narrativas de pertencimento o entusiasmo e os laços que estreitam no e com o lugar onde vivem.
Existe uma dificuldade maior ao acesso aos materiais escritos, devido a distância das bibliotecas, número reduzido de exemplares na escola e a toda as situações nas quais estão envolvidos (as) as pessoas e os alunos que vivem na zona rural.
A escola funciona em um espaço próprio cedido pelo proprietário que fez a exigência de que faria a doação, mas o nome da escola deveria ser o de sua mãe e assim aconteceu… Apesar de ser internet via rádio e todas as condições que esse fato implica, tarefas escolares e diversas consultas eram realizadas cotidianamente. Demonstrando dessa forma, que mesmo com as imposições geográficas, sociais e outras tantas implicações sofridas, busca-se alternativas e as barreiras até pouco tempo intransponíveis atualmente são perfeitamente viáveis. O acesso foi suspenso pelo uso indevido de alguns alunos do ensino médio e todos foram desde modo proibido de acessar o laboratório sem a presença de um professor. A escola fica a duzentos metros da outra com poucos computadores e essa modalidade de uso se torna inviável.
Convém lembrar, que sempre que precisam ler algum material que não encontram na escola solicitam que eu tente disponibilizá-los. São retirados livros da biblioteca para a leitura trimestral, sendo no mínimo um exemplar para a disciplina de Língua portuguesa e outro para a disciplina de Literatura procurando ressaltar a pertinência em suas devidas áreas.
Na comunidade existem três avós de alunas que são leitoras e os livros são retirados para a família, não possuem outro meio para efetivar suas leituras. A mãe de outra aluna comprou um livro através de pedidos de catálogos. O exemplar era do interesse do aluno e não mediu esforços para a aquisição. Mesmo não tendo uma renda mensal ou fixa a maior parte das famílias investem nos materiais solicitados pelos filhos ou pela escola.
O que norteia o trabalho é a leitura, interpretação e redação. Pensamos que o aluno precisa passar pela escola durante muito tempo, mas na zona rural devido as condições de transporte, clima, distâncias a serem percorridas entre outros motivos esse tempo ainda é menor e necessita construir seu conhecimento, encontrar uma razão que fundamente sua permanência na escola. Deste modo, nossa meta imprescindível é que ao ler um texto ele seja capaz de ir além da decodificação das letras, do que está escrito, do que está subentendido nas entrelinhas, tal qual a intenção do autor e outros aspectos visando tornar-se um leitor crítico para que desenvolva a capacidade de ler o mundo, a realidade que o cerca e tudo o que vem “tecido” na estrutura de um texto.
Existe uma resistência de alguns quando solicito que leiam livros, embora tendo alunos de faixa etária menos elevada, em idade normal ou condizente com o ano que estão cursando nunca leu um livro sem “figura” (ilustração) e com um número maior de páginas.
Após passar esse período de resistência escolhem a obra na biblioteca, iniciam a viagem pelo mundo das letras, enfrentam as dificuldades comuns a todo leitor com o referido perfil, pouco tempo disponível para dedicar-se a leitura, o vocabulário por vezes não é acessível, resistência ao enfrentamento da tarefa nunca realizada e pouco desconhecida. Quando veem os colegas apresentando os livros, percebem que não é impossível e, aos poucos vão buscando seus meios, seus recursos e para grande surpresa e realização profissional leem, tecem comentários, mergulham na história, discutem com os autores e neste diálogo lento, progressivo, sutil, vão aparecendo leitores submersos que nunca tiveram a oportunidade de cruzarem suas vidas com um livro, de dispensarem alguns minutos de vida com um objeto desconhecido até então e a partir deste quando afirma a importância da Leitura e sua interação com o meio.
Não somente pelo ato de ler, mas pelas implicações de ordem de crescimento intelectual, visão de mundo, das relações que os cercam, uma noção a mais da realidade da qual fazem parte e não somente expectadores, mas sujeitos de suas vidas monólogo inicial do livro com este leitor ainda não seduzido pelo enredo nasce uma dupla livro/leitor cujas longas viagens de ônibus pelas estradas do interior passam a ter e a ler outros significados e significâncias.
Solicito que leiam um livro em cada trimestre, ao final terão lido ao menos três livros, uns desenvolvem o hábito da leitura e procuram ler jornais, outras obras e descobrem o inesgotável universo dos livros modificando sua maneira de enxergar e interagir com o meio em que estão inseridos, como perceber-se em diversas obras de Paulo Freire e histórias. Por outro lado se não derem prosseguimento a leiturização, passam, a saber, que são capazes de ler, pois já experienciaram, não são mais os mesmos que entraram no ensino médio, algum conhecimento foi atrelado à teia de relações da qual inerentemente todos nós fazemos parte.
Objetivos
A partir do trabalho com a escrita de relatos de memórias sobre o lugar em que se vive, tiveram-se como objetivos:
– incentivar a leitura de narrativas cujos personagens são jovens da idade de nossos alunos;
– motivar a interpretação dos textos lidos no sentido de identificar a relação do indivíduo com seu lugar;
– intermediar a relação de identidade do estudante com o seu lugar;
– provocar a escrita de memórias sobre o lugar em que vivo;
– realizar a mediação entre o livro, a leitura e o aluno;
– tornar possível a iniciação ao universo da leitura.
Metodologia
Discute-se o papel da literatura como mediadora da aprendizagem dos alunos e como meio de reflexão da realidade. A proposta de trabalho foi desenvolvida com a intenção de resgatar, deixar o registro ou valorizar a localidade em que residem os alunos, fazendo com que os registros fossem um lugar de memória dos espaços em que vivem, uma relação da sua identidade com aquilo que as lembranças permitiam produzir. Para tanto, a metodologia incluiu a leitura de textos literários que tivessem o lugar como parte da narrativa ficcional, tais como Minha Aldeia, do escritor Luís Augusto Fischer, e A Menina que Veio de Longe, da escritora Andréa Ilha, e baseou-se na escrita de memorias a partir do livro lido, buscando a inter-relação com o lugar da sua vida pessoal.
Assim, solicitou-se que os alunos produzissem textos sobre o seu lugar. Surgiram produções surpreendentes a partir do viés particular de cada um sobre o seu locus, o lugar responsável pela formação de sua memória e consequentemente de uma identidade própria e particular com o mesmo. A partir dos textos produzidos, busca-se pensar questões sobre a memória e a interferência do indivíduo em seu contexto a partir das leituras e reflexões realizadas em sala de aula.
Resultados e Discussão
De acordo com Pesavento,
o espaço urbano contém um tempo, encerra uma história e uma memória e supõe uma leitura, que faz da cidade como que um livro de pedra, como já disse Walter Benjamin. Nesta medida, cada forma, cada materialidade e traçado que marca a apropriação do espaço se constituem em um texto […] (PESAVENTO, 2004, p. 1595).
Assim, por ser a o lugar, o espaço que habitamos um objeto que pode ser lido, o que traz consigo uma história, uma memória, algo que o tempo modifica e que sugere sempre uma nova leitura, “uma espécie de espelho do mundo: um microcosmo do real, um macrocosmos do social, um espaço onde as coisas acontecem” (Pesavento, 2004), podemos inferir a partir dele nossa maneira de lidar e também nossa identidade com o mesmo.
Para Orlandi,
como a cidade constitui um espaço de interpretação particular, podemos perguntar: como os sujeitos interpretam a cidade, como eles se interpretam na cidade, como a cidade impõe gestos de interpretação, como a interpretação habita a cidade, etc (ORLANDI, 2004).
Analogamente, Süssekind comenta sobre a descrição de lugar a partir de sensações (SÜSSEKIND, 1990). Rocha e Eckert definem que “sou também a cidade que me contém, que me abriga, que eu interpreto” (ROCHA & ECKERT, 2006). Assim como na literatura, o sujeito que narra a cidade a interpreta segundo sua percepção, suas sensações.
Além disso, é como se aquele que narra um lugar o recortasse em pedaços. É como se ele dissesse “o pedaço é a cidade, aqui é meu lugar, e o meu lugar está diretamente ligado com a memória que tenho do lugar”. A importância da cidade se faz sentir nas lembranças como experiência de vida. A experiência que este narrador tem em determinado lugar faz com que tal lugar seja lembrado e descrito por ele daquela forma específica.
Partindo-se dessas questões, buscou-se desenvolver um trabalho de leitura a partir de dois livros infanto-juvenis que possibilitassem aos alunos pensar seu lugar a partir daquilo que leram, que sentiram ao seguir os passos de Dulce e de Filipe por seus lugares, suas cidades. Esses dois jovens experimentam diferentes sensações em relação ao local no qual estão inseridos e induziram os alunos a pensar semelhante ou diferentemente sua realidade, seu espaço.
Em A Menina que Veio de Longe, lemos os desafios de Dulce que precisa deixar seu lugar, no qual ela está acostumada com a escola, com as coisas do dia-a-dia, com os vários amiguinhos que tem. Esse lugar é a cidade de Belo Horizonte, da qual muito gosta e onde se sente totalmente tranquila, segura, em paz. A mudança é para a cidade de Porto Alegre, um lugar que ouviu dizer ser frio, diferente, de uma cultura com a qual talvez não se adapte. Tudo na nova cidade parece distante, assustador.
Numa leitura quase que semelhante, temos o menino Felipe de Minha Aldeia. Como o próprio nome já refere, a aldeia na qual vive, é para Felipe o lugar perfeito. Nas aulas de geografia insiste com a professora para saber que coisa importante, ou que característica faz de sua cidade um superlativo. Ao ouvir a resposta de que não há esse fato, o menino fica um tanto quanto triste.
A partir dessas leituras, os alunos foram convocados e instigados a escrever sobre seu lugar. Podemos observar no relato a seguir uma dessas produções:
O Lugar Onde Vivo […] No começo não queria fazer [o trabalho] que[m] insistiu foi a professora […] quando comecei a fazer o trabalho gostei tirei muitas fotos, mas não gosto de morar lá. Nessa fazenda só se come carne de ovelha o ano todo e tem marcação duas vezes por ano e vão os filhos, netos, noras e amigos, o [dono] vai duas vezes na semana [sic]. Tem um lugar bonito o cerro, mas não tem como subir lá [sic], mas existe só um morador antigo […], os outros não existem mais [sic]. […] Essa fazenda é do tempo dos escravos, mas não sei porque tem esse nome as famílias que moram lá são seis moram 5 na fazenda São Thomas. E só tem um morador que mora lá na outra fazenda [o dono] tem três fazendas no mesmo lugar, mas são uma no Pedregal e as outras no Boqueirão. Na fazenda o lazer é a cachoeira, mas não tem como tomar banho, pois é muito funda, muitas pedras; […] jogavam os escravos lá pra dentro [sic]. Acesso a atendimento médico não temos, pois é muito longe da cidade e se chove não tem como sair, pois tem dois arroios – um cruza na frente da casa e o outro nos fundos. Lá na fazenda tem criação de galinha, mas não pode matar – é só para ter no pátio, só matar para [o dono] que ele não come carne de ovelha. Tem o costume da camperiada e da plantação e criação de gado […] tem criação de ema; não como carne de ovelha só como arroz e feijão durante o ano todo. A casa são quinze peças, sendo a maioria de soalho e sete peças de azulejo, as quais é preciso limpar totalmente, e o soalho branco precisa passar clorofina. Eu não gosto de morar lá porque não pega sinal de celular só o residencial (aluna).
Conclusões
Ao escrever sobre o lugar em que vivem, os alunos demonstram diversos sentimentos. Algumas descobertas que emergem em suas apresentações tornam possíveis saber de onde vem aquele aluno e as marcas que a ele estão agregadas. Como seria possível saber que em uma fazenda de criação de gado de corte, todos os funcionários podem somente consumir carne de ovelha. A criação de aves é possível, mas somente o patrão pode degustar. Essas informações ou apenas detalhes de uma vida podem ser insignificantes para o contexto, mas através dessa escrita a aluna conseguiu verbalizar o que se passa durante o ano letivo em sua vida; como ela percebe o trabalho que realiza na propriedade e do que pode esperar para seu futuro.
A leitura desencarcera essa aluna de sua rotina de limpeza, serviços pesados, desafios de atravessar sangas, cumprir distâncias e ao chegar à escola de despir de ser uma serviçal e ingressar no vasto mundo das leituras que enfim conseguiu realizar. Aos poucos e com insistência realizou algo que para ela foi uma ação transformadora. Fotografar, registrar, escrever e apresentar para a escola a experiência que vive. Essa é apenas uma das possibilidades elencadas nesse trabalho. Saber reconhecer as potencialidades e as dificuldades existentes em suas localidades produz alunos mais conscientes e capazes de um olhar mais crítico e ao mesmo tempo com maturidade para futuras transformações.
Através da leitura os alunos também percebem que as mudanças são inerentes a vida e por elas passamos. Resgatar o aprendizado, amadurecer e aprender durante cada processo vivido torna cada aluno autor e protagonista de sua história de vida mediada pela leitura e da forma como ela reverbera ou ecoa em cada um de nós.
Referências Bibliográficas
BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. Tradução Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. (Trad. Diogo Mainardi) São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
FISCHER, Luis Augusto. Minha Aldeia. Caxias do Sul/RS: Editora Belas-Letras Ltda, 2008.
ILHA, Andréa. A Menina que veio de longe. São Paulo: All Print Editora, 2012.
ORLANDI, Eni P. Cidade dos Sentidos. Campinas, SP: Pontes, 2004.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Cidade, Espaço e Tempo: reflexões sobre a memória e o patrimônio urbano. In: Fragmentos de Cultura. Goiânia, v. 14, n. 9, p. 1595-1604, setembro/2004.
______. Memória, História e Cidade: lugares no tempo, momentos no espaço. In: ArtCultura. Uberlândia – MG, vol. 4, nº 4, p. 23-35, junho/2002.
ROCHA, Ana Luiza Carvalho da, ECKERT, Cornelia. A Cidade e Suas Crises, O Patrimônio pelo Viés da Memória: por que e como preservar o passado? In: Habitus. Goiânia, v. 4, n. 1, p. 437-454, Jan/jun 2006.
SÜSSEKIND, Flora. O Brasil não é Longe Daqui. O narrador, a viagem. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
Como citar este artigo:
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LIMA, Rosimeire Simões; KLUG, Marlise Buchweitz. Escrevendo a Partir da Memória do Local em que Vivo: um trabalho em sala de aula motivado a partir da literatura infanto-juvenil com temática no lugar. P@rtes. XXX
* Mestre em Educação pela UFPel; Professora Adjunta do Instituto Federal Farroupilha – RS; rosimeiresimoes@gmail.com.
* Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural da UFPel; Professora pela SEDUC-RS; marlise_klug@yahoo.com.br.