Jozaene Maximiano Figueira Alves Faria[*]
RESUMO: O presente artigo tem por objetivo apresentar um relato de experiência de vivências e atividades realizadas com alunos de 3 e 4 anos de idade, na Escola Municipal Educação Infantil Zacarias Pereira da Silva, a partir da relação das crianças com os brinquedos conscientizá-las sobre o bullying de maneira lúdica. As práticas pedagógicas desse relato estão fundamentadas na perspectiva histórico-cultural (VYGOTSKI, 1991; 2018) e na Sociologia e Antropologia da Infância (COHN, 2005); (DELGADO, MÜLLER, 2005).
PALAVRAS-CHAVE: Cotidiano escolar, Educação Infantil, Bullying, Diversidade, Brinquedos.
ABSTRACT: This article aims to present an experience report of experiences and activities carried out with students of 3 and 4 years of age at the Zacarias Pereira da Silva Municipal School of Education, from the relationship of children with toys to make them aware about bullying in a playful way. The pedagogical practices of this account are based on the historical-cultural perspective (VYGOTSKI, 1991; 2018) and on Sociology and Anthropology of Childhood (COHN, 2005); (DELGADO, MÜLLER, 2005).
KEYWORDS: School daily life. Child education. Bullying. Diversity. Toys
Introdução
Vivemos em uma sociedade marcada pelo imediatismo, pela facilidade de descartar as coisas, substituir o velho pelo novo, o feio pelo bonito. E isso está presente desde a infância, pois as crianças tendem a consumir mais por serem influenciadas pelas mídias. Nesse sentido, Kincheloe (2001, p. 394) “compreende as grandes corporações como produtoras da colonização da consciência infantil, assim como tendo o objetivo de transformar crianças em consumidoras.” (apud DELGADO; MÜLLER, 2005, p.5 – 6)
E o cotidiano escolar é também é permeado por essas situações que influencia os modos como as crianças convivem com adultos, com seus pares e com brinquedos. E essas interações podem gerar conflitos que refletem nas vivências dos alunos. Para lidar com essas tensões, especialmente no que refere-se a escolha de determinados colegas a outros ou alguns brinquedos e não outros, o professor pode buscar estratégias lúdicas para evitar que alunos sejam excluídos por outros em decorrência de características que promovam a discriminação ou bullying.
Nesse sentido, o relato de experiência que será apresentado tem por objetivo principal conscientizar as crianças sobre o bullying através da sua relação com os brinquedos. Como objetivos específicos elencamos: promover ações de combate ao consumismo infantil; estimular atitudes de respeito à diversidade.
Pressupostos teóricos
A Base Nacional Comum Curricular da Educação Infantil (BNCC) define como direitos de aprendizagem e desenvolvimento: conviver, brincar, participar, explorar, expressar e conhecer-se. (BRASIL, 2017, p.34). E partir desses direitos podemos pensar possibilidades que favoreçam o desenvolvimento integral dos alunos, considerando-os como sujeitos da própria aprendizagem em colaboração com os profissionais que atuam nas instituições de educação infantil.
As Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Infantil (DCNEI), em seu Art. 9º determina que “as práticas pedagógicas que compõem a proposta curricular da Educação Infantil devem ter como eixos norteadores as interações e a brincadeira.” (BRASIL, 2009, p. 4)
O cotidiano escolar da educação infantil é permeado por diversas situações que influenciam o desenvolvimento das crianças. E uma das mais importantes desses momentos se dá na relação que elas estabelecem com o brinquedo. “No brinquedo, a criança sempre se comporta além do comportamento habitual de sua idade, além de seu comportamento diário; no brinquedo é como se ela fosse maior do que é na realidade.” (VYGOTSKI, 1991, p.69)
Durante essas situações de brincar podem surgir alguns conflitos nos quais os alunos estabelecem suas preferências em relação a determinados colegas ou brinquedos e não outros. Esse contexto, exige uma postura investigativa do professor para mediar essas relações possibilitando a reflexão dos alunos e prevenir atitudes que contribuam para a discriminação e exclusão do que é diferente.
Além da intervenção do educador, foram criadas as leis nº 13.185, de 6 de novembro de 2015 que institui o Programa de Combate à Intimidação Sistemática (Bullying) e a lei nº 13.663, de 14 de maio de 2018, que altera o art. 12 da Lei nº 9.394/1996, para incluir a promoção de medidas de conscientização, de prevenção e de combate a todos os tipos de violência e a promoção da cultura de paz entre as incumbências dos estabelecimentos de ensino. Tal legislação prevê que as instituições educativas devem proporcionar aos estudantes situações de prevenção e combate à discriminação e exclusão.
Diante dessa necessidade da conscientização e combate ao bullying no ambiente escolar, o presente relato de experiência pretende abordar algumas atividades realizadas envolvendo o lúdico, brinquedos, livro de história e filmes infantis buscando compreender as crianças a partir do seu olhar. “Precisamos nos fazer capazes de entender a criança e seu mundo a partir do seu próprio ponto de vista.” (COHN, 2005, p. 8)
Considerando também que as crianças são capazes não só de reproduzir, mas também de reinventar a cultura através do lúdico, Delgado e Müller (2005, p. 163) afirmam que: “As crianças criam atividades baseadas no ato de brincar, na imaginação e na interpretação da realidade de uma forma própria dos grupos infantis.”
Desse modo, as atividades desse relato de experiência pretendem transpor as tensões presentes nas relações das crianças de maneira lúdica a sob a ótica das próprias crianças, especialmente nos momentos das rodas de conversa e brincadeiras.
- Metodologia
A partir da observação dos alunos nas brincadeiras ao preferirem brincar com alguns brinquedos e excluírem outros, pensamos em atividades lúdicas que favoreçam o combate ao bullying nos brinquedos, e também reflitam nas relações das crianças com seus pares. A partir dos campos de experiências e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento para a Educação Infantil estabelecidos pela BNCC projetamos algumas atividades que contemplem nosso objetivo principal: conscientizar as crianças sobre o bullying de maneira lúdica.
No campo de experiência Eu, o outro e nós elencamos os seguintes objetivos de aprendizagem e desenvolvimento:
Demonstrar atitudes de cuidado e solidariedade na interação com crianças e adultos; perceber que as pessoas têm características físicas diferentes, respeitando essas diferenças; compartilhar os objetos e os espaços com crianças da mesma faixa etária e adultos. (BRASIL, 2017, p. 41)
Para alcançar esses objetivos realizamos a contação da história: Lino, de André Neves, com os personagens do livro em pelúcia, conversando de onde vem os brinquedos e para onde eles vão. Em seguida, na roda de conversa problematizamos: Você tem muitos brinquedos em casa? Brinca com todos eles? O que você faz com eles quando não brinca mais? A partir dessas reflexões propusemos uma troca de brinquedos que os alunos de 3 e 4 anos. A maioria das crianças realizaram a permuta e ficaram muito felizes com os brinquedos, no entanto, alguns não quiseram participar e tiveram sua vontade respeitada. Essas atividades foram realizadas nos meses de setembro e outubro de 2019.
Dentro do campo Escuta, fala, pensamento e imaginação destacamos alguns objetivos: “dialogar com crianças e adultos, expressando seus desejos, necessidades, sentimentos e opiniões; criar e contar histórias oralmente, com base em imagens ou temas sugeridos.” (Ibid. p. 45-46) Para sensibilizar os alunos dos brinquedos que não brincam mais, e quais características um brinquedo deve ter para que sejam escolhidos por eles, no mês de outubro, assistimos alguns trechos do filme Toy Story 4. Dialogamos sobre alguns pontos importantes desse filme: O que é o Garfinho? É um brinquedo ou um lixo? Ele é feio ou bonito? Você gostaria de brincar com o Garfinho? Por que Bonnie gosta tanto dele?
A partir de uma necessidade que surgiu na roda conversa após o filme, cada um criou seu próprio Garfinho. Os alunos levaram brinquedo produzido por eles como lembrancinha do dia das crianças. Para construí-los, usamos garfo descartável, massinha, palito de picolé, espiral de plástico, canetas permanentes. Nesse contexto, abordamos o campo de experiência Traços, sons, cores e formas, com o objetivo de “utilizar materiais variados com possibilidades de manipulação (argila, massa de modelar), explorando cores, texturas, superfícies, planos, formas e volumes ao criar objetos tridimensionais.” (Ibid. p. 44)
O sentimento delas foi de encantamento e muita alegria em poder construir seu próprio brinquedo. Em tempos de brinquedos cada vez mais caros, o mais importante é o significado que as crianças produzem durante a brincadeira e não o valor financeiro gasto. Além disso, os alunos refletiram sobre o que um brinquedo aparentemente “feio” ou coisas que pareciam lixo, pode se tornar algo tão significativo para eles.
Figura 1 – Garfinhos construídos pelos alunos
Fonte: arquivo pessoal do autor
No mês de novembro, apresentamos outros brinquedos que fogem ao padrão esteticamente bonito, definido pelas mídias: os personagens principais do filme Ugly Dolls. Esse filme corrobora com as discussões acerca do combate a discriminação do que é diferente partindo de brinquedos. Inicialmente, realizamos uma roda de conversa, utilizando os personagens confeccionados em feltro, e perguntamos: O que você acharam dos brinquedos do filme? São “feios” ou “bonitos”?
Figura 2 – Personagens principais do filme Ugly Dolls confeccionados em feltro
Fonte: arquivo pessoal do autor
Depois de assistir ao filme, problematizamos as seguintes questões: quais personagens são bonzinhos e quais são maus? Por quê? Com quais deles vocês gostariam de brincar? A partir dos nossos diálogos e reflexões sobre o filme contribuiu para romper com preconceitos a sobre a aparência e perceber que a beleza que realmente importa é a que envolve bons sentimentos.
Considerações finais
As rodas de conversas instigadas pelos questionamentos das crianças e do professor revelaram alguns dados interessantes. Quando perguntamos sobre se elas tem muitos brinquedos, se brincam com todos eles e o que fazem com aqueles que não brincam mais, a maioria das crianças disseram possuem muitos e brincam com todos. Alguns alunos disseram que doam os brinquedos que não usam mais e a grande parte das crianças responderam que guardam seus brinquedos que não brincam. Tais afirmações corroboram para refletir sobre o consumismo desde crianças bem pequenas, “a cada nova etapa de desenvolvimento infantil – a cada idade – o mercado de capital transforma os motivos que levam as crianças a comprar.” (CARMO, 2015, p. 105) Diante disso, o professor pode contribuir para uma visão emancipadora dos estudantes, refletindo sobre o que realmente necessário possuir em relação aos brinquedos.
Quando dialogamos sobre o filme Toy Story 4 e seu personagem principal, a maioria das crianças consideram o Garfinho um brinquedo e não um lixo. Uma pequena porcentagem dos alunos o consideram feio e não gostariam de brincar com ele. O que mais chamou a atenção foi que grande parte dos estudantes responderam que Bonnie, a menina gostava muito do Garfinho porque foi ela quem o fez. Nessa perspectiva, notamos que o envolvimento afetivo com a produção do seu próprio brinquedo provoca sentimentos positivos nas crianças.
Outro ponto relevante das atividades realizadas foi sobre o filme Ugly Dolls, as crianças gostaram de brincar com os personagens principais confeccionados em feltro, não se importando com a aparência, alguns faltando dentes, olhos, formato diferente das pelúcias comumente vendidas nas lojas de brinquedos. Os alunos ficaram muito tristes e discordam da postura do jovem Lou ao chamar os demais personagens de feios e que nenhuma criança gostaria de brincar com eles pela sua aparência.
Portanto, nas vivências das atividades realizadas percebemos que o comportamento das crianças em relação ao que é diferente dos padrões estabelecidos foram se transformando. Inicialmente alguns alunos não queriam brincar com o Garfinho porque ele parecia um lixo, era feio. Ao final das atividades, elas não se importaram com a aparência dos personagens do filme Ugly Dolls, pois brincaram com eles e discordaram da postura discriminatória do personagem Lou em relação aos demais aos bonecos do longa-metragem.
Referências Bibliográficas
Livros
COHN, Clarice. Antropologia da criança. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
NEVES, André. Lino. São Paulo: Callis Ed.,2011.
VYGOTSKI, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora, 1991. 4ª edição brasileira.
Dissertações e teses
CARMO, A. C. F. B. A infância permeada pelo consumismo e os desafios ao trabalho docente. 2015. 195 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2015. Disponível em: < http://repositorio.bc.ufg.br/tede/handle/tede/5422#preview-link0>. Acesso em 20 out. 2019.
Artigos de periódicos
DELGADO, Ana Cristina Coll; MÜLLER, Fernanda. Em busca de metodologias investigativas com as crianças e suas culturas. Cadernos de Pesquisa. V. 35, n. 125, p. 161-179. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/cp/v35n125/a0935125.pdf> Acesso em 28 ago. 2019.
Trabalho em congresso ou similar
DELGADO, Ana Cristina Coll; MÜLLER, Fernanda. Abordagens etnográficas nas pesquisas com crianças e suas culturas. 28ª reunião da ANPED, 2005. Disponível em: <http://www.anped.org.br/biblioteca/item/abordagens-etnograficas-nas-pesquisas-com-criancas-e-suas-culturas> Acesso em 28 ago. 2019.
Publicação On-line – Internet
BRASIL, Base Nacional Comum Curricular. Educação Infantil e Ensino Fundamental. Brasília: MEC/Secretaria de Educação Básica, 2017.
_______, Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. Brasília: MEC/ Conselho Nacional De Educação/ Câmara De Educação Básica, 2009. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=3749-resolucao-dcnei-dez-2009&category_slug=fevereiro-2010-pdf&Itemid=30192>. Acesso em 30 set. 2019.
_______, Lei nº 13.185, de 6 de novembro de 2015. Institui o Programa de Combate à Intimidação Sistemática (Bullying). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13185.htm>. Acesso em 18 nov. 2019.
_______, Lei nº 13.663, de 14 de maio de 2018. Altera o art. 12 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, para incluir a promoção de medidas de conscientização, de prevenção e de combate a todos os tipos de violência e a promoção da cultura de paz entre as incumbências dos estabelecimentos de ensino. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13663.htm>. Acesso em 18 nov. 2019.
[*]Especialista em Psicopedagogia Escolar. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação/PPGED/UFU. Professora da Educação Infantil na rede Municipal de Ensino de Uberlândia, ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0499-8472 e e-mail: josy2209@yahoo.com.br.