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Quebra do silêncio na Floresta: historiografias de mulheres barbadianas e granadinas na Amazônia

QUEBRA DO SILÊNCIO NA FLORESTA: HISTORIOGRAFIAS DE MULHERES BARBADIANAS E GRANADINAS NA AMAZÔNIA.

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Josélia Gomes Neves1
1 Doutora em Educação Escolar (UNESP 2009). Docente do Curso de Pedagogia da Universidade Federal de Rondônia – Campus de Ji-Paraná. Líder do Grupo de Pesquisa em Educação na Amazônia. joshiva42@gmail.com
2 Profª de Educação Física da Rede Púbica Estadual. Técnica da Secretaria de Estado da Educação/SEDUC. Especialista em Psicopedagogia. Especialista em Psicologia da Educação. rshockness@seduc.ro.gov.br
Rosilda Shockness2

RESUMO: O presente texto trata-se de uma reflexão sobre a presença de mulheres barbadianas e granadinas no estado de Rondônia, a partir do recorte das histórias de vida de Catherine Thomas Shockness e Janeth Chalender. Neste estudo, foi possível reconstituir perfis autobiográficos dando voz a cada uma delas – através dos relatos de familiares, de fotografias, cartas e outros materiais pessoais, inspiradas, sobretudo nos trabalhos de Michelle Perrot (2001) sobre a produção de silêncios e invisibilidade das mulheres. Na oportunidade interrogamos a História Regional sobre o registro das ações das mulheres e, simultaneamente apresentamos um pouco de suas efetivas contribuições para a construção e o desenvolvimento da Amazônia.

PALAVRAS-CHAVE: Gênero. Barbadianas. Granadinas. Amazônia.

BREAKING THE SILENCE IN THE FOREST: BARBADIAN HISTORIOGRAPHY WOMEN IN THE AMAZON AND THE GRENAD.

ABSTRACT: The present text is about a reflection on the presence of barbadian and grenadines women in the state of Rondônia, from the clipping of histories of life of Catherine Thomas Shockness and Janeth Chalender. In this study, it was possible to reconstitute autobiographical profiles giving voice to each one of them – through the stories of familiar, of photographs, letters and other personal materials, inspired, over all in the works of Michelle Perrot (2001) on the production of silence and invisibility of the women. In the chance we interrogate Regional History on the register of the actions of the women and, simultaneously we present a little of its effective contributions for the construction and the development of the Amazon.

KEYWORDS: Gender. Barbadian. Grenadines. Amazon.

Por ocasião da Conferência Nacional de Mulheres em julho de 2004, realizada pela Secretaria Especial de Políticas Mulheres do Governo Lula, tivemos a grata satisfação de conhecer a pesquisadora feminista Schuma Schumaher, que até então só conhecíamos através de suas contribuições, entre outras da coordenação do Projeto Mulher 500 Anos atrás dos panos, que culminou com a publicação do conhecido Dicionário Mulheres do Brasil: de 1500 até a atualidade – biográfico e ilustrado, em 2000.
Na oportunidade, ao saber que morávamos em Rondônia, Schuma nos provocou com a possibilidade de desenvolvermos um estudo sobre as mulheres negras oriundas das Ilhas do Caribe que participaram do desenvolvimento da Amazônia. Levando em conta a inquietação que já tínhamos com a invisibilidade em torno da história destas mulheres, aceitamos o desafio e convidamos a professora e também descendente granadina, Rosilda Shockness para participar deste importante trabalho, pois compartilhamos da compreensão que:
Durante muito tempo, mulheres estiveram confinadas às sombras da vida privada. É em lugares escondidos que nós, historiadores, vamos buscá-las primordialmente. Daí o esforço em penetrar zonas isoladas, em buscar fontes de informação de caráter íntimo, como cartas e diários. Também dedicamos especial atenção aos gestos e cenários do cotidiano. O quarto, a cozinha, os conflitos em família, os costumes do dia-a-dia… Essa maneira de lidar com as coisas nos enriquece de saberes. Leva-nos a uma história das gentes, incluindo a dos homens. (PERROT, 2011, p. 1)3
3Entrevista Michelle Perrot. Disponível em:
http://www.marilia.unesp.br/Home/Pesquisa/cultgen/Documentos/feminismo_para_poucas_entrevista_michelle_perrot.pdf

Inicialmente, procuramos identificar fontes que possibilitassem a efetivação do referido estudo. Para tanto procedemos a um levantamento do material publicado a esse respeito e observamos o quanto é insuficiente. A esse respeito convém assinalar o estudo desenvolvido pela historiadora e poeta Nilza Menezes, Chá das Cinco na Floresta, publicado em 1998 que retrata o universo das mulheres barbadianas a partir dos relatos de familiares.
Pelas características da pesquisa, entendemos que seria apropriado utilizar os procedimentos metodológicos da História Oral por meio das contribuições de Bom Meihy (2001). Um dos objetivos a princípio que era muito claro para nós, é que gostaríamos de contribuir com a História de Rondônia e da Amazônia no sentido de possibilitar voz e feição a estas mulheres, Catherine e Janeth que representam e retratam um pouco da história das mulheres – não contada, não registrada e muitas vezes mal dita.
A palavra expressa pelas falas das protagonistas aqui apresentadas recuperam um pouco desta história lacunada e silenciada, proibida de ser, na medida em que:
Quando falamos sobre o que aconteceu, retratamos nossa vida comum. Atuamos na qualidade de cronistas de eventos que convergem em nossas vidas e se transformam em história através de nossas interpretações. Damos ao nosso público acesso a estas experiências por meio dos diferentes pontos de vista que apresentamos. Entrando por um momento nas perspectivas dos outros, os ouvintes conseguem perceber os relacionamentos sociais registrados nos eventos. (TOMSON, 2002, p. 284)

Decidimos então, que as entrevistas – em comum acordo com os colaboradores e colaboradoras – seriam fontes primárias para a elaboração dos perfis autobiográficos, o que contemplava plenamente nosso objetivo central: o de efetivamente possibilitar voz às mulheres. Sabemos que os relatos muitas vezes são resultados de outros, principalmente aqueles ouvidos na infância, situação em que se aproximam os testemunhos de Lídice Shockness Bentes e Christopher George Chalender, que funcionam como relatos sintetizadores, conforme demonstra Alistair Tomson:
As histórias que nos contam nas entrevistas são muitas vezes versões de relatos que foram criados logo após eventos e que foram usados e reelaborados pelos indivíduos ou no interior das famílias e das comunidades. Quando registramos estas histórias, não captamos apenas evidências inestimáveis sobre a experiência anterior e as histórias vividas. As próprias histórias representam a constante evolução dos modos pelos quais os migrantes constroem suas vidas através de suas histórias. (TOMSON, 2002, p. 130).

Então o que vai ser considerado neste trabalho são os relatos narrados na primeira pessoa (como se ainda estivessem entre nós), das mulheres, Catherine e Janeth – que embora já falecidas, tiveram a reconstituição de seus perfis autobiográficos elaborados em função das contribuições dos familiares. Fundamentadas nos estudos de Saffioti, entendemos que o silenciamento e a invisibilidade produzida sobre as mulheres da Amazônia pode ser interpretado como violência de gênero materializada pela ação patriarcal:
Violência de gênero é o conceito mais amplo, abrangendo vítimas como mulheres, crianças e adolescentes de ambos os sexos. No exercício da função patriarcal, os homens detêm o poder de determinar a conduta das categorias sociais nomeadas, recebendo autorização ou, pelo menos, tolerância da sociedade para punir o que se lhes apresenta como desvio. Ainda que não haja nenhuma tentativa, por parte das vítimas potenciais, de trilhar caminhos diversos do prescrito pelas normas sociais, a execução do projeto de dominação-exploração da categoria social homens exige que sua capacidade de mando seja auxiliada pela violência. Com efeito, a ideologia de gênero é insuficiente para garantir a obediência das vítimas potenciais aos ditames do patriarca, tendo este necessidade de fazer uso da violência. (SAFFIOTI, 2001, p. 1)

Não é objetivo nosso estabelecer comparações entre os relatos apresentados e os registros disponibilizados nas publicações da História Regional, como por exemplo, a construção da Estrada de Ferro Madeira Mamoré, no intuito de buscar uma suposta fidedignidade, porque como Ecléa Bosi:
Não dispomos de nenhum documento de confronto dos fatos relatados que pudessem servir de modelo a partir da qual se analisassem distorções e lacunas. Os livros de história que registram esses fatos são também um ponto de vista, uma versão do acontecido, não raro desmentidos por outros livros com outros pontos de vista; a veracidade dos narradores não nos preocupou:
com certeza seus erros e lapsos são menos graves em suas conseqüências que as omissões da história oficial. (BOSI, 1994, p. 37)

Afinal, o que sabemos das mulheres identificadas como barbadianas? Elas vieram do Caribe – uma região cheia de ilhas, recifes e atóis, conhecida como paraíso fiscal e natural, mas que tem convivido com muita pobreza – seus problemas sociais, econômicos e políticos são pouco explicitados. Alguns territórios são franceses, outros britânicos ou holandeses. Sua sustentação vem basicamente da agricultura e do turismo. A esse respeito, Azevedo e Herbold (1986) acrescentam que:
O que caracteriza o Caribe, ao longo de toda a sua história é a dominação estrangeira com todas as suas nefastas conseqüências; a dependência econômica, política e cultural, os problemas raciais e sociais e a fragmentação da região com seus países voltados quase que exclusivamente para as potências hegemônicas. (p. 97).

O que justificou a vinda dos povos caribenhos e mais especificamente – das barbadianas e granadinas a Porto Velho, pelo menos da maioria, foi a construção da Estrada de Ferro Madeira Mamoré, que deu origem, posteriormente ao município de Porto Velho. Em 1912, ocasião da conclusão da Estrada, a população do município era de cerca de mil pessoas. O município foi criado em dois de outubro de 1914 (SILVA, 1984).
Dentre os bairros existentes, destacava-se o Alto do Bode, um morro próximo do marco do Quilômetro Um da Ferrovia, onde moravam as famílias caribenhas ou popularmente chamadas barbadianas. A origem do nome do bairro foi dada pelos vizinhos brasileiros que não compreendiam a língua que ali falavam o inglês, conforme as afirmações do Senhor Elton Blackman4:
4 RONDÔNIA. Secretaria de Estado da Cultura, Esporte e Turismo. SECET. Centro de Documentação do Estado de Rondônia. Entrevista Elton Blackman. Porto Velho-RO, 1984.
Tem gente que diz que Alto do Bode foi porque se criava bode. Não, não. Foi assim e meus pais mesmo me contaram, que os guardas… Sabe ali onde é 1º Distrito? Mais pra cá era a cadeia. Veja a distância daí para o Alto do Bode. Tinha gente do Exército lá em cima. Os barbadianos metiam o terçado no outro, então quando começava o jogo, se tomava wisky, outros tomavam cachaça. Quando os guardas chegavam para prender, virava o bolinete – o inglês e o guarda coitado, não entendia nada. Voltava para a cadeia e dizia para o chefe dos guardas que era um tal de bolinete, um bodejado que nem bode, aí surgiu o nome Alto do Bode.

Neste bairro então, concentravam-se barbadianas, granadinas, entre outras. Boa parte destas mulheres contribuíam para o desenvolvimento local mediante as atividades domésticas, situação de Catherine Shockness – como a educação, alimentação e cuidado com os filhos e filhas e a administração geral da casa incluindo a criação dos animais domésticos, uma
atividade importante no qual a “[…] A sociedade não poderia crescer e se reproduzir sem esse trabalho não-contabilizado, não-remunerado da dona-de-casa”. (PERROT, 2001, p. 214).
Outras já atuavam na rua – espaço neste período extremamente limitado para as mulheres – na condição de vendedoras de bolos, doces, como professoras ou trabalhadoras empregadas na Ferrovia: cozinheiras, situação da Janeth Chalender, ou ainda numa função que segundo Michelle Perrot (1998), representou um importante espaço de conversação e expansão das mulheres para o espaço público que foi sua atuação nas sofisticadas lavanderias a vapor – uma das possíveis representações da modernidade na selva, parafraseando Francisco H. Foot (1988). A foto clássica do fotógrafo norte-americano Dana B. Merrill5 e que hoje se encontra no Museu Paulista da Universidade de São Paulo, „negras barbadianas e norte-americano da lavanderia a vapor em Porto Velho, Rondônia 1909 – 1910, ilustra esta afirmação.
5 BRASIL. Centro-Oeste. Catálogo da Exposição Ferrovia Madeira-Mamoré: trilhos e sonhos. Fotografias de Dana Merryl. Museu Paulista da USP. São Paulo, 1999. Disponível em
http://vfco.com.br/ferrovias/efmm/fotos/foto 0136. jpg Acesso em 05 /02/2005.
6 Inicialmente, os primeiros moradores da Ilha foram os índios arauaques e caribes. Os espanhóis conheceram à Ilha em 1518. De 1627 em diante, Barbados foi colonizada pelos ingleses, através dos escravos da África para o cultivo da cana-de-açúcar. A escravidão foi abolida em 1834. SAKALL, Sérgio. Barbados. Disponível em http://www.sergiosakal.com.br Acesso em: 30 de setembro de 2004.

1 . Janeth Chalender

Sou Janeth Chalender, nasci no dia 22 de setembro de 1890, na Ilha de Barbados6 e cheguei ao Brasil em 1910, tinha então 20 anos. Nesta época, era interessante vir ao Brasil, pois este país apresentava boas oportunidades de trabalho e politicamente para os negros o momento era favorável, pois a Lei Áurea havia sido publicada em 1888.

A razão da minha saída da Ilha foi em função de um fato muito triste que aconteceu com meu pai. Ele era possuidor de terras e criava gado, percebeu que estava sendo roubado e embora tenha denunciado, nenhuma providência foi tomada, então meu pai decidiu que ele mesmo
resolveria a situação e acabou matando os ladrões que estavam lhe roubando. Por causa disso, ele foi preso e condenado à morte, e morte na guilhotina, pois assim eram tratadas estas situações na Ilha de Barbados. Eu não podia suportar isso, então decidi vim para o Brasil com o meu namorado. Nesse tempo, fui morar na cidade de Belém.
Carismática, calada, rígida, justa, algumas das minhas características de acordo com a opinião das pessoas que conviveram comigo. Uma das minhas grandes amigas nesta terra foi a Dona Modesta Korbin, nossas conversas eram sempre na língua inglesa, com ela compartilhava o hábito inglês de fazer o chá das cinco horas, sim senhor, com bule e xícaras de porcelanas, é claro. Em minha casa eu tinha um lindo quadro do Rei Filipe II e da Rainha Elisabeth.
Minha forma de vestir refletia também uma certa influência da Inglaterra. Gostava muito das roupas bordadas, dos lenços, chapéus. Às vezes até mandava comprá-los em Barbados, juntamente com os meus produtos de maquiagem.
Minha atividade profissional foi como cozinheira na Estrada de Ferro Madeira Mamoré, em Santo Antonio e em Abunã, nesta época as terras de Porto Velho pertenciam aos Estados do Amazonas e Mato-Grosso. Também trabalhei nos barracões dos ingleses, cozinhei para o Mister Davis, importante empresário local. Meu trabalho sempre foi muito elogiado, gostava de fazer pães e era considerada uma excelente doceira. Meu prato preferido era peixe, principalmente à escabeche.
Em relação à religião, fui evangélica, freqüentei a 1ª Igreja Batista de Porto Velho, inclusive fui doadora do terreno onde o prédio da igreja foi construído, permanecendo até hoje. Tinha duas bíblias: uma em língua portuguesa outra em língua inglesa. Uma das minhas alegrias era cantarolar hinos, na língua inglesa, como aquele: Deixa a luz do céu entrar, deixa à luz do céu entrar, abre bem a porta do teu coração, deixa a luz do céu entrar…
Casei muitas vezes: com o Prescott, o João – que mais tarde ficou cego, o Eduardo, o Josef Chalender que conheci em Abunã e depois, o Alleyne.
Tive quatro filhos – Marcos Chalender, Dudeley, Kennedy Alleyne e um filho que me foi roubado em Belém, que nunca mais tive notícias dele e duas filhas Clarisse e Edite.
Meu neto Christopher, veio morar comigo dos 7 aos 18 anos de idade, ocasião em que foi servir o exército. Foi um tempo de muitas alegrias. Ele era um menino muito criativo e que me deu muito trabalho. Pelos relatos de George7, é possível inferir algumas de minhas
7 Citações transcritas do relato do Sr. Christopher George Chalender, neto de Dona Janeth Chalender, coletadas no dia 6 de janeiro de 2005 em Porto Velho Rondônia.

concepções de mundo: meu jeito de educar, meus valores, senso de justiça, rigorosidade, enfim…
Eu tinha aproximadamente 8 anos e tinha 3 atividades: estudava pela manhã no Colégio Duque de Caxias, à tarde vendia bolo e à noite estudava numa escola de reforço. Quando foi um belo dia, era uma 4a feira – eu havia saído de casa para estudar na casa da Prof a Deise e passou uma senhora chamada Dona Maria, filha também de barbadianos e viu um menino parecido comigo – era filho de pais separados e estava lá fumando, chamava-se Pitau. Não tinha iluminação na rua e Dona Maria cumprimentou: Oi, Jorge. Ele respondeu à saudação. Dois dias depois, meu pai mandou um recado para minha avó que queria falar comigo, a vovó me aprontou, arrumou minha roupa – eu não fui pro colégio de manhã porque eu tinha que falar com o meu pai, segui todo bonitinho, quando cheguei em casa, ele sentou, mandou eu também sentar, tirou uma carteira de cigarro continental sem filtro, acendeu um e me deu o outro, eu disse que não fumava, mas ele falou: Você vai fumar. Então ele me forçou a acender o cigarro, tossi muito. Ele pegou um caneco com água, derramou creolina dentro e misturou com o cigarro esmagado, e mandou eu beber. Tirou minha camisa, pegou o chicote, aí veio me batendo do bairro do Triângulo até onde fica o mercado central hoje. Chegando lá, pediu duas doses de cachaça – uma ele jogou nas minhas costas e esfregou sal e a outra ele bebeu, mandou que eu me vestisse e fosse embora. Ao chegar na casa da minha avó, no bairro Caiari, ela perguntou o porquê daquela situação. Foi investigar direitinho, conversou com ele quis saber o porquê daquilo. Meu pai relatou que a Maria tinha contado a ele que me viu fumando. Ela foi conversar com Dona Maria e perguntou o que tinha acontecido – o dia e a hora. Procurou a professora Deise que disse ter estas informações anotadas na caderneta – a hora de chegada e a hora da saída, ela conferiu a informação, retornou com D. Maria provou que não era eu que estava ali naquele momento e mandou chamar meu pai. Eu estava brincando, era um sábado, não tinha atividade escolar. Ele vinha chegando, fumando – escondeu o cigarro na fresta de uma cerca e foi falar com ela. Eles conversavam em inglês, dava pra entender um pouco. Ela tirou um pedaço de pau que sustentava a janela para evitar que o vento batesse e com ele deu uma surra nele, eu fiquei lá fora torcendo pra ele apanhar mais,pois minhas costas ainda doíam muito (risos).

Como qualquer uma outra criança daquela época, não tinha muita oportunidade de brincar com meus amigos, por isso quando a vovó ia dormir – pegar a sesta, eu aproveitava para brincar, só que sempre eu tinha que chegar antes dela acordar. Um dia estava brincando, agarrado com outras crianças, quando acidentalmente caí por cima do braço, torci e acabei deslocando a parte do cotovelo. Levaram-me para um senhor veterinário, o seu Loiola, ele conseguiu colocar meu braço no lugar, mas a região atingida ficou muito inchada. Isso foi num sábado. No domingo tinha que ir pro culto, para a escola dominical que era no próprio terreno da igreja. Ela passou minha roupa e tal e eu fui vestir a camisa, mas a manga não passava no inchaço do braço até que eu forcei e consegui vestir aí fui para a escola dominical, mas escondia o braço para ninguém perceber. Lá tinha uma porta de vaivém – tipo porta de bar de filme de bang bang e a Elóide Johnson percebeu: O que foi isso no teu braço? Eu disse: É que eu caí. Mas, tua mãe já viu? Já, ela já viu – eles chamavam a vovó de minha mãe. Terminou o culto, 11 da manhã do domingo, fomos para casa. Quando eu chego, a vovó
estava conversando com outras pessoas, lá alguém falou: O braço do teu filho está inchado. Ela perguntou o que havia acontecido. Respondi: Ah! Vovó, este braço aqui de vez em quando incha mesmo. Mas como incha, se você não caiu, nem nada? Não, isso foi por que eu caí da escada na casa da mamãe e de vez em quando ele incha. Está bom, então nem vamos almoçar, vamos lá saber esta história. Achei que a mamãe fosse me proteger dessa, entretanto ela falou: Não, ele nunca caiu de escada nenhuma. Na época se cozinhava a lenha, aí a vovó foi, pegou uma racha de lenha e me bateu assim mesmo com o braço inchado. Fomos ao hospital São José no mesmo dia e tudo a pé, lá fui medicado e pediram para fazer todos os dias o infra-vermelho. Eu ia todas as noites, mais ou menos às seis, sete horas da noite. Quando eu saía de casa, ia direto para o Cine Lacerda que na época estava em construção, não tinha nem telhado, só bancos e o pessoal assistia mesmo assim. Como as portas eram de tábua e tinha umas aberturas, lá era cheio de molequinhos da minha idade que também ficavam assistindo aos filmes, por isso só chegava em casa lá pras dez horas, quando acabava a sessão. Eu dizia: Ah! Vovó o médico demorou a chegar. Num belo dia eu estava brechando e quem estava atrás de mim? A vovó, que me pegou pela orelha até o Caiari, chegando lá, não dispensou – fui dormir de couro quente mesmo depois da surra que levei.

Sempre fui considerada uma excelente cozinheira, diziam que eu fazia pratos deliciosos. Teve um dia que fiz um peixe. Era um sábado e essa comida era para se comer também no domingo, pois pela manhã tínhamos que ir a igreja, para a escola dominical. Então nós almoçamos, fui deitar como de costume. Lá pelas quatro horas da tarde, saí para conversar com a Dona Modesta – uma outra barbadiana e meu netinho George ficou sozinho em casa.
Aquele peixe deve ter provocado muito ele, pois foi até à cozinha, abriu a frigideira, tirou um pedaço de peixe comeu. Depois foi de novo, pegou outro pedaço e comeu. Terminou com umas poucas postas de peixe na panela. Em seguida, fez uma marcas de rastros de gato em direção a elas. Quando cheguei estranhei aquilo: Mas, cadê o peixe daqui? Ele respondeu: Eu não sei. Mas, como não sabe? George falou: Ah! Olha aqui vovó, foi o gato, veja as marcas dos pés dele. Então como sabia que meu neto era muito arteiro, fiz uma perguntinha que ele se enrolou todo: Mas como o gato conseguiu colocar a tampa na panela de novo? Aí pronto, como ele não tinha resposta, tive que corrigi-lo pra ele aprender a não ser tão guloso!
As pessoas ficavam admiradas com minhas habilidades. Uma delas, quando já estava bem de idade, era costurar, consertava muito bem as roupas, fazia pequenos reparos sem nunca ter precisado usar óculos.
Uma vez, fiquei muito doente, e minha nora foi quem cuidou de mim, a Maria Alleyne, esposa de meu filho – Dudeley Alleyne, o Deli. Ela tinha sido enfermeira na
Bolívia, aliás, foi lá que a conheci quando fui fazer um tratamento – meu marido de então, o Eduardo, tentou me envenenar, colocando vidro pisado na minha comida. Cheguei a defecar sangue. Foi muita ruindade dele, mas eu sobrevivi. Neste tempo fiquei hospedada na casa da irmã mais velha da Maria minha nora, na Bolívia, ela é quem fazia, sempre que necessário a aplicação dos medicamentos, do soro e outras providências necessárias.
Quando adoeci – quase no fim da vida, fiquei acamada por cerca de um ano, eu tinha um grande desejo, sonhava com a possibilidade do meu filho Marcos Chalender ir até Barbados para desenterrar um dinheiro que estava lá debaixo de um pé de mangueira, pois só assim eu poderia descansar em paz. Infelizmente isso não foi possível. Morri com 85 anos de idade em 1975 na cidade que me acolheu e que eu ajudei a construir, Porto Velho – Rondônia.

2 – Catherine Thomas Shockness

Meu nome é Catherine Thomas Shockness. Nasci no dia dois de novembro de 1894 na Ilha de Granada8, localizadas nas Antilhas – Arquipélago do Oceano Atlântico na América Central. Cheguei em Porto Velho num grande navio em 1910, com meu marido, o marceneiro Charles Nathaniel Shockness. Meu marido foi contratado pelos ingleses para trabalhar na construção da Estrada de Ferro Madeira Mamoré. Tivemos dez filhos e filhas: Caetano, Silas, Arão, Paulo, Teófilus, Dionísio, Miriam, Alice, Lucinda e o Moisés.
8 Segundo Vitor Hugo, a Ilha de Granada foi descoberta em 1498 por Cristóvão Colombo. Passou a propriedade francesa, em seguida foi colônia francesa em função do Tratado de Paris, voltando a ser domínio francês e de novo colônia inglesa a partir de 1784. Sua independência foi conquistada, entretanto sem condições de se manter, voltou a ser dependente da Inglaterra. HUGO, Vitor. Os „barbadienses em Rondônia‟. Cadernos CEPAS. Ano 2. Nº 2. Jan/Jun. 1982. Belém – PA. Povos indígenas caraíbas, que se impuseram sobre os índios arauaques, dominaram a Ilha quando Cristóvão Colombo chegou nesse local em 1498. Em 1650, os franceses se apossaram do país, batizando-o de St. George’s. SAKALL, Sérgio. Barbados. Disponível em http://www.sergiosakal.com.br Acesso em: 30 de setembro de 2004.

Quando fiquei viúva e já estava com idade avançada, deixei minha casa para o meu filho Paulo cuidar, pois ele morava nas proximidades e fui morar com a minha filha Lucinda Shockness, seu esposo Walter Passos Bentes e minhas netas: Lídice, Lionídice, Lionilce e Liane. Junto com meu marido trabalhavam os filhos mais velhos: Silas, o Dionísio, o Arão e o
Caetano. Para ajudar nas despesas da casa eu fazia bolos para vender fora e também com esse dinheiro é que comprávamos os tecidos para fazer roupa para os nossos filhos, além dos sapatos. A vida era difícil por aqui, o Charles chegava sempre muito tarde da noite da Estrada de Ferro, na litorina, então eu providenciava o seu jantar. Essa era uma rotina constante, fazer comida, bolo, ordenhar vaca e definir tarefas para cada um dos meus filhos e filhas.
Muitas vezes meu marido tinha que sair de Porto Velho para Guajará-Mirim ou Abunã para cuidar das máquinas que davam problemas por lá. Outras vezes ia para a Bolívia fazer tratamento de saúde porque aqui não tinha um bom atendimento, então a mim cabia o trabalho de tomar conta da casa, sempre mantendo a porta trancada, porque muitas vezes ele passava à noite fora. Talvez por isso acabamos criando um código. Ao chegar de viagem, quando já estava muito tarde da noite, o Charles tinha que bater três vezes na porta: tum tum tum para eu poder abrir com segurança. Se a batida fosse diferente é claro, eu não abriria de jeito nenhum. Tínhamos uma espingarda – precisava defender os meus filhos, não é? Quando ouvia barulho estranho, já sabe, ia logo falando: Opa, eu vai atirar em quem entra aqui. Nesta época, era costume das famílias terem uma espingarda atrás da porta.
Um dos trabalhos difíceis que eu precisava fazer era a lavagem de roupas de casa – principalmente as trouxas de roupa do meu marido e dos filhos que trabalhavam na Estrada de Ferro Madeira Mamoré. Estas eram roupas muito pesadas, o tecido delas era pesado. Então era a trouxa de roupa na cabeça, a bacia com o sabão. As roupas brancas eram esfregadas com areia e buchas vegetais. Para chegar ao igarapé, não era fácil, pois o caminho era de difícil acesso – uma distancia de mais ou menos um quilômetro da nossa casa até lá – era preciso descer num barranco para chegar lá embaixo, com a trouxa de roupa e depois voltar com a roupa molhada que ficava muito mais pesada. E ainda tinha a parte de engomar, passar bem as roupas para ficarem armadas, principalmente as brancas utilizadas pelo meu marido no serviço.
Para comprar carne – não tínhamos gado na época – era preciso batalhar muito, pois naquele tempo ninguém escolhia carne, você tinha que pegar uma fila e com uma bacia na mão ou uma vasilha, o açougueiro colocava o que podia para cada família. Um dia o meu filho mais novo, que eu adotei o Moisés, foi lá buscar a carne. Ele chegou em casa com um pedaço que só tinha ossos e gordura.
Fiquei muito irritada: Iss é carne? Iss é carne? Vai aprender a comprar carne. Peguei o pedaço da carne e joguei no Moisés que se abaixou e acabou pegando na parede. Eu não entendia, porque nunca ia ao comércio. Não comprava roupas, sapatos, carne, eu sempre mandava os meus filhos. Então não sabia que era difícil conseguir alguma coisa.
Quando mandava alguém comprar algo no centro, eu marcava o horário da volta e tinha que voltar naquele horário determinado, não podia demorar. Não gostava de ver filho meu por aí, andando, para não ficar falado. Naquele tempo, mulher, menina, tinha que andar com os irmãos. Menina, naquele tempo não precisava estudar, não precisava estudar mesmo. Por que estudar? Para fazer carta para namorado? Era essa a minha concepção, assim que eu pensava.
Quando fui morar na casa da minha filha Lucinda eu tinha o meu quarto, uma suíte que ela mobiliou para mim. Vivi aqui até a noite de minha morte. Fui uma pessoa zelosa e achavam que eu era muito vaidosa. É verdade, não podia ver ninguém com o cabelo assanhado, lá pegava o pente e ia arrumar o cabelo, fazendo trança em todo mundo. Sempre gostei de me vestir bem, quando amanhecia o dia já estava pronta. Nunca ninguém da casa me viu com trajes menores, não, eu sempre usava um traje de gringo, americano: meia, chinelo, um vestido de flanela com um outro vestido por cima, sempre com flores ou então com estampa, estilo americano com manga até o cotovelo e a saia sempre abaixo do joelho, quase no pé, o cabelo sempre arrumado para tomar o café da manhã, assim, impecável.
Minha filha Lucinda enfermeira, trabalhava pela manhã, tarde e noite. Durante o dia, trabalhava na área da saúde, à noite como professora na Escola Normal Carmela Dutra, onde se aposentou. Ela trabalhava muito em hospital e teve uma época que foi para a Secretaria de Saúde. Ela contratava babá e empregada para ajudar a tomar conta das meninas, minhas netas, mas eu nunca deixava ninguém se aproximar da cozinha, não, a cozinha era comigo. Fazia bolos, a minha berinjela era sagrada, sempre adorei berinjela, eu chamava brinjela, batata-inglesa, inhame, taioba, banana cozida – quando não era cozida, era assada, a berinjela era frita, comia também muitas raízes cozidas. Adorava os chás – chás de folha de azeitoneira, graviola, melão são caetano, por isso acho que nunca precisei de médico. Tive que ir ao médico apenas uma vez, a contragosto, por causa de um problema de útero, acho que bexiga caída, uma coisa assim, porque tive muitos filhos, sem auxílio médico, sempre me curava com plantas medicinais.
Não fui uma mulher de freqüentar consultório médico. Uma vez, a Lucinda queria me levar para conversar com um doutor, pois estava me queixando muito, mas eu escondia o que tinha, nunca falava. Como a minha filha sempre trabalhou na área de saúde, desconfiava que eu tinha alguma coisa que incomodava ligada à parte ginecológica. Pois não é que ela marcou uma consulta com o Dr. Noel Bispo? Dizem que trabalha como médico até hoje em Porto Velho. Ah! Por causa disso, eu fiquei muito brava com a minha filha, e quando voltamos do
médico, fui acertar as contas, era a Lucinda correndo pela casa, eu atrás dela, falando: Opa, eu não saber que tinha uma filha tão sem vergonha!
Eu tinha um zelo com as coisas da casa da minha filha Lucinda. A princípio não entendia, não sabia porque o caminhão passava lá fora. Quando compreendi que o caminhão passava num determinado horário para recolher o lixo, eu falava assim para as minhas netas: minin, pegue o saco de lixo, que o lixeira estar a passar – elas tinham que pegar os sacos de lixo e sair correndo, porque o lixeiro já estava lá na frente da casa: Minin! Eu sempre dizia assim: Minin venha pentear o cabelo! Minin, o lixeiro está a passar aí! Minin, vou pegar você! A minha neta Lídice muitas vezes se escondia debaixo da cama quando eu queria pegá-la com o meu cipó de cuia – que sempre mantinha atrás da cama para corrigir estas meninas levadas. Sempre fui severa, a correção tinha que ser ali.
Lia diariamente a minha bíblia, escrita em língua inglesa. Gostava muito de cantar hino do cantor Feliciano do Amaral. Cheguei aqui no Brasil católica, mas fui evangelizada na época, pelo conhecido apóstolo da Amazônia, o pastor americano Eurico Nelson que fundou a igreja Batista em Porto Velho. Depois que me converti fui presença assídua na igreja ao morrer, meu corpo foi velado lá.
Uma coisa que eu gostava era de ficar na sala, sentada numa cadeira de palha para assistir o Jornal Nacional: Opa, eu vai assistir o Jornal Nacional. Muitas vezes não era nem para saber notícias daqui – que eu não entendia muito bem, mas era para ouvir notícias de fora, da minha terra, a Inglaterra. Eu ficava superemocionada, chegava até a chorar na cadeira de embalo quando tocava um hino de fora.
Depois do Jornal Nacional, assistia a uma novela que eu gostava muito, Pai Herói e que tinha um ator que hoje todo mundo conhece, o Tony Ramos. Para mim, era o André Cajarana, como eu o admirava. André Cajarana pra cá, André Cajarana pra lá, era o meu ator predileto. Os outros programas de televisão, não suportava, principalmente aqueles que exibiam mulheres seminuas, como o tal do Programa do Chacrinha. Para mim este programa era um desvio de conduta, pois mostrava coisas horríveis na televisão. Eu dizia assim: Se ele não se arrepender…
Tinha muita saudade dos meus parentes da Ilha de Granada, mas não comentava muito, não, sempre fui um pouco fechada, não conversava muito, mas sempre que eu lembrava de alguma coisa, ou tinha notícias de lá, das ilhas ou da Inglaterra era através do Jornal Nacional.
Sempre fui muito lúcida, morri lúcida. Não estava doente, o médico constatou que eu tinha angina no braço esquerdo. Sempre fui boa de saúde, tomava meus chás – vivia tomando
o meu remedinho, não era remédio controlado, e sim o chazinho. Tinha o hábito de tomar o chá das cinco, como até hoje se toma, o chá com os biscoitos, com bolo, fazia suenblat que até hoje a minha filha mais velha, a Alice faz. Sempre fui de lanchar às cinco horas da tarde, mantinha os hábitos ingleses.
Em tudo sempre fui pontual: ir para a igreja, voltar da igreja, sair. Zelosa limpa mesmo – tem pessoa que com a idade começa a dizer que não quer tomar banho – eu nunca fui assim, morri com noventa e seis anos e lúcida. Morri me despedindo de todo mundo. De manhã comecei a me despedir, parecia que já sabia que eu ia morrer. A Lucinda não entendia: Mas mamãe o que é que você tem? A minha filha chorava na varanda: Que é que você tem mamãe? Por que está chamando o Paulo, o Teófilo, o Dionísio? Chamei filho por filho na varanda para conversar.
A minha neta Lídice neste dia ficou admirada porque nunca tinha visto todo mundo junto, a família toda reunida era muito difícil. Então chamei a minha filha Alice, meu filho Dionísio, meu filho Paulo, meu filho Teófilo… Chamei a família toda. Vieram os meus netos, todo mundo para cá e conversando com um por um na varanda, eu recomendava: Fulano faça isso, respeite o mais velho! Cuide de seus filhos. Tomei café, mas não almocei. Nesse mesmo dia, à tarde, fiquei lá na varanda, como se estivesse assim, aérea… Olhava para o céu e ficava quieta.
Em minha cama, deitada eu sorria, como se tivesse vendo alguma coisa, sorria olhando para cima. Lídice ficou comigo no quarto. O meu filho Moisés, estava no garimpo, avisaram ele pelo rádio quando chegou eu já tinha falecido. Chamaram o médico, que tirou ali mesmo na cama um eletrocardiograma, me deu um remedinho e saiu. Disse que tinha chegado a minha hora, que os batimentos cardíacos só estavam diminuindo. Morri de madrugada. Minha filha ainda chamou pelo meu nome, fez uma massagem, mas eu já havia morrido. Morri lúcida e não morri triste, porque morri sorrindo aqui nesse quarto.
Enfim, dizem que fui uma grande administradora do lar, uma mulher muito trabalhadora, pois determinava as coisas na ausência do meu marido. Com a ajuda dos meus filhos e filhas, plantei fruteiras, hortaliças, raízes, cuidei da criação de suínos, caprinos, bovinos e aves.
Fazia farinha para vender e também para o consumo de casa, assava bolos, doces, salgados que os meus filhos vendiam lá na pedreira. Costurava para a família e fazia uso constante das ervas medicinais. Isso é um pouco da minha história, a história de Catherine Thomas Shockness.

Considerações Finais

Em regime de dominação de consciências, em que os que mais trabalham menos podem dizer a sua palavra e em que multidões imensas nem sequer têm condições para trabalhar, os dominadores mantém o monopólio da palavra, com que mistificam, massificam e dominam. Nessa situação, os dominados, para dizerem a sua palavra, têm que lutar para tomá-la. Aprender a tomá-la dos que a detém e a recusam aos demais é um difícil, mas imprescindível aprendizado – é a „pedagogia do oprimido‟. (FREIRE, 1988, p. 21)

O primeiro trabalho de reconstituição biográfica por nós elaborado foi o de Catherine Thomas Shockness, a partir dos dados presentes nos relatos de suas netas Lídice Shockness Bentes e Rosilda Shockness, sua nora Alcira Shockness e de uma entrevista de seu filho Dionísio Shockness9. Os relatos de Alcira e Rosilda nos aproximaram da imagem de Catherine. A excelente narrativa de Lídice buscada na infância a respeito de sua avó, foi fundamental para apreendermos um pouco de seu jeito de ser, de pensar e de viver, bem como a conversa informal com Seu Dionísio Shokcness e a leitura de sua entrevista em um jornal local.
9 RONDÔNIA. Jornal Diário da Amazônia. Entrevista DIONISIO SHOCKNESS. O maquinista de 1ª Classe. Porto Velho, 04/09/04.

Em relação ao trabalho de Janeth, foi extremamente gratificante conhecer a sua história por meio das excelentes e engraçadas narrativas retiradas das memórias de infância do neto Chistopher George Chalender, as lembranças de sua neta Janeth Rosalin Chalender Ferreira, os testemunhos de suas noras Raimunda Chalender e Maria Jonhif Rosendy Alleyne. Vale ressaltar ainda, a ajuda fundamental de sua bisneta Vana Izabel de Araújo Chalender – nossa querida ex-aluna do Curso de Pedagogia da UNIPEC responsável pelos contatos com a família, possibilitando a realização das entrevistas.
Sobre o assunto, levamos em conta as palavras de Paulo Freire para assim compreender esta prática tão comum que acontece na relação dominante e dominado, por ele qualificada como o ato de, o oprimido hospedar o seu opressor – mantê-lo dentro de si, no comando de suas ações:

Há, por um lado, em certo momento da experiência existencial dos oprimidos, uma irresistível atração pelo opressor. Pelos seus padrões de vida. Participar desses padrões constitui uma incontida aspiração. Na sua alienação querem a todo custo, parecer com o opressor. Imitá-lo. Segui-lo. Isso se verifica, sobretudo, nos oprimidos de classe „média‟, cujo anseio é
serem iguais ao „homem ilustre‟ da chamada classe „superior‟. (FREIRE, 1988, p.41)

Refletir a respeito dessa admiração das mulheres barbadianas e granadinas e dos homens também, para com a cultura britânica, em um primeiro momento pode representar uma aparente negação da sua cultura em função daquela, entretanto, permite a problematização destas questões consideradas muitas vezes acomodadas – como os mitos e as idealizações que às vezes sustentam por muito tempo a identidade individual e coletiva das pessoas. A esperança de superação desta situação, para o educador Paulo Freire, é possível:

O grande problema está em como poderão os oprimidos, que „hospedam‟ o opressor em si, participar da elaboração, como seres duplos, inautênticos, da pedagogia de sua libertação. Somente na medida em que se descubram „hospedeiros‟ do opressor poderão contribuir para o partejamento de sua pedagogia libertadora. Enquanto vivam a dualidade na qual ser é parecer e parecer é parecer com o opressor, é impossível fazê-lo. A pedagogia do oprimido, que não pode ser elaborada pelos opressores, é um dos instrumentos para esta descoberta crítica – a dos oprimidos por si mesmas e a dos opressores pelos oprimidos, como manifestações da desumanização.
(FREIRE, 1988, p. 32)

As mulheres barbadianas e granadinas, bem como os homens ao se identificarem com a Inglaterra, elegendo este país como a sua terra natal, sintetizado na manutenção dos hábitos, podem simultaneamente produzir a ocultação do duro processo que é o de se transformar num indivíduo considerado inglês ou inglesa. A esse respeito, afirma Nilza Menezes: “A população negra barbadiana adquirira um certo orgulho através dos conceitos trazidos pelos missionários protestantes que já no começo da década de 1820, haviam convertido quase que a totalidade dos escravos às igrejas Metodista, Morávia ou Anglicana”. (MENEZES, 1998, p. 12)

Enfim, compartilhamos um pouco de um cotidiano duro e difícil enfrentado anonimamente pelas mulheres. O silêncio e a negação da sociedade para com as suas contribuições chega a ser constrangedor. Parece que não bastava parir, educar filhos e filhas, administrar a casa, contribuir no orçamento doméstico. Ficam as marcas da negação do trabalho doméstico, as agruras do confinamento. Talvez pelo fato da dona de casa não ser remunerada, essa atividade não tem valor, daí ser desconsiderada socialmente. Mas acreditamos num tempo de possibilidades e não de determinismos, como nos ensinou Paulo Freire, até porque se não acreditarmos que a mudança é possível, corremos o risco de ficar imobilizados e imobilizadas no decorrer da história.
O importante de construir trabalhos desta natureza é o sentimento que toma conta de nós, ao avaliarmos que somos devedoras e devedores destas mulheres que certamente não atuaram ou tiveram a visibilidade de Chiquinha Gonzaga ou Leila Diniz, mas que no insuspeito cotidiano doméstico, contribuíram para abrir portas que se estendem a nós e hoje beneficiam toda a sociedade. Nos ajudam sobretudo a compreender quem somos hoje, nossa identidade e o percurso que já caminhamos, bem como avaliar o muito que ainda falta.
Embora já tenhamos feito esta afirmação anteriormente, não temos grandes heroínas a apresentar neste trabalho – mulheres que apresentam perfis de rompimento com a ordem social posta ou que participaram de movimentos feministas, no modelo que conhecemos – até porque como já aprendemos com Simone de Beauvoir (1980) que não se nasce mulher, mas processualmente vamos nos tornando mulheres, o que significa inferir que os conceitos de masculino e feminino são construções histórico-culturais, comportamentos socialmente aprendidos, que acabam por condicionar desigualmente homens e mulheres no desenvolvimento de suas relações.
Nos relatos apresentados, procedemos a uma análise partindo do conceito de cotidiano na perspectiva de Agnes Heller (2000) com a compreensão de que “a vida cotidiana não está „fora‟ da história, mas no „centro‟ do acontecer histórico: é a verdadeira „essência‟ da substância social” (p. 20). Poderemos ver muito mais ao constatar que o conhecimento histórico não se limita a marcos consagrados, mas a todo conhecimento sobre o modo de vida humano. Sabemos que a história individual não expressa a totalidade de uma época, mas apresenta-se como a experiência de um sujeito histórico, enraizado num determinado tempo. Os relatos atestam que estas pessoas constituem o grupo social e são por ele constituídas. Para Michele Perrot, nenhum processo histórico está descolado, ou age por si mesmo, é necessário:

[…] complexas interações em que as mulheres desempenharam seu papel ora individualmente, na obscuridade de gestos desconhecidos de vidas anônimas; ora coletivamente, através de irrupções espontâneas revoltas de subsistência, greves… ou de ações mais organizadas; surgimento pela caridade e pela filantropia, de uma cidadania social que torna ainda mais berrante a deficiência do político; feminismos de todos os tipos que em sua intermitente continuidade, denunciam as injustiças e as contradições da democracia. (PERROT, 1998, p. 93).

A construção dos relatos de Catherine e Janeth talvez ajudam a esclarecer questões sobre a contribuição das mulheres caribenhas, mais conhecidas como barbadianas no Estado de Rondônia – histórias que foram negligenciadas, postas de lado, desconsideradas. Certamente um pouco de suas suas falas agora ditas, podem, quem sabe possibilitar a elaboração de novos saberes que interrogam, questionam as explicações lineares e assim provocam uma revisão contribuindo para se criar um novo jeito de ser, fazer e contar a História, inclusive a das mulheres.

Referências

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MENEZES, Nilza. Chá das cinco na floresta. Campinas: Editora Komedi, 1998.

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