Allexsander de Souza *
Hoje quando vejo os desenhos de super-heróis com meus filhos, lembro-me de ter manifestado um superpoder que infelizmente só ocorreu um dia. Pena! Teria sido muito útil, mas a única vez que funcionou, salvou minha vida.
Tinha 8 anos. Seguia para casa de minha avó, Dindinha, a pé. Era a primeira vez que seguia sozinho. Desta forma, sozinho, notei muitas coisas que não notara antes. Contemplava árvores, pedras, arbustos e, no meio do caminho, uma cerca: alta, bem fechada, com diversas ripas horizontais entrecruzadas com pequeno espaço entre elas. Apenas para que entendam esta aventura: entre uma ripa e outra mal cabiam as pontas dos meus pezinhos, os quais encaixei para escalar. Uns 2 metros de altura. No topo, olhei e exclamei maravilhado:
– Que lindo!
Era um pasto e, nem sei como, pois, raro era encontrar no sertão um pasto tão verdinho daquele. Encantando, resolvi fazer a escalada de descida para o outro lado encaixando os meus pezinhos e descendo. Descida difícil, pois lembrando, as ripas estavam muito juntas. Desci.
– Que lindo! Exclamei novamente.
O pasto, o sol. Corria livremente. Brincava a luz do sol e ao vento batendo no meu rosto.
Corri até o meio do pasto que dava mais ou menos uns 500 metros quando na outra ponta avistei o morador do cercado, o dono. Um bovino. Lembro-me hoje que era um boi, mas naquele dia naquela condição me pareceu um enorme touro chifrudo, dos mais mortais, partindo para me despedaçar.
Logo imaginei o povo conversando:
– Lembra de Loro?
– Loro? Qui Loro?
– Loro o menino mais véio de Seu Antonho
– Ah! O Loro! Que sucedeu?
– Homi! O touro pegou o menino e virge! Só sobrou inteiro a butina do pobre!
– Jura! Coitado!
Este diálogo se passou em uma fração de segundos em meus pensamentos, pois na fração seguinte já estava correndo como um louco. O animal, também enlouquecido e enfurecido corria na minha direção com uma determinação descomunal.
Naquele dia com certeza bati dois recordes: velocidade de corrida em metros por segundo e recorde de fervorosa manifestação religiosa em rezas por segundo:*
Corria!
– Ah! Meu padinho Ciço! Protegei-me da besta fera!
Corria! Corria
– Virge Maria, mãe de nosso menino Jesus socorrei-me!
Corria! Corria! Corria!
– Menino Jesus que ampara todos os meninos deste mundo, olhai por mim!
– Padinho livrai-me da besta fera! Prometo ser um bom menino! Obedecer Papai, Mamãe e ser atencioso e bondoso com Vovó Dindinha!
Mal acabei de expressar esta reza e, avistei a maldita cerca.
– Diacho! Como vou passar pela cerca? Diacho não! Perdoa Padinho Ciço!
Não se via o outro lado tão pouco era o espaço entre as ripas. No alto da cerca, miragem provocada pelo intenso pavor ou manifestação autêntica da minha fé: Padinho Ciço de braços abertos. Pronto para me receber!
Expressei ali mais uma vez todo o meu fervor religioso:
– Padinho Ciço! Se não escapar desta recebei-me aí no céu, mas por Nossa Senhora Aparecida, mãe do menino Jesus, livrai-me desta! Livrai-me da besta fera!
Já sentia o bafo da besta fera no meu cangote. Não olhava para trás, mas sentia seu bafo o seu trotar ensandecido de patas estremecendo o pasto.
Não imaginava como passar pela cerca: Escalaria? Impossível! Passaria pelo vão entre as ripas? Impossível! Morreria? Com certeza! Estraçalhado pela besta fera.
Seus chifres certamente me pegariam e dividiriam o loro em diversos.
…50 metros, 40 metros, 30 metros, 20 metros, 10 metros…fechei os olhos e me projetei contra a cerca para tentar passar pelo impossível vão. Mirei um vão que não passaria com certeza. Senti o bafo da besta fera balançar meus cabelos…glup! Impossível! Não vai dar!
PUFFFFFFFFFFF!!
Surgi do outro lado! Não! Não tinha passado impossível. Olhei para trás para ver a cerca. Mal conseguia ver a besta fera por entre os vãos da cerca.
Só havia uma maneira de passar: Padinho Cico ouviu minhas preces e me deu o poder de atravessar madeira. Balancei a cabeça como que não acreditando. Suspirei! Ufa! Ainda ouvi uns grunhidos da besta fera se afastando decepcionado da cerca. Havia perdido sua presa.
Eu?? Caramba! Eu conseguia atravessar cercas, madeira.
Segui mais do que rápido minha jornada aliviado até a casa de Dindinha e lá tentei mais algumas vezes naquele dia. Cerca, parede. Parei quando arrumei um galo na cabeça na minha quinta e derradeira tentativa de atravessar uma porta da casa de Dindinha, que não enxergava, mas sabia que eu estava fazendo arte!
– Loro! Que tá fazendo menino. Tu tá maluco! Vai machucar!
Tinha perdido o meu superpoder. Tudo bem. Naquela noite agradeci no escuro do quarto na casa de Dindinha, no meu colchão de palha:
– Padinho Cico, Virge Maria, Menino Jesus! Obrigado por me salvarem hoje. A todos vocês! Especial agradecimento ao Senhor meu Padinho Ciço, pois tenho certeza que foste tu quem me deste o superpoder de atravessar madeira no momento que mais precisei. Tudo bem que foi só uma vez. Até gostaria de continuar com o poder, mas hoje, salvou minha pele de ser estraçalhada pela besta fera do pasto verdinho. Obrigado!
– Loro! Exclamou Dindinha! Tá cochichando o que menino?
– Estou rezando vó!!
– Então reza logo menino e veja se dorme!
– Ave Maria, cheia de graça, senhor é convosco…
* Profissional de Tecnologia da Informação. Gestor de TI. Especialista em Segurança pela FMU. E-mail: allexsandersouza@uol.com.br