
Justiça não é apenas a forma certa de distribuir as coisas. Ela também diz respeito à forma certa de avaliar as coisas.
— Michael Sandel
Margarete Hülsendeger

Michael Sandel, professor da Universidade de Harvard e um dos filósofos políticos mais influentes da atualidade, tornou-se conhecido por transformar debates filosóficos complexos em discussões acessíveis e instigantes. Em Justiça: O Que é Fazer a Coisa Certa[1], publicado em 2009, ele apresenta diferentes concepções de justiça e suas implicações na vida cotidiana. O autor analisa teorias como o utilitarismo, o libertarismo, a teoria da justiça de John Rawls e a visão comunitarista, sempre partindo de dilemas reais para estimular o leitor a refletir sobre o que é, de fato, agir de forma justa.
Ao longo do livro, Sandel explora teorias fundamentais da filosofia política. O utilitarismo, por exemplo, defende que a justiça deve se basear na maximização da felicidade coletiva, mesmo que isso exija sacrifícios individuais. Já o libertarismo valoriza acima de tudo a liberdade individual e a propriedade privada, rejeitando interferências do Estado. Em contraste, a teoria de John Rawls sugere que uma sociedade justa é aquela que protege os menos favorecidos. Para isso, Rawls usa o conceito do “véu da ignorância”: uma ideia que propõe que as regras sociais devem ser criadas sem que as pessoas saibam qual posição irão ocupar na sociedade — isso garantiria mais imparcialidade.
Essas discussões filosóficas se conectam diretamente à realidade brasileira. Desigualdade, injustiça social e conflitos morais estão presentes no debate público nacional. A lógica utilitarista, por exemplo, aparece quando políticas públicas priorizam o crescimento econômico, mas negligenciam direitos básicos como educação e saúde de qualidade para todos. Já a disputa entre a defesa do livre mercado e a necessidade de garantir equidade social marca temas como privatizações, reforma tributária e cortes em programas sociais. A atualidade das reflexões de Sandel é evidente nesses conflitos.
A teoria de Rawls também encontra eco no Brasil, especialmente na defesa das políticas de ações afirmativas. Medidas como cotas raciais e sociais em universidades e concursos públicos são frequentemente criticadas por supostamente ferirem a meritocracia. No entanto, sob a perspectiva rawlsiana, essas ações são justificadas por buscarem corrigir desigualdades históricas e ampliar o acesso a oportunidades. Sandel reforça essa visão ao sustentar que uma vez “que o ‘véu da ignorância’ fosse retirado e a vida real tivesse início, não íamos querer ser vítimas de perseguição religiosa ou discriminação racial”. Em um país marcado pelo racismo estrutural, essa reflexão é extremamente pertinente.
Outro aspecto importante do livro é a crítica à ideia de que o sucesso individual decorre apenas do mérito pessoal. Sandel questiona essa crença ao afirmar: “Pode ser que essa crença generalizada — de que o sucesso deva ser visto como um prêmio pela virtude — seja simplesmente um erro, um mito que deveríamos procurar derrubar”. No Brasil, esse mito é recorrente: muitos acreditam que basta esforço pessoal para ascender socialmente, ignorando barreiras estruturais como disparidade educacional, origem social e discriminação. Como resultado, uma visão meritocrática extrema acaba justificando a manutenção de desigualdades históricas.
Sandel também questiona a visão liberal que define justiça apenas como liberdade de escolha. Para ele, uma sociedade justa exige mais do que autonomia individual – requer um compromisso coletivo com a equidade. Por isso ele diz que não acredita “que a liberdade de escolha — mesmo a liberdade de escolha em condições justas — seja uma base adequada para uma sociedade justa”. No contexto brasileiro, essa questão aparece em debates como a gratuidade do ensino superior, a universalização do acesso à saúde e o papel do Estado na redução da pobreza. Se a justiça dependesse apenas das escolhas individuais, problemas estruturais jamais seriam enfrentados.

Por fim, Sandel destaca que ignorar o peso da história nas questões sociais leva a uma visão distorcida da responsabilidade individual e coletiva. Ele critica a ideia de que somos responsáveis apenas pelos próprios atos, lembrando que essa postura torna difícil o reconhecimento do compromisso social. Segundo ele, “Insistir no fato de que somos, como indivíduos, responsáveis apenas pelas escolhas que fazemos e pelos atos que praticamos torna difícil ter orgulho da história de nosso país”. No Brasil, essa reflexão é crucial diante da herança da escravidão. O passado ainda influencia o presente, e o reconhecimento de uma dívida histórica com a população negra é um passo necessário para combater a exclusão social persistente.
Diante dos desafios políticos e sociais do Brasil, Justiça: O Que é Fazer a Coisa Certa se revela uma leitura indispensável. Ao conectar a filosofia política a questões práticas, Sandel oferece ferramentas valiosas para a compreensão dos dilemas éticos e jurídicos que moldam a sociedade. Em um cenário de polarização e disputas acalorados sobre direitos e deveres, sua obra incentiva uma reflexão profunda sobre o que realmente significa fazer a coisa certa.
Para o autor, uma sociedade justa exige mais do que neutralidade: exige engajamento ético e compromisso coletivo. Como destaca Sandel, “Uma política de engajamento moral não é apenas um ideal mais inspirador do que uma política esquiva do debate. Ela é também uma base mais promissora para uma sociedade justa”. Essa afirmação reforça a necessidade de um debate público mais profundo no Brasil — um debate que vá além das regras formais e busque construir, de fato, uma sociedade mais justa e solidária.
[1] SANDEL, Michael. Justiça: o que é fazer a coisa certa. Tradução Heloisa Matias e Maria Alice Máximo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
