Cultura Livros Resenha

Um mergulho na memória

RESENHA

                                    Um mergulho na memória

Em novo livro, o historiador e arquiteto Nireu Cavalcanti rememora os anos da infância e juventude em Maceió

                                                                                                      Adelto Gonçalves (*)

                                                            I

            Depois de escrever vários livros em que reconta a História do Brasil, com base em documentos manuscritos de arquivos portugueses e brasileiros, o historiador e arquiteto Nireu Cavalcanti acaba de publicar Borbulhar da memória (Edições Júlio e Maria, 2024), em que trata de  reconstituir a história de sua própria família, gente oriunda do agreste e do sertão de Alagoas, entre Palmeira dos Índios e Santana do Ipanema, que se transferiu  para Maceió em 1947, quando o autor tinha apenas três anos, e, finalmente, para o Rio de Janeiro, em 1962. Para melhor recuperar os anos perdidos, o autor ainda agrega ao livro depoimentos de quatro de seus irmãos, que enriquecem o trabalho.

            Ao mesmo tempo, reconstitui com a memória a casa e os lugares pelos quais passou, ao recordar a Maceió de meados do século XX, especialmente as ruas Teixeira Bastos, Dias Cabral, Santa Maria (hoje Doutor Guedes Gondim) até a atual avenida Vieira Perdigão, por onde passavam os trilhos da estrada de ferro, e as lojas e oficinas que haviam por lá, incluindo o Colégio Estadual de Alagoas, onde estudou, até o Mercado Municipal, “que tinha de tudo, principalmente a feira de passarinhos”.

            Com uma linguagem onírica, o autor recupera os sentimentos infantis, como a veneração às árvores frutíferas, passando pela adolescência, quando o ser humano perde a inocência, e relata seus primeiros namoros, além da fascinação que tinha por uma vizinha também adolescente, porém mais velha, o que o levaria, inclusive, a fazer um buraco na dependência sanitária da casa ao lado só para vê-la nuinha.

            De família católica, remediada, que colocava a honestidade acima de tudo, o autor recorda com prazer a convivência com um vizinho mais bem aquinhoado, o engenheiro pós-graduado José Barreto, sergipano, que lhe abria as portas de sua vastíssima biblioteca, desde que cumprisse uma exigência: lavar as mãos antes de pegar nos livros, revistas e estampas de pinturas. E que até lhe deu um livro que contestava a origem do ser humano que aprendera ao ler a Bíblia e que defendia que o homem seria descendente de macaco.

            Lembra também os momentos que vivia, já adolescente, em meio a companheiros de rua no meio da praça Marechal Deodoro e os poucos instantes em que tivera a oportunidade de conversar com Lucinha, moça de família rica, a “mais bonita e meiga de Maceió”, mas que lhe daria um tapa no rosto, incomodada com sua ousadia em lhe pegar “carinhosamente na mão”. E que sumiria de sua vida para sempre.

            Nas últimas páginas, Nireu Cavalcanti faz uma homenagem aos pais – Júlio Nobre Cavalcanti e Maria Oliveira Cavalcanti – que, embora de origem humilde, fizeram imensos esforços para que os filhos chegassem a cursos de nível superior: a mãe cuidava de uma mercearia, “que também vendia bebidas alcoólicas como vinho de jurubeba, alcatrão de São João da Barra e cachaça, ou aguardente de cana”, e o pai de um armazém que incluía um setor de farmácia, além de fazer negócios no interior de Alagoas com gado bovino e cavalar e ovelhas. 

                                II

No prefácio, o poeta, ensaísta e editor Alexei Bueno lembra que Nireu Cavalcanti “é um perfeito carioca adotivo, e um desses abnegados que assumiram o trabalho de Sísifo que é a luta inglória pela preservação do que sobrou do patrimônio histórico e artístico do castigado Rio de Janeiro”. E observa que, nesta narrativa, o leitor acompanhará a formação do protagonista, “bem como a sucessão de vicissitudes, caminhos e escolhas de todos os membros da família”. E irá encontrar “o retrato de um momento irrecuperável, como todos eles, e de uma alegria de viver que sempre se sobrepôs a todas as dificuldades, a todas as inarredáveis dores, condenadas, como os momentos jubilosos, a transformar-se na imperativa matéria da memória”.

Já para o romancista, novelista, contista e poeta Hélio Brasil, igualmente arquiteto, autor do texto de apresentação (“orelhas”), as crônicas de Nireu constituem “um hino à grandeza e à importância da família, com um alimento que jamais faltou em sua mesa: amor!”. São “borbulhantes de ingenuidade e brasilidade”, diz, ressaltando que   reproduzem “a sonoridade do peculiar sotaque nordestino que nos traz o latir de cães ferozes na defesa das frutas no quintal da vizinha e o som do sino da igreja local chamando seus fiéis para os corações que atenuariam seus pecados”. Entre eles, acrescenta, “a tentação das moças damas que, em seus prostíbulos, atraíam os adolescentes para as gostosas e pecaminosas tarefas do sexo”.

             Por fim, o ensaísta, crítico literário e pesquisador André Seffrin, no texto da contracapa do livro, ressalta que o melhor da obra não está apenas nas atuações do seu autor e ator principal, nem nos papéis de seus irmãos, mas em outro personagem real, dona Maria Oliveira Cavalcanti, mãe destes fabulosos irmãos, da qual “emana toda a mágica fortuna destes relatos”.

                                                           III  

            O livro reúne depoimentos de quatro irmãos de Nireu: a antropóloga Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros, doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica (PUC), de São Paulo, autora de A derradeira gesta: Lampião e nazarenos guerreando no sertão, notável obra sobre Lampião, o rei do cangaço, entre outras; os engenheiros Hermano José e José Oliveira Cavalcanti; e a veterinária e sanitarista Luciaurea Oliveira Cavalcanti de Zuniga, que evocam ainda os irmãos que partiram: Gilberto, falecido de forma trágica na juventude; o advogado Julmario Oliveira Cavalcanti e  Emmanoel Cavalcanti, o Cavaca, ator coadjuvante em filmes famosos, como Terra em transe e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, de Glauber Rocha, e A hora e a vez de Augusto Matraga, de Roberto Santos.

            No depoimento de Luitgarde, há ainda um texto que é parte de um maior chamado “Posfácio”, publicado no livro Luitgarde: uma voz dos silenciados, organizado por José Marques de Melo e Sônia Maria Ribeiro Jaconi (São Paulo, Intercom, 2011). Nesse texto, Luitgarde reconhece que sua família foi vítima “do ódio político de um sistema que não admite sentimentos humanos que contrastem com a lei do extermínio, dominante na governança deste país, já dominante na expulsão de Octavio Brandão de Alagoas, nas primeiras décadas do famigerado século XX, que gestou e executou carnificinas que atingem o apogeu, agora, na era do neoliberalismo”.  

Portanto, como observa Alexei Bueno no prefácio, aqui o leitor também poderá sentir de perto, como a autora sentiu, “a violência endêmica daquele mítico sertão dominado pelo mandonismo das oligarquias”.  

                                                           IV

Nireu Cavalcanti

Historiador, desenhista, artista plástico e arquiteto formado em 1969 pela Faculdade Nacional de Arquitetura da Universidade do Brasil, Nireu Cavalcanti (1944) é doutor em História Social, com ênfase em História Urbana, pelo Programa de Pós-Graduação do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais do Departamento de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) desde 1997. Tem especialização em Planejamento Urbano e Regional e em Metodologia do Ensino Superior pela Universidade Santa Úrsula (1979-1982).

É professor de pós-graduação da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (UFF), da qual foi seu diretor de 2003 a 2007. É autor, com Hélio Brasil, de Tesouro: o Palácio da Fazenda, da Era Vargas aos 450 anos do Rio de Janeiro (Pébola Casa Editorial, 2015); e O Rio de Janeiro setecentista: a vida e a construção da cidade da invasão francesa até a chegada da Corte (Jorge Zahar Editor, 2004), seu trabalho de doutoramento, com o qual obteve o primeiro lugar da 42ª Premiação Anual do Instituto de Arquitetos do Brasil-RJ, em 2004.

Publicou ainda Histórias e conflitos no Rio de Janeiro colonial: da Carta de Caminha ao contrabando de camisinha – 1500-1807 (Civilização Brasileira, 2013); Arquitetos e Engenheiros: sonho de entidade desde 1978 (Crea-RJ, 2007); Crônicas históricas do Rio colonial (Civilização Brasileira/Faperj, 2004); Santa Cruzuma paixão (Relume-Dumará, 2004); Construindo a violência urbana (Madana Editora, 1986); Rio de Janeiro, centro histórico: marcos da colônia (1998); e  Centro histórico colonial 1567-2015 (Andrea Jackobsson Estúdio/Faperj, 2016).

É autor do artigo “Silêncio no Ipiranga”, publicado no jornal O Globo, de 18/9/2010, p. 42, em que sustenta que a independência do Brasil foi proclamada no dia 1º de agosto de 1822, no Rio de Janeiro, em manifesto que contém o plano de governo de d. Pedro e a convocação dos “brasileiros em geral para que se unissem em torno da causa da Independência”. Ou seja, segundo o historiador, como mostram os documentos da época, às margens do rio Ipiranga, próximo à cidade de São Paulo, no dia 7 de setembro de 1822, o que houve foi apenas um ato que referendou a independência já proclamada. 

Publicou também o ensaio “Veredas da arquitetura modernista no Rio de Janeiro” (Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro (IHGRJ), nº 27, 202, pp. 117/157. É também um dos autores do livro Rio, da Glória à Piedade, organizado por Hélio Brasil e publicado por Rosmaninho Editora de Arte, em Santarém, Portugal, em 2023. Foi cronista do Jornal do Brasil entre 1999 e 2000.

________________________________

Borbulhar da memória, de Nireu Cavalcanti, com depoimentos de Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros, Hermano José Oliveira Cavalcanti, José Oliveira Cavalcanti e Luciaurea Oliveira Cavalcanti de Zuniga, textos de apresentação de Hélio Brasil e André Seffrin e prefácio de Alexei Bueno. Rio de Janeiro, Edições Júlio e Maria, edição fora do mercado, 212 páginas, 2024. E-mail do autor: contato@nireu.com

________________________________

(*) Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Editorial Caminho, 2003; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras, 2012),  Direito e Justiça em terras d´el-rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os vira-latas da madrugada (José Olympio Editora, 1981; Letra Selvagem, 2015) e O reino, a colônia e o poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br

Deixe um comentário