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SÍNDROME DO CORINGA

Da fantasia à humilhação

Não existe nada mais escravocrata do que o prazer de humilhar.

Jessé Souza

Margarete Hülsendeger

Jessé Souza é um dos principais sociólogos brasileiros contemporâneos, conhecido por suas análises sobre desigualdade, dominação social e o papel das elites na estrutura política e econômica do Brasil. Com doutorado na Alemanha e vasta produção acadêmica, consolidou-se como uma voz crítica ao pensamento liberal e às visões tradicionais sobre a sociedade brasileira.

Em obras como A Elite do Atraso (2019) e Como o Racismo Criou o Brasil (2021), desafia interpretações estabelecidas, sobretudo as influenciadas por Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. Souza sustenta que o verdadeiro motor da desigualdade nacional não é o “patrimonialismo”, mas sim a escravidão e o racismo estrutural. Já em O Pobre de Direita[1], ele investiga um fenômeno político recente e inquietante: a adesão significativa das classes mais empobrecidas a pautas e candidatos de extrema direita, justamente em um período de avanços sociais.

A questão que norteia todo o livro é: por que trabalhadores precarizados, dependentes de programas sociais e vítimas diretas da concentração de renda apoiam políticos que promovem o corte de direitos e o enfraquecimento do Estado de bem-estar social?

Para responder a essa questão, Souza defende que essa adesão não se deve à ignorância ou à desinformação, mas sim a um projeto ideológico de longo prazo, que naturalizou a desigualdade e reforçou um discurso moralizante, desviando o foco dos reais problemas estruturais do país. O autor desenvolve essa tese em diversos capítulos, entre os quais se destacam “O branco pobre do Sul do país e de São Paulo e o preconceito regional no Brasil” e “O negro evangélico”.

No primeiro, Souza analisa como parte da população branca empobrecida, especialmente no Sul do Brasil, se apega a uma identidade de “superioridade racial” herdada do passado colonial. Ele argumenta que muitos desses indivíduos internalizam a ideia de que sua condição econômica desfavorável resulta exclusivamente do “esforço individual”, ignorando fatores estruturais. Como consequência, tornam-se resistentes a políticas de redistribuição de renda e inclusão social. Nesse sentido, destaca que “o bolsonarismo oferece o velho racismo repaginado agora como luta política idealista e rebelde, aglutinando, também, todos os frustrados que culpam a vida e os outros pela sua decadência e desgraça”.

Já em “O negro evangélico”, Souza aborda a influência das igrejas neopentecostais na formação política das camadas populares. Para ele, a mensagem religiosa pregada nesses espaços muitas vezes reforça a ideia de culpa individual pela pobreza e afasta a consciência de classe, favorecendo a aceitação de políticas econômicas neoliberais e de discursos ultraconservadores. Segundo ele, “o sucesso do neopentecostalismo tem contribuído para influenciar todo o mercado religioso pentecostal. A própria competição pelo controle de meios de comunicação de massas, entre as diversas denominações, traz uma urgência econômica que tende a ser suprida com os dízimos e ofertas em dinheiro”.

Outro ponto relevante levantado pelo autor é como esse fenômeno se conecta ao desejo de melhorar de vida. Souza explica que “o neopentecostalismo é ideal para quem pretende ‘embranquecer’ – com tudo o que isso significa no Brasil, e que não se refere apenas à cor da pele – pela aceitação da norma moral vigente do dominador branco, que implica o estigma negro (seu vizinho ou irmão) e a sua criminalização”. Para embasar suas teses, o autor apresenta entrevistas com indivíduos de diferentes origens sociais e religiosas, ilustrando como esses discursos são incorporados ao cotidiano e à visão de mundo dessas pessoas.

A análise apresentada em O pobre de direita dialoga diretamente com outra obra do autor, Como o Racismo Criou o Brasil. Nesse livro, Souza aprofunda a tese de que o racismo não foi apenas um elemento acessório na formação do país, mas sim o eixo central da dominação social. Ele sustenta que a escravidão não foi superada com a abolição de 1888, mas ressignificada em novas formas de exclusão, perpetuadas pelo Estado e pelas elites intelectuais. Essa perspectiva complementa O Pobre de Direita, ajudando a entender como a desigualdade racial e a ideologia meritocrática foram fundamentais para a adesão de setores populares a políticas que, em última instância, os prejudicam.

Conforme o autor, “a criminalização do pobre e do preto permite o enobrecimento moral relativo de todas as classes sociais acima da ‘ralé’ de perseguidos e abandonados”. Além disso, ele ressalta que “a forma de tornar os crimes da elite invisíveis é construir um criminoso ad hoc, ou seja, feito com precisão de alfaiate para desviar a atenção dos crimes da elite de modo a mostrar apenas o crime do pobre e do preto”. Assim, compreende-se que o apoio de parte da população pobre à extrema direita não ocorre de forma espontânea. Ele é fruto de um processo histórico que manipula a percepção da realidade e estabelece um “inimigo” conveniente para justificar desigualdades estruturais.

Margarete Hülsendeger – Possui graduação em Licenciatura Plena em Física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1985), Mestrado em Educação em Ciências e Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002-2004), Mestrado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2014-2015) e Doutorado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2016-2020). Foi professora titular na disciplina de Física em escolas de ensino particular. É escritora, com textos publicados em revistas e sites literários, capítulos de livros, publicando, em 2011, pela EDIPUCRS, obra intitulada “E Todavia se Move” e, pela mesma editora, em 2014, a obra “Um diálogo improvável: homens e mulheres que fizeram história”.

Um dos conceitos mais instigantes do livro é o que Souza chama de “síndrome do Coringa”. Inspirado no personagem do universo Batman, ele sugere que grande parte dos brasileiros empobrecidos e marginalizados vive uma situação de ressentimento social profundo, semelhante à do personagem interpretado por Joaquin Phoenix no filme Coringa (2019). Sentindo-se excluídos e humilhados, esses indivíduos não encontram na esquerda uma representação política eficaz, pois esta, muitas vezes, se distancia de suas demandas emocionais e identitárias. Assim, acabam sendo cooptados por discursos da extrema direita, que lhes oferecem um inimigo comum (a corrupção, o “comunismo”, os movimentos sociais) e uma promessa ilusória de reconhecimento e pertencimento.

Como Souza afirma, “quando a realidade se torna insuportável, a fuga na fantasia é inevitável para tornar a vida minimamente palatável”. Essa ilusão política funciona como um mecanismo de compensação psicológica, desviando a frustração e o sofrimento social para alvos artificiais. Como resultado, a internalização da desigualdade leva à culpa individual, o que impede a organização coletiva para a transformação social: “A pobreza e a humilhação passam a ser vividas como dores pessoais e intransferíveis. Pior, passam a serem vividas como merecimento individual pelo fracasso social”. Assim, ao dissecar as raízes históricas e ideológicas que moldam escolhas políticas, O Pobre de Direita revela que, muitas vezes, o maior triunfo da dominação é fazer com que os dominados defendam seus opressores.


[1] SOUZA, Jessé. O pobre de direita: a vingança dos bastardos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.

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