Crônicas Margarete Hülsendeger Margarete Hülsendeger

O QUE CABE NUMA CAIXA

O QUE CABE NUMA CAIXA

A memória guardará o que valer a pena. A memória sabe de mim mais que eu; e ela não perde o que merece ser salvo.

Eduardo Galeano

Margarete Hülsendeger

Janeiro é o mês das resoluções, das tentativas de arrumar a vida – ou, ao menos, as gavetas. Você já abriu uma caixa velha e tropeçou no passado? Foi o que aconteceu comigo: encontrei uma caixa de sapatos, repleta de pequenos tesouros que resistiram ao tempo. Para quem vê de fora, talvez pareça só um amontoado de coisas velhas. Para mim, era um mapa para revisitar memórias.

O primeiro item foi um maço de ingressos de cinema. Três deles me levaram direto para momentos especiais: E.T. – O Extraterrestre, quando chorei vendo aquele alienígena gentil pedindo para “telefonar para casa”; De Volta para o Futuro, que despertou o meu fascínio por viagens no tempo e me fez imaginar como seria encontrar meu eu mais jovem; e Matrix, que me fez questionar o que é real e o que é ilusão. Lembro da sensação de sair da sala de cinema, com o som da trilha vibrando nos ouvidos, pensando: E se estivermos todos presos numa Matrix e nem sabemos? Hoje, mesmo com filmes disponíveis ao alcance de um clique, ainda há algo único em compartilhar a experiência de uma sala escura, dividindo risos, lágrimas e sustos com desconhecidos.

Depois, encontrei um CD com uma etiqueta escrita à mão: Friends – Último Episódio. Mais do que uma série, Friends foi — e ainda é — um fenômeno. Monica, Rachel, Ross, Chandler, Phoebe e Joey se tornaram quase membros da família, atravessando gerações e permanecendo vivos em reprises e plataformas do streaming. O episódio final, para mim, marcou o encerramento de um ciclo. Naquele mesmo ano das Olimpíadas de Atenas, enquanto o mundo assistia atletas competirem no berço dos Jogos, eu fechava meu próprio capítulo: mudei de casa e defendi minha dissertação de mestrado. Assim como os personagens da série seguiam suas vidas, eu também começava um novo caminho. Mas o fim de uma história nunca apaga o que foi vivido; apenas abre espaço para novas narrativas.

Tirei, em seguida, uma carta, escrita à mão por um aluno da época em que eu dava aulas de física no ensino médio. Ele agradecia por uma explicação que finalmente havia feito sentido e dizia que aquilo o fez acreditar que podia aprender. Esse reconhecimento nunca deixou de me emocionar. Talvez ensinar seja isso: acender uma luz no caminho de alguém, mesmo sem saber onde aquele caminho levará. Às vezes, o que oferecemos são apenas ferramentas para que outros construam suas próprias pontes. Ensinar, no fim das contas, é plantar sementes sem saber onde e como germinarão.

No fundo da caixa, também encontrei uma moeda de cruzeiro, tão gasta que mal dava para distinguir os detalhes. Segurei-a por um momento, parecia carregar mais do que metal. Quem viveu no Brasil durante a época de inflação descontrolada sabe o peso simbólico de uma moeda assim. Cada novo plano econômico era uma tentativa de salvar o país, mas trazia também filas intermináveis, preços que mudavam de manhã para a tarde e uma sensação constante de instabilidade. Quando o real chegou, lembro de como foi difícil acreditar que, dessa vez, as coisas realmente melhorariam. Aquela moeda era mais do que um objeto: era um lembrete da nossa resiliência, de como aprendemos a rir mesmo quando tudo parece desabar.

Margarete Hülsendeger – Possui graduação em Licenciatura Plena em Física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1985), Mestrado em Educação em Ciências e Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002-2004), Mestrado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2014-2015) e Doutorado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2016-2020). Foi professora titular na disciplina de Física em escolas de ensino particular. É escritora, com textos publicados em revistas e sites literários, capítulos de livros, publicando, em 2011, pela EDIPUCRS, obra intitulada “E Todavia se Move” e, pela mesma editora, em 2014, a obra “Um diálogo improvável: homens e mulheres que fizeram história”.

Recoloquei tudo na caixa e devolvi-a ao armário, mas fiquei olhando para ela por um tempo. Cada item ali guardado contava uma história: os ingressos de cinema falavam de sonhos e ficções que expandiram o que eu pensava ser possível; a carta mostrava como pequenas ações podem impactar outras vidas; e a moeda lembrava que, apesar de tudo, seguimos em frente.

Então, me perguntei: o que estamos guardando hoje que, no futuro, contará nossa história amanhã? Nossas memórias estão espalhadas em nuvens digitais, em celulares que trocamos a cada poucos anos, em mensagens que nunca imprimimos. Se as caixas de sapato desaparecerem, o que vai permanecer? Talvez não sejam os objetos que importam, mas as histórias que escolhemos lembrar – e como decidimos compartilhá-las.

O tempo, afinal, não é algo que guardamos, mas algo que vivemos. E cada pequena memória, cada objeto aparentemente banal, é um convite para refletir sobre o que fomos e imaginar o que ainda podemos ser.

E você, o que está guardando hoje que poderá contar sua história amanhã? Talvez seja hora de abrir aquela gaveta ou caixa esquecida. Quem sabe o que o tempo deixou por lá?

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