LETRAS
Memória da literatura goiana
Com 23 ensaios ricos em pesquisas, obra faz um levantamento da produção literária em Goiás em quase três séculos
Adelto Gonçalves (*)
I
Um panorama do que os literatos produziram no Estado de Goiás em quase três séculos é o que traz o livro Goiás + 300 – Literatura, volume V de um box que reúne mais duas obras – Cronistas e Viajantes, volume IV, e Povos Originários, volume VI. O volume V é formado por 23 capítulos que contam com a participação de 28 autores e foi organizado por Goiandira Ortiz de Camargo, doutora em Literatura Brasileira, pós-doutora em Poesia Brasileira e professora aposentada da Universidade Federal de Goiás (UFG), Maria Severina Guimarães, doutora e pós-doutora em Estudos Literários pela UFG e professora da Universidade Estadual de Goiás (UEG), e Bento Jayme Fleury Curado, doutor (UFG) e pós-doutor em Geografia pela Universidade de São Paulo (USP), professor da Secretaria de Educação de Goiás e sócio do Instituto Cultural e Educacional Bernardo Élis para os Povos do Cerrado (Icebe).
No texto de abertura, “Os Kayapó, andarilhos da história e da ficção em Guerra no coração do Cerrado, de Maria José Silveira”, Ângela Maria Álvares Lapidus, mestra em Literatura pela UEG, Ricardo Assis Gonçalves, doutor em Geografia pela UFG, e Eguimar Felício Chaveiro, doutor em Geografia pela USP, analisam uma obra que recupera o conflito entre indígenas e não indígenas durante o processo de colonização. Embora seja ficção, lembram os professores, Maria José Silveira (1947) realizou uma profunda pesquisa histórico-geográfica e antropológica para escrever a sua narrativa.
O romance tem como personagem principal Damiana da Cunha, indígena cayapó que foi educada pelo governador da capitania de Goiás, Luís da Cunha Meneses (1743-1817), que haveria de se tornar célebre ao ser satirizado como o Fanfarrão Minésio nas Cartas Chilenas, poema satírico em versos decassílabos brancos (sem rima) de autoria atribuída a Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), ex-ouvidor em Vila Rica e degredado para Moçambique por participação na conjuração mineira de 1789. Damiana era neta de um dos principais caciques da região, Angeraíocha. E o gesto de Cunha Meneses foi interpretado como uma tentativa de aproximação e “pacificação” dos cayapós.
Para os analistas, o romance de Maria José Silveira contribui “com o desvelamento da formação territorial violenta de Goiás” e coloca-se “contra o silenciamento dos povos indígenas e da violência de que foram vítimas”. Assim, concluem, a personagem Damiana pode ser interpretada como “metáfora do domínio colonial sobre o povo indígena e a impossibilidade de convivência entre os dois povos”.
II
Um ensaio que se destaca – o que não significa que os demais não tenham a mesma importância – é “Orchideas, a ecopoesia de Leodegária de Jesus”, de Maria de Fátima Gonçalves Lima, doutora em Teoria Literária pela Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), campus de São José do Rio Preto, e pós-doutora pela Pontíficia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro e de São Paulo, em que a ensaísta discute e recupera o nascedouro da poesia lírica feminina e negra em Goiás.
Ela lembra que Leodegária de Jesus (1889-1978), cujo retrato está na capa do livro, quebrou todos os paradigmas daquele período no Brasil e, principalmente, no Centro-Oeste, a uma época em que a mulher era condenada a não se expressar publicamente, ao tempo em que o coronelismo predominava e a produção literária feminina era praticamente nula.
A ensaísta ressalta que, já no início do século XIX, Leodegária expressava, de maneira intuitiva, o que hoje se chama ecopoesia, fazendo versos que defendiam um “retorno à natureza das terras e campos dos descaminhos de Goiás”. Como exemplo, reproduz-se aqui com a ortografia da época um trecho de um soneto em que Leodegária exprime o seu “eu lírico” e evoca a natureza: Daqui si te contemplo á doce luz do poente, / Coberta assim de sombra e neve vaporosa, / Eu sinto me inundar o coração dolente, / Estranha, suave luz de paz maravilhosa.
Já em “Coronéis e jagunços: violência na literatura regional”, F. Itami Campos, doutor em Ciência Política pela USP e professor aposentado da UFG, faz referência a autores goianos cujos contos e romances apresentam a violência que marcou época na região Norte de Goiás que hoje constitui o Estado de Tocantins, a partir de disputas e desavenças políticas entre coronéis que armavam seus agregados e contratavam jagunços, “com o banditismo marcando presença”. O ensaísta lembra que, desde os tempos coloniais, a posse e o uso produtivo da terra tornaram-se as principais fontes de riqueza, ressaltando que a legislação e os governos da época procuravam impedir a posse da terra ao homem livre, pobre. E que ao pobre só restava viver de seu trabalho servil, sujeito ao controle e dominação do proprietário da terra.
Entre os autores citados por F. Itami Campos e que procuraram retratar esse tipo de escravidão disfarçada estão o missionário francês dominicano frei José Maria Audrin (1879-?), que viveu mais de 30 anos entre os sertanejos; Hugo de Carvalho Ramos (1895-1921), pioneiro da literatura regionalista em Goiás; Bernardo Élis (1915-1997), autor do clássico romance O Tronco (1974); Eli Brasiliense (1915-1998), autor de Rio Turuna (1964); Ignácio Xavier da Silva (1855-1929), autor de Crime do Cel. Leitão (1935); Luís Palacín (1927-1998), historiador fundamental para quem quer conhecer a história de Goiás e autor de Coronelismo no Extremo Norte de Goiás (1990), entre outras importantes obras; e Lauro de Vasconcelos (1934-1986), autor de Santa Dica: encantamento do mundo ou outra coisa do povo (1991), que recupera dados e informações sobre uma vidente que se tornou conhecida como milagreira e curandeira no interior de Goiás.
III
Em “A historiografia literária em Goiás”, Goiandira Ortiz de Camargo, Leandro Bernardo Guimarães, mestre em Estudos Literários pela UFG, e Oliver Mariano Rosa, também doutor em Estudos Literários pela UFG, fazem um registro panorâmico dos expoentes da historiografia e crítica literária goianas, situando A poesia em Goiás (1964), de Gilberto Mendonça Teles (1931-2024), como o marco inicial da historiografia literária no Estado.
Entre os livros de estudos, apontam como bons exemplos O processo sintagmático na obra literária (1976), de Moema de Castro e Silva Olival (1932-2021), versando sobre a obra de Bernardo Élis; O poema do poema em Gilberto Mendonça Teles (1984), de Darcy França Denófrio (1936); e O poeta da linguagem (1983), de José Fernandes (1946-2018), obra igualmente dedicada ao estudo da poesia de Gilberto Mendonça Teles. E sugerem que o estudo da poesia goiana seja retomado no ponto em que Gilberto Mendonça Teles parou em seu A poesia em Goiás, acrescentando que, sobre a prosa, o recomendável seria seguir os estudos das pioneiras Nelly Alves de Almeida (1916-1999) e Moema de Castro e Silva Olival.
IV
Em “O Modernismo em Goiás antes da literatura”, Jamesson Buarque, doutor em Letras e Linguística pela UFG e diretor da Faculdade de Letras desta instituição, observa que aquele movimento literário só chegou ao Estado a partir da construção da nova capital, uma obra modernista, e que “tal assimilação só se deu a partir do ano do Batismo Cultural de Goiânia, em 1942”, ressaltando que imprensa, editoras e comércio livreiro somente ganharam forma na nova metrópole a partir da década de 1950.
Segundo o ensaísta, uma vez que Goiânia passou a existir, “as condições para o Modernismo ser assimilado em Goiás foram dadas, mas paulatinamente, e de tal modo que o movimento já não era mais um movimento, era uma tradição, o que fez de certo modo o princípio conservador não ter sido aplacado no Estado nem em sua nova capital”. Com isso, conclui, “o colonialismo proprietário do conservadorismo ruralista e o colonialismo de mentalidades do progressismo, no final das contas, coadunaram-se em Goiás”.
Já Heleno Godoy, doutor em Letras pela USP e professor aposentado da Faculdade de Letras da UFG, em “Uma (possível) história do GEN”, e Maria Helena Chein, professora aposentada da UFG, em “Reminiscências sobre o Grupo de Escritores Novos (GEN)”, procuram reconstituir a história de um coletivo de escritores jovens que existiu em Goiânia de 1963 a 1967, rememorando seus planos, seus projetos pessoais, seus ideais.
Godoy ressalta que o GEN não foi um “movimento literário”, mas uma afirmação cultural, formado que era por escritores de diversas tendências. Já Maria Helena Chein faz um retrospecto das obras que foram publicadas àquela época, citando, por fim, GEN – um sopro de renovação em Goiás (Goiânia, Editora Kelps, 2000), em que a professora Moema de Castro e Silva Olival faz um estudo das obras de Miguel Jorge (1933), Yêda Schmaltz (1941-2003), Heleno Godoy (1946) e da própria Maria Helena Chein (1942).
V
Diante da impossibilidade (por falta de espaço) de pelo menos registrar os demais ensaios, diga-se que são todos de excepcional feitura e rigorosamente pesquisados, o que significa que traçam para o leitor um panorama que ajuda a manter viva a memória da literatura goiana produzida em 300 anos, efeméride que marca o início da colonização de Goiás e será comemorada em 2027.
A obra faz parte da Coleção Goiás +300 – Reflexão e Ressignificação, editada pelo Instituto Histórico e Geográfico de Goiás (IHGG), pelo Icebe e pela Sociedade Goiana de História da Agricultura (SGHA), sob a coordenação de Jales Guedes Mendonça, promotor de Justiça, doutor em História e presidente do IHGG, e Nilson Gomes Jaime, engenheiro agrônomo, doutor em Agronomia e presidente do Icebe.
O lançamento da Coleção Goiás + 300 deu-se a 14 de dezembro de 2022, na sede do IHGG, com a apresentação do box 1, que contem três livros que abrangem os temas História – Geografia – Memória e Patrimônio. Os livros foram disponibilizados para bibliotecas, escolas, faculdades e institutos culturais, além de pesquisadores. Os organizadores observam que o projeto não tem a pretensão laudatória aos bandeirantes, mas é antes uma correção histórica, “que visa à evidenciação de valores dos povos colonizados, de etnias diversas que habitavam o território do indígena Goiá naqueles dias, muitas delas ainda resilientes em Goiás e Tocantins”.
Até 2026, serão lançados mais quatro boxes: Povos Afrodiaspóricos – Música – Mulheres (box 3); Brasília – Agricultura – Direito e Justiça (box 4); Economia – Direitos Humanos – Goiânia (box 5); e Os primeiros arraiais – Sustentabilidade – Educação (box 6). As obras estão sujeitas a um Conselho Editorial, formado por 30 doutores e mestres, de diversas instituições culturais e científicas. Sem contar com recursos públicos, a iniciativa tem recebido patrocínio cultural de empresas privadas.
______________________________
Goiás +300 – Literatura, volume V, de Goiandira Ortiz de Camargo, Maria Severina Guimarães e Bento Jayme Fleury Curado (organizadores). Goiânia, Edições Goiás +300, Instituto Histórico e Geográfico de Goiás, Instituto Cultural e Educacional Bernardo Élis para os Povos do Cerrado e Sociedade Goiana de História da Agricultura, 382 páginas, 2023. Site: https://ihgg.org E-mail: ihgg@ihgg.org
_______________________________
(*) Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Editorial Caminho, 2003; São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em Terras d´el-Rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015) e O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. Escreveu prefácio para o livro Kenneth Maxwell on Global Trends (Londres, Robbin Lard, editor, 2024), lançado na Inglaterra. E-mail: marilizadelto@uol.com.br