Crônicas Espiritualidade Margarete Hülsendeger religião Religião

ONDE O PASSADO HABITA

ONDE O PASSADO HABITA

Não se é de parte nenhuma enquanto não se tem um morto debaixo da terra.

Gabriel García Márquez

Margarete Hülsendeger

As religiões de matriz africana mantêm uma conexão profunda com o passado, onde a ancestralidade não apenas narra a história, mas também sustenta o presente e inspira o futuro. O vínculo com os antepassados, elemento central de tradições espirituais como o Candomblé e a Umbanda, transcende o âmbito religioso, criando um elo entre gerações e moldando a compreensão sobre a vida, a morte e a identidade.

Esse conceito, oriundo das práticas espirituais africanas, chegou ao Brasil trazido pelos milhões de africanos forçados a abandonar suas terras entre os séculos XVI e XIX. Distantes de seus lares, famílias e tradições, esses homens e mulheres enfrentaram uma ruptura brutal. No entanto, mesmo em um contexto de extrema opressão, mantiveram viva a memória de seus antepassados. Essa conexão espiritual não só os fortaleceu, como também se tornou uma ferramenta de resistência, preservando identidades e permitindo que suas raízes culturais florescessem em solo estrangeiro.

Dentro dessas religiões, os ancestrais desempenham um papel central. Representam os espíritos dos que já viveram e, mesmo após a morte, permanecem presentes, orientando e protegendo seus descendentes. Diferem dos Orixás, que simbolizam forças primordiais da natureza e aspectos do cosmos. Assim, enquanto os ancestrais guardam a sabedoria das vidas passadas e preservam a memória familiar e comunitária, os Orixás conectam os praticantes às forças da natureza e são cultuados em cerimônias que fortalecem esses laços espirituais. Essas esferas, embora distintas, complementam-se no cotidiano dos terreiros: os ancestrais guardam as memórias individuais; os Orixás, por sua vez, personificam aspectos universais da existência.

No Candomblé, a ancestralidade é honrada em rituais como o culto aos eguns – os espíritos dos antepassados que ainda mantêm ligação com o mundo dos vivos. Por meio de cânticos, danças e oferendas, os membros do terreiro convidam os eguns a interagir com os vivos. Em algumas casas, há espaços reservados a esses espíritos, nos quais os participantes pedem proteção e agradecem pelas bençãos recebidas. Essas práticas reforçam a crença de que os ancestrais não pertencem apenas ao passado, mas exercem influência no presente, atuando como um fio invisível que une as gerações.

Na Umbanda, a prática da ancestralidade assume uma forma mais sincrética, integrando influências africanas, indígenas, católicas e do espiritismo. Nela, o culto aos ancestrais se manifesta como uma memória coletiva, representada pelas figuras dos pretos-velhos e dos caboclos. Os pretos-velhos, espíritos de antigos escravizados, transmitem conselhos e curas com humildade e sabedoria, simbolizando a determinação e resiliência de seu povo. Já os caboclos, espíritos de origem indígena, reforçam a conexão com a terra e a força nativa do Brasil. Mesmo que não estejam vinculados a linhagens familiares específicas, esses espíritos expressam uma ancestralidade ampla, acessível a todos como legado espiritual e cultural.

Tanto no Candomblé quanto na Umbanda, o culto aos antepassados vai além de um simples tributo ao passado; é um ato de continuidade e perseverança que reforça a conexão entre as gerações. Nessas tradições, a morte não é vista como um fim, mas como uma passagem, onde os ancestrais se tornam guardiões dos vivos. Ao fortalecer identidades e perpetuar a história cultural das comunidades afro-brasileiras, a ancestralidade assegura que as tradições permaneçam vivas, consolidando uma ligação dinâmica e poderosa entre o presente e o passado.

Honrar os ancestrais é comprometer-se com a própria história e uma expressão de resistência cultural. Os rituais e celebrações não apenas reafirmam as raízes de um povo, mas também preservam a essência espiritual e cultural que guia o futuro. Eles são convites para refletirmos sobre o legado que construímos e transmitiremos às próximas gerações. Nas religiões de matriz africana, a ligação com os que vieram antes é um pacto, que transcende o tempo, lembrando que, embora os corpos físicos deixem de existir, o espírito e os ensinamentos dos ancestrais continuam vivos, iluminando os caminhos daqueles que estão por vir.

Margarete Hülsendeger – Possui graduação em Licenciatura Plena em Física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1985), Mestrado em Educação em Ciências e Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002-2004), Mestrado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2014-2015) e Doutorado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2016-2020). Foi professora titular na disciplina de Física em escolas de ensino particular. É escritora, com textos publicados em revistas e sites literários, capítulos de livros, publicando, em 2011, pela EDIPUCRS, obra intitulada “E Todavia se Move” e, pela mesma editora, em 2014, a obra “Um diálogo improvável: homens e mulheres que fizeram história”.



Patrocinado

Deixe um comentário