Cultura Livros Margarete Hülsendeger Resenha

O PESO DO BRANCO

O PESO DO BRANCO

E ela muitas vezes esqueceu

que seu corpo (o de todos nós) é uma casa

de areia que se esfarelou e se esfarela,

que vai escorrendo entre os dedos.

Han Kang

Margarete Hülsendeger

Han Kang, reconhecida por narrativas que exploram as complexidades da dor, da identidade e da memória, figura entre as vozes mais expressivas da literatura contemporânea. Nascida em 1970, na Coreia do Sul, alcançou projeção internacional com A Vegetariana (2016), um romance perturbador e poético sobre uma mulher que renuncia à carne, rompendo com as expectativas da sociedade patriarcal. A obra lhe conferiu o Man Booker International Prize, consolidando seu nome no cenário global. Han continuou a abordar temas profundos em Atos Humanos (2017), uma reflexão impactante sobre o massacre de Gwangju, que examina as feridas coletivas e a brutalidade da repressão. Em 2024, foi agraciada com o Prêmio Nobel de Literatura, firmando-se como um dos maiores nomes da literatura mundial por sua habilidade única de transformar sofrimento em arte literária.

Com uma abordagem íntima e profundamente pessoal, Han Kang narra em O Livro Branco[1] o luto pela irmã que faleceu ainda recém-nascida. A história é contada a partir das memórias da protagonista, que se refugia em uma cidade europeia coberta de neve para revisitar o trauma familiar que moldou sua vida. O branco, eixo central da narrativa, simboliza tanto o luto quanto a ausência, permeando todas as lembranças da irmã perdida: o branco do leite materno, da fralda, da neve e da pele da bebê, descrita como “um bolinho de arroz em formato de lua”. Essa recorrência cromática expressa a dor, mas também o desejo de preservar uma memória frágil e efêmera.

Um dos momentos mais marcantes do livro é a lembrança das palavras que a mãe da protagonista repetia insistentemente ao perceber que a filha prematura, nascida de sete meses, talvez não sobrevivesse: “Não morra. Por favor, não morra”. Esse apelo desesperado ressoa por todo o livro, transmitindo uma dor que atravessa gerações e permanece viva nas lembranças da narradora. A obra não trata apenas do luto pela morte da irmã, mas também das tentativas de dar sentido à vida e de encontrar alguma forma de resiliência diante de uma perda tão devastadora.

A fragmentação da narrativa é um elemento central no estilo de Han Kang, especialmente em O Livro Branco. Com capítulos curtos e introspectivos, o romance se constrói como uma série de memórias e reflexões, convidando o leitor a vivenciar o luto em sua forma mais pura: disperso, errático, mas também profundo e contínuo. Han Kang cria um espaço literário onde o não dito carrega tanto significado quanto o que é expresso, permitindo que o silêncio e as pausas tenham uma presença quase palpável. Essa técnica narrativa, também presente em A Vegetariana e Atos Humanos, evidencia a habilidade da autora em entrelaçar o íntimo e o coletivo de forma poética, provocando reflexões intensas.

Em O Livro Branco, o cenário nevado da cidade onde a narradora se exila emocionalmente reflete sua condição interna. A neve, com sua brancura opressiva e onipresente, simboliza a ausência e o luto do qual a protagonista não consegue escapar. No entanto, essa paisagem também sugere uma transformação, oferecendo, ainda que sutilmente, a possibilidade de se redescobrir em meio à dor. O uso do ambiente como espelho emocional é uma marca distintiva do estilo de Han Kang, que equilibra o peso dos sentimentos com a sutileza das descrições.

Margarete Hülsendeger – Possui graduação em Licenciatura Plena em Física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1985), Mestrado em Educação em Ciências e Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002-2004), Mestrado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2014-2015) e Doutorado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2016-2020). Foi professora titular na disciplina de Física em escolas de ensino particular. É escritora, com textos publicados em revistas e sites literários, capítulos de livros, publicando, em 2011, pela EDIPUCRS, obra intitulada “E Todavia se Move” e, pela mesma editora, em 2014, a obra “Um diálogo improvável: homens e mulheres que fizeram história”.

O branco que permeia a obra vai além do luto. Ele evoca a lembrança, uma tentativa de manter viva a presença da irmã por meio de imagens delicadas e cotidianas, como a neve ou o branco das magnólias. A ausência da irmã se manifesta nas pequenas coisas, e a repetição dessas imagens cria um jogo entre o efêmero e o permanente, como se o luto estivesse sempre à espreita, mas ao mesmo tempo pudesse se integrar suavemente à vida cotidiana.

Embora exija uma leitura pausada, O Livro Branco recompensa com sua prosa poética e suas reflexões profundas sobre a morte e a memória. Han Kang oferece um espaço literário de grande beleza e emoção, onde a dor não é apenas uma sombra sobre os personagens, mas um elemento transformador. Sem oferecer respostas fáceis, o livro propõe uma aceitação serena das incertezas do luto, incentivando a introspecção.

Mais do que um relato sobre o luto, O Livro Branco é uma celebração silenciosa da vida e uma tentativa de captar a beleza que existe nas coisas mais frágeis e efêmeras. Com uma escrita ao mesmo tempo delicada e devastadora, Han Kang nos lembra que, mesmo na ausência, é possível encontrar algo a que se apegar. A leitura do livro não apenas emociona, como também convida o leitor a refletir sobre sua própria relação com a perda e a memória. Em sua habilidade de transpor emoções complexas para o papel, Han Kang oferece uma experiência literária única e transformadora.


[1] KANG, Han. O livro branco. Tradução Natália T. M. Okabayashi. São Paulo: Todavia, 2023.

Deixe um comentário