Vanuza Aparecida de Souza[1]
O termo gestão democrática tem sido uma das bandeiras de luta desde os anos 1980, levantada por movimentos de educadores da época em defesa de uma nova gestão da educação e da escola no cenário do processo de redemocratização do país. De lá para cá, a temática da gestão democrática tem sido objeto de pesquisa e debates, representando reflexão importante no campo do pensamento educacional progressista.
No entanto, esse debate acerca da gestão democrática do sistema e da escola talvez seja um dos mais tensos e contraditórios, uma vez que, como afirma Arroyo (2008), “a gestão democrática participativa tornou-se uma fronteira de avanços, sonhos e intervenções corajosas, misturadas, no entanto, com recuos, controles e incongruências” (p. 39).
Esse caráter tenso e contraditório talvez possa ser justificado pelo próprio movimento de construção desse conceito. Segundo Santos (2006), o conceito “gestão democrática” surge na literatura e nos textos de políticas públicas para a educação em decorrência de um conjunto de “ideias e valores que conduzem e amparam a organização sociopolítica da nossa sociedade […] um campo complexo de conceitos que contém e comporta uma determinada concepção de homem e de mundo” (p. 1). Nesse sentido, destaca-se a importância de se analisar as bases epistemológicas da gestão democrática da escola, uma vez que “os processos de gestão escolar não se fazem no vazio ou de forma neutra, realizando-se, em vez disso, no seio de uma formação econômico-social, sendo, portanto, determinados pelas forças concretas, presentes na realidade” (PARO, 2001, p. 34).
Ao propor uma análise das bases epistemológicas do tema da gestão democrática, Santos (2006) afirma que
[…] a gestão democrática para se constituir enquanto tal deve se amparar num paradigma emergente que tem como características básicas uma concepção dialética da realidade, o entendimento de que existe uma relação intersubjetiva entre sujeito e objeto do conhecimento e que entende o homem como sujeito histórico que sofre os condicionantes da realidade atual, mas que traz consigo a capacidade histórica de nela intervir. Esse paradigma vai se contrapor ao racional-positivista ou empírico analítico que está na base das orientações para a condução da gestão da educação e da escola em seu formato técnico-científico. […] Ou seja, a base de organização da gestão da educação e da escola não será piramidal e hierarquizada, mas adotará um desenho circular que pressupõe a inter-relação entre os atores sociais e uma partilha de poder, o que implica co-responsabilidade nas ações da escola. […] Nessa perspectiva de organização e gestão escolar, os atores sociais – diretores, coordenadores, professores, pais, alunos etc. – são considerados sujeitos ativos do processo, de forma que sua participação no processo deve acontecer de forma clara e com responsabilidade. Aqui torna-se necessário enfatizar a participação e autonomia como dois dos princípios básicos da gestão democrática (p. 35).
Nessa perspectiva, a gestão democrática configura-se como um modelo em que o poder presente nas práticas sociais estabelecidas, não se encontra engessado em estruturas hierárquicas e verticalizadas, como acontece no formato racional-positivista, mas numa dimensão horizontal que perpassa as muitas esferas de responsabilidade, sustentada por relações interpessoais e pela partilha do poder, no sentido de corresponsabilidade das ações (SANTOS, 2006). Assim, as decisões são tomadas por meio de colegiados consultivos e deliberativos, reconhecendo cada membro da comunidade escolar como sujeito ativo do processo. Nesse formato, Santos (2006) ressalta a importância da autonomia e da participação como princípios intrínsecos à perspectiva da gestão democrática.
Sobre as relações de poder na perspectiva da gestão democrática, Souza (2009) afirma que o
[…] poder em questão que torna a gestão um processo político, para essa perspectiva da gestão democrática, não é a capacidade da parte de quem o controla em levar os outros sujeitos não-controladores desse poder a fazerem o que aqueles desejavam, e ainda legitimamente reconhecendo a relação de dominação […] Assemelha-se mais ao poder decorrente da capacidade humana de agir em conjunto com outros, construindo uma vontade comum […] mas, [uma] política na escola [que] reconhece que o poder em questão decorre de um contrato firmado entre as pessoas que compõem essa instituição, e considera que o diálogo entre esses sujeitos é precondição para a sua operação, assim se terá uma ação política talvez mais democrática.[…] A gestão democrática é aqui compreendida, então, como um processo político no qual as pessoas que atuam na/sobre a escola identificam problemas, discutem, deliberam e planejam, encaminham, acompanham, controlam e avaliam o conjunto das ações voltadas ao desenvolvimento da própria escola na busca da solução daqueles problemas (p. 124 ).
Assim, destaca-se nessa perspectiva, que a democracia seja compreendida como princípio, uma vez que essa instituição escolar deve atender a um interesse que é de todos. E além de princípio, a democracia deve ser compreendida como método, ou seja, reconhecida como uma ação educativa, no sentido da conformação de práticas coletivas na educação política dos sujeitos.
Essa preocupação em relação à construção de conceitos sobre a gestão democrática é empreendida por outros autores, como é o caso de Lima (2000) que reconhece a gestão democrática enquanto um fenômeno político, fenômeno esse que não se limita aos processos participativos de tomada de decisões, mas que avança para ações voltadas à educação política e ações que fazem parte do cotidiano escolar e que envolvem as relações de poder ali presentes.
Segundo Souza (2009), o conceito de gestão escolar democrática deve ser compreendido como um processo político que vai além do movimento de tomadas de decisão, e que precisa estar permeado pelo diálogo, pela alteridade, pela participação ativa dos sujeitos. No entanto, o autor reconhece que não há um conceito único de gestão democrática, e que outros aspectos podem ser considerados por diferentes pesquisadores, mas que não se deve perder de vista que tais aspectos venham contribuir para o questionamento da realidade e da própria teoria.
Nessa direção, ainda sobre o conceito de gestão democrática, Arroyo afirma que
[…] a gestão democrática contrapõe-se às tradicionais formas privatistas e patrimonialistas do controle do poder na sociedade, no Estado, na formulação de políticas e na gestão das instituições. A gestão democrática defendida pelo movimento docente dos anos 1980 atreveu-se a se defrontar e desestabilizar as estruturas tradicionais de poder e a cultura política que as legitimava; instalou um confronto no campo do poder, não apenas no interior das escolas e do sistema escolar, mas do reparto do poder do /estado, nos governos, nos partidos e na sociedade. (Arroyo, 2008, p. 40)
Nesse sentido, para o autor, o debate da gestão democrática extrapola os limites da escola, e o debate sobre as relações de poder também deve ir nessa direção, uma vez que as estruturas e mecanismos de poder presentes na sociedade adentram o sistema escolar e as escolas. Assim, é importante que se reconheça essa dimensão macro e que a defesa pela gestão democrática da escola e do sistema tenha como finalidade “tornar a escola uma espaço público, libertando-o das tradicionais formas de sua privatização”, no sentido de libertar a escola e o sistema “dos poderes que por séculos os privatizaram, convertendo-os em patrimônio de poderes localistas que pautavam a gestão do Estado e de suas instituições por critérios, valores e lógicas da gestão privada” (Arroyo, 2008, p. 40).
Em suma, não se pode negar que o conceito de gestão democrática representa um marco importante nas pesquisas e na legislação do país, podendo ser considerado como um dos temas que mais esteve presente em pesquisas no campo educacional. Em estudo realizado sobre o levantamento bibliográfico da pesquisa brasileira sobre gestão escolar, a partir da análise dos bancos de dados da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), Conselho de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), um conjunto de 183 trabalhos de mestrado e doutorado em educação, Souza, A. (2006) identificou que a temática da Gestão Democrática encontra-se presente em 31% dos trabalhos na área. Assim, o tema da gestão democrática tem sido eleito tema central de estudos e pesquisas e, para tanto, contou com um respaldo legal, cujas origens remontam à Constituição de 1988 (Vieira; Vidal, 2015).
O processo de “abertura política” vivenciado nos anos 1980 trouxe à tona perspectivas de participação de vários setores na formulação de propostas para as esferas da sociedade, dentre elas a educação. No âmbito da educação, esse processo impulsionou a defesa por grandes bandeiras, destacando-se a questão da gestão democrática, tendo em vista o forte caráter centralizador, hierárquico e verticalizado que predominava na gestão educacional, trazendo como consequência o enfraquecimento da autonomia da escola e da participação nos processos de decisão.
É importante lembrar que, de acordo com Mendonça (2000), a defesa pela democratização dos processos de gestão educacional inseriu-se no contexto macro de luta pela redemocratização da sociedade brasileira, tendo forte atuação dos movimentos sociais que reclamavam por maior participação no processo de tomada de decisão na sociedade. Sobre esse contexto, em especial no âmbito da educação, Rosar (1999) afirma que:
É importante ressaltar que na medida em que foram se criando as condições históricas de superação do regime militar e quando isso efetivamente ocorreu, em meados dos anos 80, o debate entre a perspectiva conservadora na área da administração educacional e uma perspectiva crítica, progressista, foi se ampliando, a ponto de se eleger a temática da democratização da educação e a sua gestão democrática, como eixo fundamental das ações políticas das diversas entidades que constituíram o Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública, durante e após o Congresso Constituinte (Rosar, 1999, p. 166).
O Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública (FNDEP) insere-se na luta pela redemocratização do país e fim da ditadura militar, sendo reconhecido como um dos mais importantes movimentos sociais da educação, como destaca Pinheiro (2015).
As propostas do FNDEP foram resultado do debate desenvolvido entre as diversas entidades que o integravam, a partir das suas plataformas, principalmente, da Carta de Goiânia, aprovada na IV Conferência Brasileira de Educação em 1986, e dos documentos da ANDES [Associação Nacional de Docentes do Ensino Superior], FASUBRA [Federação das Associações dos Servidores das Universidades Federais Brasileiras], CPB [Confederação de Professores do Brasil] que estabeleciam princípios gerais de organização de um sistema nacional de ensino, englobando as instituições públicas e privadas, além da luta pela garantia da qualidade do ensino e da gestão democrática do ensino em todos os níveis (Pinheiro, 2015, p. 155).
Nesse sentido, o FNDEP contribuiu para as conquistas no texto da Constituição Federal de 1988 e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996, impulsionando a incorporação no texto legal da Constituição Federal de 1988 a temática da democratização da sociedade e da escola pública.
Assim, o artigo 206 estabelece os seguintes princípios:
I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;
III – pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino;
IV – gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais.
V – valorização dos profissionais do ensino, garantidos, na forma da lei, planos de carreira para o magistério público, com piso salarial profissional e ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos;
VI – gestão democrática do ensino público na forma da lei;
VII – garantia do padrão de qualidade (BRASIL, 1988, s.p.).
O inciso VI estabelece o princípio educacional sobre a gestão democrática do Ensino Público, sendo marcado pelo caráter inédito que representou um avanço na direção da democratização, apesar de seu conteúdo vago e impreciso, e “ainda que seja difícil avaliar o quanto ele representou na prática da gestão escolar por todo o país” (MINTO, 2010, p. 182).
Sobre a importância do princípio da gestão democrática no texto da Constituição Federal, Adrião e Camargo (2007) afirmam que “os princípios não podem ser desrespeitados por qualquer medida governamental ou pela ação dos componentes da sociedade civil, tornando-se uma espécie de referência” (p. 65) que deve ser considerada nas demais normalizações legais.
No entanto, os autores também apontam as fragilidades de tal princípio, em virtude dos embates que precederam a produção do texto constitucional, que podem ser sintetizados em duas frentes: a frente ligada aos interesses do Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública (FNDEP); e a frente ligada aos interesses privados, dos empresários em educação e de instituições confessionais, comunitárias e filantrópicas.
Em decorrência da pressão dessa segunda frente, Adrião e Camargo (2007) colocam que a própria redação do inciso VI da Constituição Federal marca de forma explícita o atendimento aos anseios desse setor ao atribuir o adjetivo “público” à palavra ensino, excluindo o setor privado da necessidade de se adequar ao referido princípio.
Outra fragilidade do inciso VI do Art. 206 da Constituição Federal refere-se à expressão “na forma da lei”, que, de acordo com Adrião e Camargo (2007) acabou postergando para legislações complementares a definição da gestão democrática. Com isso, o texto da Constituição Federal delega para legislações complementares os mecanismos para implementação de tal princípio. Em suma, os autores apontam que o inciso VI, que estabelece “gestão democrática do ensino público na forma da lei”, traz em seu conteúdo aspectos positivos e negativos, avanços e retrocessos. Avanço no sentido de trazer de forma inédita a gestão democrática do ensino público, e retrocesso ao delegar para legislações futuras as definições dos mecanismos para sua implementação.
Outra lacuna do texto da Constituição Federal é apontada por Minto (2010) em relação à definição do termo “democrático”, ou seja, o texto constitucional não apresentou uma definição clara do entendimento que os legisladores detinham acerca da ideia de democratização desse princípio. Assim, “como o texto constitucional não estabeleceu a definição do termo ‘democrático’, a reivindicação pela ‘gestão democrática’ tornou-se suscetível a deformações e equívocos” (p. 183).
Nos anos 1990, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9394/96) também traz o princípio da gestão democrática nos artigos 3 e 14:
Art. 3º O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
[…]
VIII – gestão democrática do ensino público, na forma desta Lei e da legislação dos sistemas de ensino;
[…]
Art. 14. Os sistemas de ensino definirão as normas da gestão democrática do ensino público na educação básica, de acordo com as suas peculiaridades e conforme os seguintes princípios:
I – participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola;
II – participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes (BRASIL, 1996, s.p.).
Como pode ser observado, o inciso VIII do Art. 3º da LDB, assim como o inciso VI do Art. 206 da Constituição Federal, trazendo também suas fragilidades, já discutidas anteriormente. Já o Art. 14 apresenta outras tantas limitações que merecem ser analisadas. Segundo Paro (2007), este artigo é marcado pelo pouco valor no sentido de se avançar na garantia da democratização da educação. De acordo com o autor,
[…] era mesmo de esperar que uma lei que pretendesse estabelecer as diretrizes e bases da educação no país contivesse normas bem definidas e com validade nacional a respeito da maneira de se concretizar um princípio inerente à própria natureza civil […] da atividade educativa. Mas isso ficou longo de acontecer. Ao estabelecer os princípios que nortearão “as normas da gestão democrática do ensino público na educação básica”, esse Art. 14 é de uma pobreza sem par (Paro, 2007, p. 74).
De acordo com as análises do autor, o inciso I do Art. 14, ao trazer “participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola” evidencia o caráter redundante desse princípio, uma vez que “é o que há de mais óbvio, já que seria mesmo um total absurdo imaginar que a ‘elaboração do projeto pedagógico da escola’ pudesse dar-se sem a participação” dos atores envolvidos (PARO, 2007, p. 74).
Já o inciso II do Art. 14 traz como omissão o fato de não explicitar o caráter deliberativo que deveria ser atribuído aos conselhos escolares, isso seria essencial para assegurar a gestão democrática da escola. Assim, o referido inciso traz apenas a questão da “participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes”, sem mencionar a natureza dessa participação.
Além disso, Paro (2007) adverte também que
[…] ao renunciar a uma regulamentação mais precisa do princípio constitucional da “gestão democrática” do ensino básico, a LDB, além de furtar-se a avançar, desde já, na adequação de importantes aspectos da gestão escolar, como a própria reestruturação do poder e da autoridade no interior da escola, deixa também à inciativa de estados e municípios – cujos governos poderão ou não estar articulados com interesses democráticos – a decisão de importantes aspectos da gestão, como a própria escolha dos dirigentes escolares (PARO, 2007, p. 75).
Vale ainda ressaltar que, mesmo que esse princípio da gestão democrática esteja regulamentado na Constituição Federal e na Lei de Diretrizes e Bases (LDB), apesar de suas fragilidades aqui já apontadas, é importante considerar a própria trajetória da educação brasileira. Ou seja, o processo de materialização do princípio da gestão democrática na escola pública enfrenta ainda outro grande desafio diante dos obstáculos presentes em nossa tradição política brasileira, que tem como características fortes o clientelismo, o autoritarismo e a centralização das decisões.
Ou seja, a gestão democrática não está garantida apenas com textos legais, e segundo Silva (2008), é importante destacar que
As trajetórias percorridas, em prol da construção da gestão democrática no âmbito da educação escolar, são coetâneas do processo de democratização política da sociedade brasileira. Entretanto, é possível afirmar que os processos de democratização da gestão escolar ainda são tênues, marcados por uma tendência autocrática e centralizadora, em detrimento de uma participação compartilhada com os diferentes segmentos escolares (SILVA, 2008, p. 73).
Teixeira afirma que a gestão democrática da escola pública com vistas à sua autonomia deve ser capitaneada em torno de seu Projeto Político Pedagógico (PPP), onde a escola se constitui com um “espaço público de discussão e tomada coletiva de decisões” (2005, p. 1).
Além da Constituição Federal e da LDB de 1996, a gestão democrática aparece também nos textos legais dos Planos Nacionais de Educação de 2001 e no de 2014, recentemente aprovado.
O novo Plano Nacional da Educação, aprovado pela Lei 13.005, de 25 de julho de 2014 (PNE 2014-2024), surge com a intenção de amenizar os problemas na educação brasileira, sendo resultado de um movimento de debate realizado por diversas instâncias, culminando na apresentação de vinte metas para a educação. Segundo Saviani (2007), um plano educacional é o instrumento que visa introduzir racionalidade na prática educativa como condição para se superar o espontaneísmo e as improvisações que são o oposto da educação sistematizada e de sua organização na forma de sistema.
O PNE, Lei 13.005/2014, teve sua trajetória marcada por um movimento de discussão que contou com a participação de organizações da sociedade civil, de entidades acadêmicas e sindicais e de representantes das redes federal, estaduais e municipais de ensino nas Conferências Nacionais de Educação (CONAEs) no decorrer de 2009, como descrevem as autoras :
Durante o ano de 2009, foram realizadas conferências municipais, regionais e estaduais, com financiamento público e participação ampla da sociedade civil, de agentes públicos e de todos os segmentos da comunidade escolar, com o objetivo de discutir aquele Documento e a ele acrescentar temas ou questões. Em cada comunidade escolar e rede de ensino pública ou privada houve intensa mobilização, de forma que a sociedade manifestou seu interesse em participar deste processo, culminado com a realização da Conae entre Março e Abril de 2010, em Brasília, com a presença de quase 4000 pessoas, entre delegados, organizadores, imprensa e demais participantes de todo o país, representando diferentes segmentos e entidades (Peroni; Flores, 2014, p. 182).
O ponto culminante desse movimento foi a entrega de um Documento-Base apresentado aos delegados da Conae 2010 que contou com a inserção de 5.300 propostas elaboradas pelas comissões estaduais e do Distrito Federal (BRASIL, 2010). Com o encerramento da Conae, foi sistematizado um Documento Final pela Comissão Organizadora Nacional e encaminhado ao MEC. Em relação a esse processo de discussão e encaminhamentos da Conae de 2010, Peroni e Flores (2014) avaliam que
De parte da sociedade civil, ficou a expectativa de que em breve e de maneira consolidada, as deliberações da Conferência, aprovadas nas plenárias por seus delegados, passariam a compor o texto do PL a ser encaminhado ao Congresso Nacional, consolidando o processo democrático de votação (PERONI; FLORES, 2014, p. 182).
Entretanto, a distância entre a entrega do Documento Final ao MEC e o encaminhamento do PL nº 8.035/2010 pelo Ministro da Educação Fernando Haddad à Câmara Federal, em 15 de dezembro de 2010, levou oito meses. Peroni e Flores (2014) avaliam que a tramitação deste PL na Comissão Especial da Comissão de Educação da Câmara, ao longo dos anos de 2011 e 2012 provocou forte mobilização da sociedade,
[…] sendo ameaçado por sucessivos anúncios de enxugamento de prazos e redução de instâncias de participação democrática. […] As análises realizadas por diferentes entidades da sociedade civil sobre a versão do PL 8035/10 apresentada pelo Relator Angelo Vanhoni em 06 de dezembro de 2011 evidenciam que o texto deixou muito a desejar, frustrando a sociedade brasileira com a apresentação de metas tímidas e estratégias pouco propositivas para os níveis, etapas e modalidades educacionais, desconsiderando parte substancial das recomendações presentes no Documento final da Conae (Peroni; Flores, 2014, p. 182).
Finalmente aprovado, em 03 de junho de 2014, o texto seguiu para sanção presidencial, sendo sancionada sem vetos pela Presidente Dilma Roussef, em 25 de junho deste ano, a Lei 13.005/14, que aprova o PNE para o próximo decênio.
Em relação ao tema gestão democrática, o Texto da Conae 2010 traz a seguinte assertiva:
[…] democratizar a gestão da educação e das instituições educativas (públicas e privadas), garantindo a participação de estudantes, profissionais da educação, pais/mães e/ou responsáveis e comunidade local na definição e realização das políticas educacionais, de modo a estabelecer o pleno funcionamento dos conselhos e órgãos colegiados de deliberação coletiva da área educacional, por meio da ampliação da participação da sociedade civil; instituir mecanismos democráticos – inclusive eleição direta de diretores/as e reitores/as, para todas as instituições educativas (públicas e privadas) e para os sistemas de ensino; e, ainda, implantar formas colegiadas de gestão da escola, mediante lei específica (Brasil, 2010, p. 44, destaques nossos).
Uma análise do texto do novo PNE em relação à gestão democrática evidencia que não foi incorporada a deliberação da Conae 2010 que propunha a democratização tanto de instituições públicas como privadas. Ao contrário, o texto do novo PNE traz a seguinte redação em seu Art. 2º, Inciso VI: “Promoção do princípio da gestão democrática da educação pública” (BRASIL, 2014, s. p., destaques nossos).
Considerando que o texto do novo PNE aponta a gestão democrática do ensino “público”, abre-se brecha para que a gestão do ensino privado possa se pautar em uma gestão autoritária, assim como já discutido anteriormente.
Já o Documento-Referência da Conae de 2014, o teor dado à gestão democrática pode ser assim analisado:
O Documento-Referência da Conae 2014 propõe a “adoção de novos modelos de organização administrativa e de gestão, nos quais seja garantidos a participação popular e o controle social, baseado na concepção de gestão democrática, intersetorial, que se contrapõe a processos de gestão gerencial, burocrático e centralizador” (p.75). Nesse documento associa-se a “gestão democrática” ao “controle social”. […] Essa é uma grande e auspiciosa inovação em relação ao Documento-Referência anterior (2010) em que nenhuma das duas expressões aparecia. Comparando os dois documentos, há um grande avanço na questão da gestão democrática. […] A expressão “participação popular” não é mencionada. O “controle social” se encontra mais restrito ao financiamento da educação (Eixo V). A “gestão democrática” aparecia mais associada a qualidade da educação e avaliação (Gadotti, 2014, p. 9).
Ou seja, segundo Gadotti (2014), o texto da II CONAE (2014) avança no tratamento da gestão democrática, considerando que no Documento-Referência da CONAE de 2010 o enfoque dado à gestão democrática refere-se à construção da qualidade da Educação pela participação da comunidade na escola e a avaliação emancipatória.
Já II CONAE (2014) “envolve questões políticas internas e externas aos sistemas de ensino e às instituições educacionais” (GADOTTI, 2014, p. 9), ultrapassando a perspectiva micro das instituições educacionais e dos sistemas de ensino para contemplar a discussão acerca da reorganização das estruturas administrativas e organização da educação como um todo por meio do controle social (SABIA; ALANIZ, 2015).
No entanto, apesar desse avanço, de uma CONAE (2010) para outra (CONAE, 2014), o texto do PNE aprovado (Lei 13.005/2014) é avaliado por muitos estudiosos como um documento marcado pelo retrocesso em relação às diretrizes estabelecidas nos Documentos referências da I e II CONAEs (2010; 2014), como relatam as autoras
É provável que tal retrocesso decorra da luta de concepções, do poder de influência de grupos econômicos e políticos e da adequação aos interesses políticos do estado brasileiro. Entre tais grupos, podemos citar o Movimento Todos pela Educação, o qual se identifica como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) e autodenomina-se apartidário, contudo ele é politicamente situado, uma vez que é composto pelo segmento do empresariado, membros da mídia, entre outros (Sabia; Alaniz, 2015, p. 54).
Duas metas do novo PNE tratam da gestão democrática: a Meta 7 e a Meta 19. A primeira refere-se a questão da qualidade da educação básica vinculada ao IDEB.
Meta 7: fomentar a qualidade da educação básica em todas as etapas e modalidades, com melhoria do fluxo escolar e da aprendizagem de modo a atingir, progressivamente, até 2021, as seguintes médias nacionais para o Ideb: 6,0 para os anos iniciais do ensino fundamental; 5,5 nos anos finais do ensino fundamental e 5,2 no ensino médio (BRASIL, 2014, s.p.).
Ao estabelecer a relação entre qualidade e IDEB, o texto do novo PNE evidencia o compromisso com o conceito de qualidade da educação, em consonância com a visão gerencial, fundamentada em resultados, traduzidos em índices quantificáveis como o IDEB.
Outro retrocesso está explícito na Meta 19 do PNE, que estabelece:
Meta 19: assegurar condições, no prazo de dois anos, para a efetivação da gestão democrática da educação, associada a critérios técnicos de mérito e desempenho e à consulta pública à comunidade escolar, no âmbito das escolas públicas, prevendo recursos e apoio técnico da União para tanto (BRASIL, 2014, s.p., destaques nossos).
O texto da Meta 19 evidencia uma concepção de gestão democrática enraizada na lógica liberal de mérito e desempenho, afastando-se da preocupação com uma perspectiva de radicalização da democracia no interior da escola e na gestão da educação, bandeira defendida, historicamente, pelos trabalhadores da educação. Além disso, a meta 19 afasta-se dos debates e princípios deliberados nas CONAEs, quando limita o conteúdo da gestão democrática a esses parâmetros de mérito e desempenho. Percebe-se o teor de gerencialismo que se faz acompanhar de uma forte cobrança em torno da performatividade, delineando com isso uma política de resultados centrada em desempenhos quantificáveis. Em suma, tem-se a presença de forte conteúdo que insere a gestão escolar no PNE é uma gestão por resultados, demarcado pelos índices de desempenho escolar, em desconsideração aos objetivos educativos da educação pública, assentado em um modelo de responsabilização dos gestores e professores pela “qualidade” da educação, a partir de metas definidas por testes padronizados, o que abre o caminho para o desmonte do sistema público de educação (PERONI; FLORES, 2014).
Ao fazer referência à “consulta pública à comunidade escolar”, a Meta 19 pode representar certo avanço nos locais onde não há histórico de gestão democrática. Por outro lado, a associação de critérios técnicos de mérito e desempenho a essa consulta à comunidade restringe a própria efetividade deste princípio. Por exemplo, Peroni e Flores (2014) afirmam que o termo “consulta pública” corre o risco de não representar exatamente a eleição direta de dirigentes escolares, uma vez que a forma vaga do texto legal abre brechas para diferentes interpretações.
Essa fragilidade do texto do PNE é avaliada por Sabia e Alaniz no trecho a seguir:
A redação do texto [do PNE] aprovado é ambígua ao abordar o critério técnico de desempenho atrelado à consulta pública a comunidade. Contraditoriamente, o texto da meta conjuga a gestão democrática, que pressupõe poder de decisão coletivo sobre os rumos da escola e da política educacional, com a lógica individualista e liberal da meritocracia. Fica a dúvida de qual seria a função da consulta à comunidade nesse caso, uma vez que o critério técnico de desempenho selecionaria o gestor (SABIA; ALANIZ, 2015, p. 54).
Essa redação da Meta 19 apresenta uma fragilidade conceitual ao combinar concepções da gestão meritocrática e da gestão democrática, desconsiderando o distanciamento entre as duas perspectivas conceituais. Ou seja, a redação da Meta 19 tenta articular mecanismos de gestão com concepções antagônicas: uma de matriz democrática e outra vinculada a um modelo gerencial, restando aos entes federados o desafio de implementar em conjunto critérios tão distintos.
Considerações finais
A gestão democrática não está assegurada apenas com textos legais, mas precisam ser pensadas ações de forma concreta para sua implementação tanto na dimensão da escola como na dimensão dos sistemas de ensino. Segundo Silva, é importante destacar que “É possível afirmar que os processos de democratização da gestão escolar ainda são tênues, marcados por uma tendência autocrática e centralizadora, em detrimento de uma participação compartilhada com os diferentes segmentos escolares” (2008, p. 73).
As reflexões aqui tecidas mostram que podem ser contabilizados tanto avanços como perdas em relação à questão da gestão democrática da educação brasileira. Considerando a trajetória educacional brasileira, é preciso compreender que a concretização da gestão democrática na escola pública tem sido um grande desafio diante dos entraves que fazem parte de nossa tradição política, que foi sendo alicerçada no clientelismo, no autoritarismo e na centralização das decisões.
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[1] Possui graduação em Geografia pela Universidade Federal de Uberlândia (2001), Mestrado Acadêmico em Educação pela Universidade Federal de Uberlândia (2017). Atualmente é vice diretora escolar da Escola Municipal Professor Oswaldo Vieira Gonçalves. Atua principalmente nos seguintes temas: gestão escolar, política educacional, educação à distância. E-mail: vanuzasouzza@yahoo.com.br
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