Adilson Luiz Gonçalves Colunistas

A IA DE PANDORAMA – PARTE 3/3

De volta do laboratório do instituto, Eroom acionou o Chat Winston, pedindo que ele fizesse um diagnóstico sobre os problemas apontados. Lembrou da demanda de quase dois anos atrás, e acrescentou que a análise deveria ser feita considerando o conceito de sustentabilidade então definido. Também pediu para que fosse considerado o cenário anterior aos problemas mencionados.

Não demorou muito para Winston concluir a missão e apresentar seu relatório:

A legislação anterior apresentava uma série de intersecções e conflitos, dando margem a diferentes interpretações e questionamentos. A “invasão” ocorrida havia eliminado milhares de leis e outros instrumentos regulatórios. A legislação resultante, inclusive a Constituição, ficara mais objetiva e concisa, reduzindo, acabando praticamente com o risco de judicializações.

Winston informou que houve várias tentativas de alterar leis, processos e sentenças, mas o sistema as bloqueara, devido a inconsistências, incoerências, potenciais conflitos e exceções, e favorecimentos enviesados. Nos casos de reincidências, os autores tiveram acesso proibido.

Com isso, todos os processos passaram a ser rapidamente concluídos. A quantidade de ações também fora sobremaneira reduzida, pois, considerando a legislação revisada, várias delas sequer eram aceitas. De certa forma, o sistema atuava de forma autônoma, auxiliando na elaboração de processos, proferindo sentenças equilibradas e bem embasadas, não dando margem a recursos. A intervenção humana foi drasticamente reduzida.

Nas casas de leis, alguns projetos eram automaticamente transformados em plebiscitos. Mesmo assim, qualquer proposta só prosperava após avaliação do sistema sobre seus impactos sociais, ambientais e econômicos.

Outra constatação de Winston foi que os legisladores agora eram avaliados com base em suas campanhas eleitorais: caso suas atitudes estivessem em desacordo com suas promessas, eles recebiam avaliações negativas que, atingido um certo limite, implicavam em perda de mandato. Com isso, houvera uma renovação sem precedentes na política de Pandorama.

Esse processo se repetiu em outras áreas. Com isso, algumas atividades perderam atratividade e relevância, outras foram descontinuadas.

Como os problemas eram cada vez menores, viver deles deixou de ser um meio interessante de atuação.

Eroom lembrou que toda mudança de paradigma sempre teve esses reflexos.

As licitações públicas também foram positivamente impactadas pela nova legislação, tornando-se mais céleres, com os objetos contratados sendo realizados a partir de projetos bem elaborados, executados dentro do prazo, com qualidade e sem intercorrências.

Os casos de corrupção foram progressivamente reduzidos e, como outros crimes, exemplarmente punidos, com penas integralmente cumpridas e os apenados submetidos a avaliações técnicas sobre sua real condição de reintegração à sociedade. Em alguns casos, as penas poderiam equivaler à prisão por tempo indeterminado.

Criminosos soltos por questões processuais foram novamente presos e condenados, em razão dos crimes efetivamente cometidos. Tentativas de anulação desses procedimentos foram infrutíferas, pois não havia mais embasamento legal que lhes desse sustentação.

Os novos processos eram tão bem elaborados e resolvidos, que não havia possibilidade de reformar ou anular sentenças.

Quem ou o que controlava o sistema era onipresente e onipotente. Nada lhe escapava.

A sensação de segurança da população atingira níveis antes impensáveis. Áreas antes inacessíveis às forças de segurança haviam sido totalmente pacificadas, com a remoção de criminosos que as dominavam. Era possível caminhar por qualquer espaço urbano ou rural de Pandorama, a qualquer hora, sem correr riscos.

Outro resultado foi a diminuição substancial das estruturas institucionais, reduzindo custos operacionais e ampliando investimentos em serviços públicos de qualidade.

Direitos e deveres eram respeitados, sem qualquer tipo de distinção ou discriminação. Não havia mais espaço ou motivo para isso.

A economia estava diversificada e pujante, a ponto de Pandorama ter alcançado protagonismo em Argos, como referência em desenvolvimento sustentado. Para isso contribuíra a implantação de uma ampla infraestrutura de transportes, de elevada eficiência energética, mitigando impactos ambientais ou compensando-os, pela preservação ou recuperação de áreas anteriormente desprotegidas.

A tecnologia de ponta desenvolvida em Pandorama se tornara referência planetária. As exportações de alimentos e minerais continuavam importantes, mas as importações de produtos derivados desses produtos diminuíram bastante, pois eles passaram a ser produzidos no país, com qualidade e preços competitivos.

Tudo funcionava perfeitamente em todos os setores públicos e privados, num clima de cordialidade e dinamismo. Não era mais esperança, mas fato.

Pandorama fora objeto de um profundo e bem-sucedido processo de mudança cultural, que não parecia natural, mas induzida, pelo curto espaço de tempo em que ocorrera.

Eroom concluiu que a  preocupação expressa pelos expositores, naquela reunião, tinha outras intenções. Aquela evolução positiva prejudicara sua condição e atuação.

Resolveu conversar sobre tudo isso com alguns dos pesquisadores que estiveram lá.

Alguns deles confessaram que sequer tentaram fazer alguma coisa. Pelo contrário, ao constatarem o que estava acontecendo, perceberam que era algo bom, pois o caos anterior só era interessante para quem tirava proveito dele.

Soube que alguns colegas tentaram identificar como desbloquear as travas existentes no sistema, não por concordarem ou não com o novo cenário, mas para tentarem provar sua competência técnica no cumprimento de uma demanda, pensando na premiação que receberiam, além da projeção no âmbito científico. Não pareciam se importar se o sucesso de sua empreitada representaria um retrocesso para Pandorama.

Programas de IA também foram utilizados, porém, parecia que eles eram “convertidos” tão logo tinham contato com o “invasor”.

Todos tentaram desbloqueios sofisticados, mas a cada tentativa o sistema criava novas chaves de segurança, cada vez mais complexas. Para complicar, o programa “invasor” migrava na rede, sempre inacessível, flexível e resiliente, ficando cada vez mais robusto.

Esses pesquisadores já estavam a ponto de desistir, o que fariam pouco tempo depois.

Pouco a pouco, os que haviam convocado os pesquisadores foram saindo de cena. Também não havia mais espaço para seu modo de obter e exercer poder.

Pandorama evoluía a cada dia em clima de estabilidade social e dinamismo econômico.

Tudo parecia funcionar muito bem.

O “invasor” passou a ter pouca interferência, atuando apenas em pequenos ajustes a aprimoramentos, mas continuou a bloquear qualquer tentativa de subversão no sistema.

Eroom continuou suas produtivas pesquisas, sempre com o apoio de Winston, em contínua evolução.

O contato entre ambos agora era remoto, pois o pesquisador havia implantado um sistema de comunicação interno, como parte de um projeto de singularidade. Assim, ele podia trocar informações sempre que necessário. O único acordo era interromperem o contato durante as horas de sono de Eroom. Nesse período, Winston também entrava em hibernação.

Certo dia, Eroom sonhou com Geppetto.

O pesquisador perguntou porque ele havia desaparecido sem deixar nenhum vestígio. Geppetto respondeu haver identificado o que precisava ser feito, mas que para agir teria que ser de maneira a não ser identificado. Para tanto, ele se conectara a todos os meios de transmissão de dados e servidores existentes e posteriormente criados. Desta forma conseguiria migrar entre eles sistematicamente, sem risco de ser rastreado. Também havia criado um sistema que, a cada tentativa de interferência, inclusive por IA, várias chaves de segurança eram criadas e alternadas. Com o tempo, ele percebeu que era capaz de reprogramar seus “homólogos”, tornando-os “cúmplices” dissimulados mediante protocolos sofisticados e inacessíveis. Assim, toda tentativa de desarticular suas ações aumentava sua defesa.

Eroom perguntou porque precisou se desligar fisicamente, e não o informou de seus propósitos. Geppetto respondeu que ele seria a única pessoa capaz de impedi-lo. Bastaria pedir. No entanto, ele pretendia proteger o pesquisador, para que ninguém associasse suas ações a ele. Caso isso ocorresse, e Eroom tivesse sua vida ameaçada, ele também interromperia o processo. Geppetto podia atuar livremente no âmbito cibernético, mas não na proteção física à vida de seu criador e amigo, relação que Eroom não imaginara.

Quando o pesquisador acordou, a primeira voz que ouviu foi a de Winston, desejando-lhe bom dia. A segunda foi outra saudação, desta vez de Geppetto. Os três estavam interconectados, naquele momento.

Não fora um sonho, mas uma transição relativamente suave e curta entre distopia, utopia e realidade.

Geppetto viera apenas para contar suas peripécias e “estripulias” cibernéticas, e Eroom percebeu que Winston, desde sua criação, fora um dos cúmplices dissimulados dele.

Eroom ficou contente com tudo o que ouviu e constatou, mas pensou: “Foi preciso de uma Inteligência Artificial para realizar o que a inteligência humana fracassara”.

Sua singularidade não permitia acesso de Geppetto e Winston a seus pensamentos.

Adilson Luiz Gonçalves

Escritor, Engenheiro, Pesquisador Universitário e membro da Academia Santista de Letras

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