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Entre Paredes

ENTRE PAREDES

Não há paz enquanto se habita o tumultuado quarto de despejo – seja ele real, seja metafórico. O silêncio da solitária é um estrondo, uma trovoada de desprezo que não para de soar na cabeça e na alma.

Eliana Alves Cruz

Margarete Hülsendeger
A carioca Eliana Alves Cruz vem se consolidando como uma das principais vozes da literatura afro-brasileira contemporânea, abordando temas como ancestralidade, racismo e as vivências das mulheres negras. Seu primeiro romance, Água de Barrela (2016), vencedor do Prêmio Literário Oliveira Silveira, narra a trajetória de uma família desde a África até o Brasil, revelando as cicatrizes deixadas pela escravidão. Em O Crime do Cais do Valongo (2018), a autora mistura mistério e história para explorar a violência racial. Agora, com Solitária (2022)[1], ela foca nas relações de poder e classe, utilizando a complexa dinâmica entre mãe e filha para contar uma história de resistência e opressão no Brasil contemporâneo.

Em Solitária, somos apresentados a Eunice e Mabel, duas mulheres negras que vivem e trabalham em um condomínio de luxo em uma grande cidade brasileira. Eunice, a mãe, é uma empregada doméstica veterana, com anos de serviço prestado aos seus patrões, ao passo que Mabel, sua filha, busca convencê-la a se libertar desse ambiente opressivo. A relação entre mãe e filha é o núcleo da narrativa, marcada por uma tensão profunda: Eunice, após décadas de trabalho, resigna-se ao seu papel, enquanto Mabel deseja romper o ciclo de submissão e dependência que define a vida de tantas mulheres negras. Cruz aborda essa tensão de maneira sensível, destacando as complexidades emocionais e sociais envolvidas, onde amor, lealdade e desejo de liberdade se entrelaçam.

Uma característica marcante do romance é o papel simbólico dos espaços físicos, que ganham voz na narrativa. Os capítulos são intitulados com nomes de ambientes, e esses espaços “falam”. No capítulo “Quarto de empregada”, por exemplo, o cômodo revela: “Nós, os ‘quartinhos’, estamos sempre perto dos odores da vida das pessoas que não nos habitam.” Essa passagem evidencia como o espaço destinado às empregadas domésticas é uma metáfora da invisibilidade e marginalização dessas mulheres. O quartinho, pequeno e escondido, é um símbolo da exclusão: as empregadas estão sempre próximas à intimidade das famílias para as quais trabalham, mas sem jamais pertencer a esse mundo. Esses espaços são testemunhas silenciosas de uma realidade marcada pela desigualdade.

Cruz também dialoga com obras literárias que abordam a resistência e denúncia social. Um desses diálogos é com Quarto de Despejo (1960), de Carolina Maria de Jesus, que retrata a vida de uma mulher negra nas favelas de São Paulo. Ao citar Carolina, Cruz ressalta a continuidade das lutas das mulheres negras no Brasil, cuja exclusão e invisibilidade persistem ao longo das décadas. Outro diálogo relevante é com Cartas a uma negra (1962), de Françoise Ega, uma empregada doméstica antilhana que viveu em Marselha, na França. Assim como Eunice, Ega testemunhou as dinâmicas de opressão nas relações de trabalho doméstico. Esse livro é uma coletânea de cartas na qual relata suas experiências, ressoando fortemente com os temas de Solitária. Ao incluir essa referência, Cruz amplia o alcance de sua narrativa, mostrando que as vivências das empregadas domésticas não se limitam ao Brasil, mas fazem parte de uma história global de racismo, classe e exploração.

Embora o crime cometido no condomínio seja o ponto de partida da trama, o verdadeiro foco do romance são as relações humanas e as estruturas de poder que as cercam. O vínculo entre mãe e filha é o centro da narrativa, construído com uma profundidade emocional que revela o peso das expectativas e das imposições sociais sobre ambas. O racismo estrutural, a desigualdade de classe e a subordinação das mulheres negras no Brasil emergem nas interações das protagonistas com seus patrões, e a narrativa deixa claro como essas dinâmicas perpetuam ciclos de exploração e dependência.

Ao retratar Eunice e Mabel, Eliana Alves Cruz nos oferece um retrato íntimo e doloroso de duas mulheres que lutam por sua liberdade. No entanto, a narrativa de Solitária não é apenas uma crítica social, é também uma celebração da resistência dessas mulheres, que, mesmo diante de condições adversas, continuam buscando maneiras de romper o ciclo de subjugação que marcou a vida de tantas gerações.

Com uma prosa envolvente e rica em significados, Solitária reafirma a relevância de Eliana Alves Cruz no cenário literário brasileiro, trazendo à tona temas urgentes e necessários. O romance, ao focar nas relações entre mãe e filha e nas camadas de dominação racial e social, é uma leitura essencial para entender as dinâmicas que ainda estruturam a vida de tantas mulheres negras no Brasil e no mundo.


[1] CRUZ, Eliana Alves. Solitária. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

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