Mitologia é o nome que damos às religiões dos outros.
Joseph Campbell
Caminhamos pelo mundo buscando entender quem somos, como sentimos e o porquê de agirmos de certas maneiras. Nas camadas mais profundas da nossa psique, os arquétipos – essas figuras simbólicas e universais que atravessam culturas – operam silenciosamente, influenciando nosso comportamento, emoções e visões de mundo. E, em meio a tantos sistemas de crenças, os Orixás, divindades da mitologia africana, oferecem um retrato fascinante desses aspectos profundos da mente humana.
Para quem nunca ouviu falar, os Orixás são entidades cultuadas principalmente nas religiões de afro-brasileiras, como o Candomblé e a Umbanda, cada uma com sua própria história, personalidade e domínio sobre certos elementos da natureza. Eles não são distantes, perfeitos ou inalcançáveis. Pelo contrário, são intensamente humanos em seus sentimentos e comportamentos. E é aí que mora a ponte entre eles e nossa própria psique.
Imagine Exu, o mensageiro, o Orixá das encruzilhadas e dos caminhos. Ele é conhecido por ser malandro, irreverente e, por vezes, até caótico. Porém, na verdade, Exu representa o movimento, a mudança, a energia que nos faz sair da inércia e tomar decisões. No plano psicológico, ele encarna aquele impulso dentro de nós que nos coloca em ação, que nos tira da zona de conforto. Já Iansã, com seus ventos e tempestades, nos fala sobre paixão e liberdade. Ela é a senhora das emoções intensas e dos desejos que nos arrebatam. Psicanaliticamente, Iansã representa aquela força incontrolável dentro de nós: os desejos e as vontades que não se curvam às regras da razão. Ela é o símbolo do impulso emocional, do desejo de seguir o vento, mesmo sem saber onde ele nos levará.
Então chegamos a Iemanjá, a mãe das águas salgadas, senhora dos oceanos. Seu arquétipo é o da Grande Mãe, aquela que acolhe, protege e nutre. Na psique humana, Iemanjá representa a necessidade de pertencimento, de segurança emocional e de conexão com a origem. Ela é o colo para o qual voltamos nos momentos de desespero, o símbolo do inconsciente coletivo, das águas profundas que carregam nossos medos, anseios e memórias. Iemanjá é essa âncora emocional, o porto seguro da psique.
Oxum, por outro lado, é a deusa dos rios, das águas doces, do amor e da beleza. Sua energia está ligada ao arquétipo do feminino sensual e amoroso, mas também da vaidade e da busca por harmonia estética. Oxum é o arquétipo da mulher que busca o amor, que se vê nos espelhos da alma e do corpo, que deseja ser admirada e valorizada. No campo psicológico, ela nos lembra de nossa necessidade de afeto, de autoaceitação e de valorização emocional. Oxum é o impulso para sermos amados e, ao mesmo tempo, a força que nos leva a buscar equilíbrio interno, seja através do amor próprio ou do amor que oferecemos ao outro.
Ogum, o Orixá guerreiro, forjador de caminhos, é a personificação da determinação e da disciplina. Ele nos lembra do arquétipo do herói, aquele que enfrenta batalhas internas, que luta contra suas próprias limitações para alcançar um objetivo. É a energia de Ogum que surge quando precisamos de coragem para enfrentar um problema, romper barreiras e conquistar um espaço no mundo. Por sua vez, Xangô é o Orixá da justiça, do trovão e do fogo. Seu arquétipo é o do juiz, aquele que busca equilíbrio e equidade, mas que também carrega uma natureza impulsiva e orgulhosa. Em nossa psique, Xangô é a representação do desejo por justiça e retidão, a necessidade de fazer o que é certo, mas também o desafio de controlar nossas emoções quando nos sentimos traídos ou injustiçados.
E no topo, observando tudo com uma serenidade inabalável, está Oxalá, o Orixá da criação, da paz e da sabedoria. Ele representa o arquétipo do Pai, aquele que busca harmonia e equilíbrio, mas o faz com uma calma inata, como se soubesse que, no final, tudo encontrará seu lugar. Psicanaliticamente, Oxalá é a imagem da figura paternal arquetípica, que nos guia em direção à sabedoria e à paz. Ele é a manifestação daquela parte de nós que deseja conciliar, que busca harmonia em meio ao caos. Quando a vida parece em desordem, é a energia de Oxalá que nos lembra da importância da paciência, da tranquilidade e de confiar que o tempo e a maturidade trarão respostas.
Os Orixás, portanto, não são apenas deuses ou seres míticos distantes da realidade. Eles são reflexos de nós mesmos, de nossas emoções e de nossos conflitos internos. Cada um deles personifica uma força ou uma fraqueza, um desejo ou uma necessidade que todos nós, em algum momento, experimentamos. A ideia de que essas entidades são “irracionais” ou “misteriosas” muitas vezes parte da falta de entendimento sobre a riqueza simbólica que carregam. Na verdade, eles nos ajudam a visualizar, quase poeticamente, nossos próprios dilemas psicológicos.
Talvez a grande lição que os Orixás trazem para nossa mente seja a aceitação da complexidade humana. Somos todos como Oxum, ao mesmo tempo delicados e intensos; como Xangô, buscando justiça, mas, às vezes, cegos pela raiva; e como Iemanjá, lutando contra as correntes emocionais enquanto buscamos uma paz profunda. E somos também como Oxalá, desejando a sabedoria e o equilíbrio que só vêm com o tempo e a reflexão. Por fim, a verdade é que cada Orixá habita em nós.