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Entrevista exclusiva com Antônio Cícero

ENTREVISTA EXCLUSIVA

Antônio Cícero

Por Zeh Gustavo, Celso Gomes e Áurea Alves
Entrevista publicada originalmente para o extinto jornal Algo a Dizer, junho de 2008

O poeta, filósofo, letrista e articulista da Folha de SP Antônio Cícero é o entrevistado do Algo a Dizer deste mês. O irmão da cantora Marina Lima – que em seus artigos é um radical defensor das contribuições do Iluminismo a uma cultura universal – nos fala das grandezas e possibilidades do fazer poético nos dias de hoje e de suas relações com a canção e a filosofia.

Algo a Dizer – Poesia, música popular, filosofia: em que pontos esses três sistemas de criação e exercício do pensamento se tocam e em que pontos se diferenciam no seu trabalho com a palavra?

Antônio Cícero – Entre a letra de música e o poema, penso que a diferença é que a letra de música é feita para compor uma totalidade que é a canção; e não apenas a canção, mas a canção cantada, enquanto que o poema é feito para ser lido. Hoje em dia, costumo fazer letras para melodias que me são dadas pelos compositores. Por isso, quando as escrevo, levo em conta a melodia. Esta, por um lado, me inspira, mas, por outro lado, me obriga a seguir determinada métrica, determinado ritmo, determinado mood. Levo em conta também o compositor da melodia. Não faço a mesma coisa para João Bosco que para Adriana Calcanhotto. Além disso, levo em conta a pessoa que pretende cantá-la. Uma boa letra é uma letra que consegue contribuir para que a canção de que ela faz parte seja boa. Se ela fizer isso, então, mesmo que não seja boa para a leitura, ela é uma boa letra. Se ela não fizer isso, então, ainda que seja boa para a leitura, não é uma boa letra. Seu fim não está em si própria, mas na canção. Ela é, portanto, heterotélica. Já o poema é autotélico: seu fim está em si próprio. Se ele for bom ao ser lido, ele é bom.

Por outro lado, entre a filosofia e a poesia e/ou a letra, a diferença é radical. A filosofia se serve das palavras para dizer coisas. Já a poesia se serve das palavras e das coisas que as palavras dizem para construir uma obra de arte, um objeto que vale por si, e cujo sentido não é dizer coisa alguma em particular.

Algo a Dizer – Quem e quais seriam, na cultura brasileira, as referências de Antonio Cicero?

Antônio Cícero – São muitas, de modo que vou dizer apenas algumas, e certamente vou esquecer algumas das mais importantes. Mas lembro logo de Carlos Drummond de Andrade, Machado de Assis, João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira, Vinícius de Moraes, Cecília Meireles, Caetano Veloso, Augusto de Campos, Ferreira Gullar, Haroldo de Campos, Décio Pignatari, Waly Salomão, Villa-Lobos, Tom Jobim, João Gilberto, Noel Rosa, Nelson Cavaquinho, Lupiscínio Rodrigues, Aleijadinho, Volpi, Oscar Niemeyer, Glauber Rocha, Hélio Oiticica, Lygia Clark, José Celso, Antonio Dias, Luciano Figueiredo, Fernanda Montenegro, João Bosco, Adriana Calcanhotto, José Miguel Wisnik, Adauto Novaes, Armando Freitas Filho, Eucanaã Ferraz, Paulo Henriques Britto, Nelson Ascher, Arnaldo Antunes, Marina, Lenora de Barros, Carlos Nader, Helio Eichbauer, M.D. Magno, Gilberto Freyre…

Algo a Dizer – Letra de música é poesia, ou é apenas um texto que se ajusta à melodia?

Antônio Cícero – Um poema é uma obra de arte; e uma letra de música é parte de uma obra de arte, que é a canção. Pois bem, uma parte de uma obra de arte pode ser melhor do que uma obra de arte autônoma. Por exemplo, os afrescos que Michelangelo fez para o teto da Capela Sistina fazem parte da Capela Sistina; e são melhores do que quase todas as pinturas já feitas. Os poemas líricos gregos eram todos letras de música. Perderam-se as melodias, ficaram as letras. E estão entre os maiores poemas da literatura universal.

Algo a Dizer – Como são desenvolvidas as letras de suas músicas? Como é fazer algo que se transforma em música, que vai se transformar em canto, sem ser propriamente um músico, alguém que conhece, tecnicamente, o fazer musical?

Antônio Cícero – Mesmo sem saber nada de música, ela me emociona e me inspira alguma coisa. A partir dessa coisa, dessa emoção, desse sentimento, nasce a letra.

Algo a Dizer – Por que será que a hierarquização proposta por Ezra Pound, dividindo os criadores entre os inventores (aqueles que instituiriam a novidade) e os diluidores (aqueles que repetiriam, expandiriam o instituído pelos inventores) pegou tanto? Engraçado é que, na música, ao menos na música popular brasileira, parece não existir muito patrulhamento em relação a essa exigência de novidade, enquanto que na literatura…

Antônio Cícero – Na verdade, a classificação de Pound inclui, além dos inventores e dos diluidores, os mestres, os bons escritores sem qualidades notáveis, os beletristas e os lançadores de moda. Mas o problema é que um grande poeta pode ser todas essas coisas, ou várias delas, de modo que, no fundo, essa classificação não serve para nada: ou melhor, ela dificulta uma apreciação despreconceituosa da poesia, quando é usada para colocar cada poeta numa só dessas categorias. Desse modo, Mário Faustino, por exemplo, que, em geral, era um bom crítico, cometeu uma injustiça contra Drummond, o maior poeta da sua época. A classificação de Pound pegou porque, como todo dogma, dispensa o trabalho do pensamento, dando a ilusão de fornecer um critério simples, através do qual seja possível julgar a importância dos diferentes poetas.

Algo a Dizer – Para falar um pouco de “O mundo desde o fim”… Há uma crítica sua, urgida com muita propriedade, ao conceito de “pós-moderno”, que seria um “supermoderno”, um “chegar agora” a um “agora” que antes se quis alcançar e que, agora, efetivamente, chegou e se quer superar. Não soa como irracional esta espécie de disputa, no cerne do moderno, pelo “agora” mais “agoral” possível? Que tempo é este em que se quer sempre descartar, negar um dado presente, sem necessariamente afirmá-lo como passado ou memória?

Antônio Cícero – Minha crítica é muito simples: moderno quer dizer “pertencente a agora”, ou “agoral”. Sendo assim, “pós-moderno” quer dizer “pertencente ao que vem depois de agora”, ou “pós-agoral”. Mas sempre é agora. O que vem depois de agora não existe. Como pode, então, alguma coisa pretender pertencer ao que vem depois do agora? Como pode alguma coisa ser pós-moderna?

Algo a Dizer – Que peso a tradição da ruptura, característica da modernidade, ainda exerce sobre quem cria?

Antônio Cícero – A ruptura é sempre a ruptura da imposição de alguma regra tradicional. Quando nenhuma regra mais é imposta a ninguém – pois todas já foram rompidas, inclusive a regra da ruptura –, não há mais ruptura: não há mais lugar para a tradição da ruptura. Essa é a situação hoje.

Algo a Dizer – O quanto movimentos como o de Mário Chamie e a Poesia Práxis, que postulavam que a palavra poética nunca deveria surgir refém de uma teoria prévia, e a própria produção da chamada Geração Mimeógrafo, que utilizava de sua condição de marginalidade para combater tudo o que lembrasse o poder, influem na produção de poesia contemporânea e na poesia de Antonio Cicero?

Antônio Cícero – Independentemente de Chamie e da Poesia Práxis, sempre achei que a poesia vem antes da teoria. Entretanto, é provável que tanto a Poesia Práxis quanto a poesia da Geração Mimeógrafo me tenham influenciado, pois praticamente tudo me influencia, mas não se trata de influências conscientes.

Algo a Dizer – De onde surge o novo, sem vanguardas? E, por outro ângulo, quem verá o novo, se cada vez mais há expansão e diluição de suportes, num mundo desterritorializado?

Antônio Cícero – Todo novo poema é novo, ponto. Além disso, sempre haverá arte experimental. Mas ela não deve ser chamada de “vanguarda”, porque só são de vanguarda os movimentos que legitimamente têm a pretensão de estar à frente dos demais, apontando o caminho que estes deverão seguir. Ora, seria ridículo pensar que alguém esteja “à frente” dos outros, no cenário contemporâneo. Não há mais poetas “avançados” e poetas “atrasados”, mas apenas poetas bons e poetas ruins.

Algo a Dizer – Há escassez de filósofos em língua portuguesa ou a filosofia em língua portuguesa se manifestaria pela exploração de outros campos da linguagem?

Antônio Cícero – Na minha opinião, há mesmo escassez de filósofos, e não devemos tentar escamotear esse fato, mas tentar superá-lo, praticando a filosofia.

Algo a Dizer – O que você pensa acerca da função da crítica na arte? Estaria ela, hoje, também recolhida em nichos, guetos que se auto-elogiam?

Antônio Cícero – A crítica de arte de fato se encolheu nas últimas décadas, mas tenho a impressão de que isso vai mudar. Acho que os próprios artistas sentem cada vez mais necessidade de criticar e discutir a arte.

Algo a Dizer – Percebe-se que, assim como as mudanças na música, houve uma mudança nas letras, com o passar dos tempos.  Como você percebe isso?

Antônio Cícero – De modo geral, há mais liberdade hoje.

Algo a Dizer – Em analogia com seu poema “Guardar”, que dá título ao livro homônimo: a poesia ainda guarda alguma coisa? Depois dos ícones Drummond e Cabral, é possível fazer poesia no Brasil sem cair na mesmice multiplicada que vemos em vários poetas contemporâneos, cuja produção ficou restrita a nichos universitários, antologias, coletâneas, coleções autopromocionais e blogues?

Antônio Cícero – Há mais espaços e veículos para a poesia, mas não acho que isso seja ruim. E não percebo a mesmice de que você fala. Todo tipo de poesia é feito e, de um modo ou de outro, divulgado hoje.

Algo a Dizer – Há algum aspecto, nome ou movimento que você queira destacar, na produção atual de literatura, filosofia ou mesmo na música brasileira?

Antônio Cícero – Para citar só uma coisa: as reflexões sobre a canção e sobre o cancionista, de Luis Tatit, são extremamente originais.

Algo a Dizer – Para encerrar: você ainda sente culpa por brincar com as palavras, fazendo poesia (risos)?

Antônio Cícero – Hoje as coisas se inverteram: lamento que os compromissos de trabalho “sério” não me permitam dedicar uma parte maior do meu escasso tempo à poesia, que, para mim, é o que há de mais importante.

Entrevista publicada originalmente para o extinto jornal Algo a Dizer, junho de 2008.

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