Cultura Livros Margarete Hülsendeger Margarete Hülsendeger Resenha

O ECO DOS CARNÍVOROS

O que você faz, faz a diferença e você tem que decidir que tipo de diferença você quer fazer.

Jane Goodall

Por Margarete Hülsendeger

Adriana Lisboa é uma escritora premiada, com uma carreira sólida e diversas obras traduzidas para mais de vinte países. Nascida no Rio de Janeiro, em 1970, ela iniciou sua trajetória literária com o romance Os fios da memória (1999), mas foi com Sinfonia em branco (2001) que conquistou o Prêmio José Saramago, destacando-se no cenário literário internacional. Desde então, Lisboa construiu uma obra diversificada, que inclui romances, contos, poesia e literatura infantojuvenil. Entre suas obras mais notáveis estão Rakushisha (2007), O coração às vezes para de bater (2009) e Azul-corvo (2010), este último finalista do prêmio PEN Literary Award e vencedor do Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA).

Capa

Em 2024, Adriana Lisboa publicou Os grandes carnívoros[1], uma narrativa que une delicadeza e força em temas como ativismo, violência e a complexa relação dos seres humanos com os animais e entre si. Na trama, acompanhamos Adelaide, uma ativista dos direitos animais que, após participar de uma ação extrema ― o incêndio de um laboratório de pesquisas nos Estados Unidos ―, passa três anos na prisão. De volta ao Brasil, ela busca reconstruir sua vida em uma pequena cidade na região serrana do Rio de Janeiro, longe dos holofotes e das consequências de suas escolhas. Como ela mesma se descreve: “é só uma mulher de quarenta e poucos anos que foi morar sozinha, por uns tempos, numa casa modesta no interior do seu país natal, só isso. Nada digno de nota”.

Como de costume em suas obras, Lisboa constrói personagens complexos, e Adelaide não foge à regra. Ela é uma protagonista cheia de nuances, dividida entre o peso de sua ação radical e o desejo de encontrar paz interior. Sua jornada é uma busca não só por redenção, mas também por compreensão: de si mesma, das motivações que a levaram ao ato extremo e das consequências de suas escolhas.

A metáfora dos “grandes carnívoros” ecoa ao longo do romance, referindo-se não apenas aos animais que Adelaide luta para proteger, mas também à natureza predatória que, em diferentes níveis, permeia as relações humanas. Lisboa explora com sutileza a ideia de como certas formas de violência são normalizadas, enquanto outras são condenadas pela sociedade. A partir desse conflito moral, a autora tece uma crítica silenciosa, mas incisiva, sobre as dinâmicas de poder que regem essas distinções.

A ambientação rural, nas montanhas do Rio de Janeiro contribui para o clima introspectivo do romance. A pequena cidade serrana, cercada pela natureza e isolada do caos urbano, serve de cenário ideal para que Adelaide reflita sobre suas escolhas e enfrente o que deixou para trás. Ao alugar uma casa de um marceneiro chamado Rai, um homem aparentemente gentil que vive com a família no local, Adelaide inicia uma nova fase, marcada pelas incertezas e pela tentativa de estabelecer vínculos enquanto lida com os traumas de seu passado. No entanto, como mais tarde ela vai descobrir, existem carnívoros disfarçados de gentileza, e fugir da violência entre humanos é mais difícil do que se defender de animais selvagens

A história de Adelaide e seus novos relacionamentos, especialmente com Rai e sua família, reflete sobre a fragilidade e a força das relações humanas. A tensão que permeia a trama, entre o desejo de pertencer e o medo de ser novamente ferida ou rejeitada, é tratada com a habitual sensibilidade da autora, que evita o melodrama e prefere uma abordagem mais contida e introspectiva. Em Os grandes carnívoros, Lisboa reafirma sua capacidade de criar narrativas que transitam entre o íntimo e o social.

Margarete Hülsendeger – Possui graduação em Licenciatura Plena em Física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1985), Mestrado em Educação em Ciências e Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002-2004), Mestrado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2014-2015) e Doutorado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2016-2020). Foi professora titular na disciplina de Física em escolas de ensino particular. É escritora, com textos publicados em revistas e sites literários, capítulos de livros, publicando, em 2011, pela EDIPUCRS, obra intitulada “E Todavia se Move” e, pela mesma editora, em 2014, a obra “Um diálogo improvável: homens e mulheres que fizeram história”.

A escrita de Lisboa, como sempre, é marcada por uma sensibilidade poética. Seus diálogos são econômicos, mas carregados de emoção, e suas descrições da paisagem fazem da natureza uma extensão dos sentimentos de Adelaide ― ao mesmo tempo vastos e solitários. Lisboa ainda aproveita o tema central do ativismo pelos direitos dos animais para levantar questões éticas sobre a relação entre humanos e outras espécies, sem cair em simplificações. Sua abordagem é profunda, focada na ambiguidade moral das escolhas de Adelaide e na forma como a sociedade, muitas vezes de maneira arbitrária, decide o que é aceitável ou não em termos de violência e protesto.

Os grandes carnívoros é mais uma obra madura e instigante de Adriana Lisboa. Ao combinar uma trama envolvente, personagens bem construídos e uma crítica sutil às convenções sociais, Lisboa reafirma sua posição como uma das mais relevantes escritoras brasileiras da atualidade. Este romance, como boa parte de sua obra, exige um olhar atento e reflexivo do leitor, recompensando-o com uma experiência literária rica, tanto em termos emocionais quanto éticos. Uma leitura essencial para aqueles que buscam narrativas que desafiam nossas concepções sobre moralidade, justiça e a relação entre seres humanos e a natureza.


[1] LISBOA, Adriana. Os grandes carnívoros. São Paulo: Alfaguara, 2024 (Edição kindle)

Deixe um comentário