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ENSAIOS DE UMA VIDA SINCERA

ENSAIOS DE UMA VIDA SINCERA

Por mais conscientes que estejamos da liberdade, da consciência e da alegria que perdemos ao envelhecer, vivemos uma vida humana plena ao não parar em nenhuma etapa, mas tornando-nos tudo o que há em nós para nos tornar.

Margarete Hülsendeger

Ursula K. Le Guin (1929-2018) é amplamente conhecida por sua habilidade em criar mundos imaginários ricos e complexos, que conquistaram gerações de leitores. Reconhecida principalmente por suas obras de ficção especulativa, incluindo ficção científica e fantasia, ela também explorou a ficção contemporânea e a poesia. Seus trabalhos frequentemente abordam temas como gênero, identidade, anarquismo, taoísmo, ecologismo e sociedades alternativas.

Entre seus romances mais conhecidos estão A Mão esquerda da escuridão (1969), que se passa em um planeta onde os habitantes são andróginos, questionando gênero e sexualidade, e Os despossuídos (1974), que compara duas sociedades contrastantes e no qual explora temas como o anarquismo e a utopia. Por esses dois livros, ela recebeu os prêmios Hugo e Nebula de Melhor Romance. No entanto, o reconhecimento que conquistou não se deve apenas à sua capacidade de abordar temas complexos e relevantes de maneira acessível e envolvente, mas também, e principalmente, pela qualidade de sua escrita.

Em 2019, portanto, um ano após a sua morte, foi publicado o livro Sem tempo a perder: reflexões sobre o que realmente importa[1]. Nele, Le Guin nos convida para uma jornada profundamente pessoal e reflexiva, na qual explora um novo território literário por meio de ensaios escritos durante os últimos anos de sua vida. Todos os textos, inicialmente compartilhados em seu blog pessoal, oferecem uma visão íntima e sincera de sua vida e pensamentos. A própria autora, em “Uma nota no início”, datada de outubro de 2010, explica que o blog foi inspirado pelo blog de José Saramago. Segundo Le Guin, antes disso ela nunca quis ter um blog, mas ao ver o que Saramago, com 85 anos, fez com a forma, foi uma verdadeira revelação.

Em Sem tempo a perder, Le Guin abandona a ficção e se volta para a realidade cotidiana, abordando temas universais como envelhecimento, família e amor. A escrita envolvente e evocativa que caracteriza suas obras de ficção também está presente aqui, tornando os textos cativantes e acessíveis. A obra é uma síntese magistral de sua habilidade narrativa e sua perspicácia filosófica, oferecendo aos leitores uma visão íntima de sua mente criativa e perspicaz.

O estilo de Le Guin é marcado por uma prosa lírica e precisa, capaz de transformar o cotidiano em algo extraordinário. Ela possui uma habilidade única de observar e descrever o mundo ao seu redor com uma clareza e profundidade que conquistam o leitor. Sua linguagem é ao mesmo tempo simples e poética, o que torna suas reflexões compreensíveis e atraentes. Essa qualidade se manifesta em ensaios que são verdadeiras meditações sobre a vida, o tempo e as relações humanas.

Le Guin não tem medo de confrontar as complexidades e desafios da velhice. Ela aborda o envelhecimento com uma honestidade desarmante, explorando as perdas e os ganhos que vêm com o passar dos anos. A autora reflete sobre o valor do tempo, a importância das memórias e a aceitação das mudanças inevitáveis. Logo, quando escreve sobre a velhice, ela o faz aceitando-a como uma situação existencial e não como um estado de espírito porque, de acordo com ela, “Dizer que minha velhice não existe é dizer que eu não existo. Apague minha idade e você apaga minha vida – a mim”.

Assim, como acontece em seus inúmeros romances, o estilo de escrita de Le Guin é marcado por uma prosa elegante e envolvente, que combina clareza com uma sensibilidade poética. Ela utiliza metáforas e imagens vívidas para explorar conceitos abstratos, tornando seus ensaios de fácil compreensão mesmo quando abordam temas profundos e complexos. O papel da arte e a presença das mulheres na literatura são assuntos que ela também aborda, sem se preocupar em ferir susceptibilidades, como quando diz que “enquanto os homens precisarem ser refletidos com o dobro de seu tamanho natural, uma escritora sabe que a competição franca com eles é perigosa”. Como resultados, seus ensaios não apenas iluminam aspectos de sua própria vida, mas também oferecem insights valiosos sobre a natureza da sociedade e o papel da arte na vida contemporânea. Ela demonstra que, mesmo na velhice, há espaço para o crescimento e a exploração criativa

A família e o amor são outros temas centrais no livro. Le Guin escreve com ternura e humor sobre seus relacionamentos, sejam com familiares, amigos ou animais de estimação. Ela celebra as pequenas alegrias da vida cotidiana e o conforto encontrado na companhia de entes queridos. A simplicidade dessas interações é descrita com uma intensidade que revela a beleza e a complexidade das relações humanas. A autora ressalta a importância de construir relacionamentos significativos com outras pessoas e de contribuir para o bem comum.

Margarete Hülsendeger – Possui graduação em Licenciatura Plena em Física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1985), Mestrado em Educação em Ciências e Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002-2004), Mestrado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2014-2015) e Doutorado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2016-2020). Foi professora titular na disciplina de Física em escolas de ensino particular. É escritora, com textos publicados em revistas e sites literários, capítulos de livros, publicando, em 2011, pela EDIPUCRS, obra intitulada “E Todavia se Move” e, pela mesma editora, em 2014, a obra “Um diálogo improvável: homens e mulheres que fizeram história”.

A obra também se destaca por seu tom poético e meditativo. Le Guin consegue transformar eventos cotidianos em reflexões filosóficas, oferecendo ao leitor uma nova perspectiva sobre a vida. Seus ensaios são como conversas íntimas, nas quais ela compartilha suas observações e questionamentos de maneira genuína e cativante. Ela questiona o que realmente importa em um mundo cheio de distrações e futilidades, defendendo a busca por uma vida autêntica e significativa. A clareza de sua escrita permite que o leitor se conecte facilmente com suas ideias e sentimentos, criando uma experiência de leitura profundamente envolvente.

Sem tempo a perder recebeu aclamação da crítica e do público, sendo elogiado por sua escrita intensa, humor inteligente e insights valiosos sobre a vida. O livro conquistou diversos prêmios, incluindo o Prêmio PEN/Diamonstein-Spielvogel, que reconhece o melhor livro de ensaios publicado nos Estados Unidos em inglês, e o Prêmio Hugo de melhor ensaio. Portanto, Sem tempo a perder não é apenas uma coleção de reflexões pessoais; é também um testemunho do compromisso de Le Guin com a escrita como uma forma de compreender e se conectar com o mundo. É um livro que fala à alma, independentemente da idade, da experiência ou das crenças do leitor. É uma celebração da humanidade e uma lembrança de que, mesmo nos momentos mais simples, há sempre algo valioso a ser descoberto.


[1] LE GUIN, Ursula K. Sem tempo a perder: reflexões sobre o que realmente importa. Tradução Juliana Fausto. São Paulo: Goya, 2023 (Edição Kindle)

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