Dimas Ramalho*
Mesmo consagrado na Constituição e reafirmado em legislações posteriores, o direito à moradia adequada está longe de ser uma realidade para todos. Ainda hoje, dezenas de milhões de brasileiros vivem em situação precária, habitando casebres frágeis, cômodos abarrotados, áreas irregulares, ou, pior, sem nem ao menos poderem contar com um teto.
Esse problema social dramático é expresso, em termos quantitativos, por meio do conceito de déficit habitacional, cujos dados mais recentes vieram a público em maio. Segundo a Fundação João Pinheiro, responsável pelo cálculo oficial do índice, em 2022, o déficit alcançou a indecente marca de 6.215.313 domicílios, ou 8,3% de todas as habitações ocupadas do país. O número corresponde a um crescimento de 4,2% com relação ao dado anterior, de 2019.
Em valores absolutos, São Paulo e Minas Gerais ocupam o topo da lista, com déficits de 1,2 milhão e 556 mil moradias, respectivamente. Na outra ponta aparecem os estados de Roraima, com 30,9 mil, e do Acre, com 28,7 mil. Já o déficit habitacional relativo, isto é, proporcional ao total de domicílios ocupados, se concentra sobretudo na região Norte, com Amapá (18%) e Roraima (17,2%) à frente. Os menores índices se encontram no Rio Grande do Sul (5,9%) e no Espírito Santo (6,3%).
Mas o que esses indicadores todos querem dizer exatamente? De modo geral, o déficit expressa a noção mais imediata e intuitiva do número de moradias necessárias para solucionar as demandas habitacionais básicas da população. Ele tem o papel de dimensionar a quantidade de domicílios incapazes de atender o direito de acesso a um lar minimamente adequado e, dessa forma, acaba por nos fornecer a medida do descumprimento desse direito fundamental.
O déficit habitacional se desdobra em três variáveis: habitações precárias, composta de domicílios rústicos ou improvisados; coabitação, constituída por moradias do tipo cômodo e por aquelas com mais de uma família em situação de adensamento e, finalmente, ônus excessivo com aluguel urbano, caso dos domicílios com renda de até três salários mínimos que despendem mais de 30% do que ganham com a locação.
Regionalmente, as habitações precárias são mais comuns no Norte e no Nordeste, com o Maranhão (211 mil) e a Bahia (199 mil) apresentando os maiores valores absolutos. No Maranhão, que também lidera esse indicador em termos proporcionais, ele representa 66,2% do déficit. Em seguida vem o Amapá, com 61,8%.
A coabitação, por sua vez, é encabeçada pelos estados de São Paulo (262 mil) e do Pará (145 mil), com maior prevalência na região Norte. No caso do ônus excessivo com aluguel, a maior concentração, em valores absolutos, está em São Paulo (927 mil) e no Rio de Janeiro (319 mil). Já em termos de participação relativa ao total de domicílios em déficit habitacional, o predomínio também se dá nas áreas mais ricas do país, com o Distrito Federal à frente.
Além do déficit, a Fundação João Pinheiro calcula também o índice de inadequação domiciliar, formado por imóveis cujas deficiências prejudicam a qualidade de vida dos seus moradores. Trata-se de habitações que necessitam de algum tipo de melhoria na infraestrutura urbana, que estão situadas em localidades desprovidas de serviços públicos essenciais, como esgotamento sanitário, energia elétrica e coleta de lixo, ou que se encontram em situação fundiária irregular.
Assim, diferentemente do déficit, que remete às necessidades de reposição ou mesmo de construção de novas moradias, a inadequação pode ser reduzida, ou até eliminada, se os atributos que estão faltando ou que são ofertados de forma precária forem fornecidos ou melhorados.
A inadequação, entretanto, se parece um problema de resolução um pouco mais simples do que o déficit, compreende, por outro lado, um número muito maior de imóveis. Encontram-se nessa categoria 26,5 milhões de moradias, onde residem principalmente trabalhadores de baixa renda, mulheres e negros. Isso representa nada menos que 4 em cada 10 domicílios do país!
Ao mesmo tempo em que tantos e tantos imóveis se mostram impróprios para serem habitados, existe, paradoxalmente, uma quantidade imensa de moradias vagas. Segundo o último censo, o Brasil tem 11,4 milhões de casas e apartamentos vazios. Só na cidade de São Paulo, 590 mil domicílios estão nessa situação.
Esse estado de coisas revela não apenas a má distribuição das moradias nacionais como também evidencia as dificuldades da população mais pobre para acessar o estoque habitacional existente. Desde 2001, contudo, o Estatuto da Cidade dá aos municípios instrumentos para enfrentar essa situação e promover a chamada função social da propriedade, caso do IPTU progressivo e até da desapropriação do imóvel.
São Paulo implementou tais medidas em 2010, mas outras capitais, como Salvador e Rio de Janeiro, ainda não contam com elas. A aprovação –e, sobretudo, a utilização– dessa diretriz em todas as grandes cidades brasileiras somada a um programa de construção de casas robusto e socialmente inclusivo têm potencial para fazer frente a esse problema.
Quando fui secretário de Habitação do Estado de São Paulo, durante o governo Mário Covas, pude testemunhar, nas inaugurações e entregas à população, a importância que um lar pode ter para quem sempre morou de maneira improvisada. Os olhos marejados ao receber as chaves me pareciam a prova de que, a partir daquele momento, uma nova vida se iniciava.
Porque uma casa é mais do que uma casa. Não há como ter direitos sem possuir uma moradia digna. Ela, afinal, é a porta de entrada da cidadania, a condição básica para que se possa usufruir de direitos como saúde, educação e segurança.
*Dimas Ramalho é conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo.