Educação Educação Ensino Ensino

BILINGUISMO PEDAGÓGICO NO ÂMBITO DA ALFABETIZAÇÃO INTERCULTURAL EM CONTEXTOS INDÍGENAS: NOTAS INTRODUTÓRIAS

Leia o artigo em PDF

BILINGUISMO PEDAGÓGICO NO ÂMBITO DA ALFABETIZAÇÃO INTERCULTURAL EM CONTEXTOS INDÍGENAS: NOTAS INTRODUTÓRIAS

*Josélia Gomes Neves

Resumo – O processo de aquisição inicial da escrita em determinados contextos indígenas brasileiros envolve as aprendizagens simultâneas ou sequenciais da língua materna (primeira língua) e a língua portuguesa (segunda língua). As observações a respeito desta questão, mobilizaram a produção deste escrito, cujo objetivo é apresentar uma reflexão teórica de caráter introdutório sobre o bilinguismo pedagógico, um desdobramento importante da alfabetização intercultural. Este estudo de enfoque qualitativo, apresentou um conjunto de elementos teóricos necessários à compreensão do trabalho bilingue que acontece nas salas de aulas de primeiro ao terceiro ano do Ensino Fundamental em escolas indígenas.

Palavras-Chave: Alfabetização Intercultural. Bilinguismo pedagógico. Educação Escolar Indígena.

Resumen – El proceso de adquisición inicial de la escritura en determinados contextos indígenas brasileños implica los aprendizajes simultáneos o secuenciales de la lengua materna (primera lengua) y la (Segunda lengua). Las observaciones sobre esta cuestión, movilizaron la producción de este escrito, cuyo objetivo es presentar una reflexión teórica de carácter introductorio sobre el bilingüismo pedagógico, Un importante desarrollo de la alfabetización intercultural. Este estudio de enfoque cualitativo, El artículo presenta un conjunto de elementos teóricos necesarios para la comprensión del trabajo bilingüe que se realiza en las aulas de primer a tercer año de enseñanza primaria en escuelas indígenas.

Palabras clave: Alfabetización Intercultural. Bilingüismo pedagógico. Educación Escolar Indígena.

Introdução

O presente estudo constitui uma elaboração acadêmica resultante de atividades investigativas desenvolvidas no Grupo de Pesquisa em Educação na Amazônia (GPEA) da Universidade Federal de Rondônia, no âmbito da Linha de Pesquisa Alfabetização & Cultura escrita. Foi mobilizado a partir de inquietações oriundas da observação das práticas sociais e pedagógicas que ocorreram/ocorrem nas comunidades e escolas indígenas, sobretudo a partir de análises de cadernos escolares de crianças de primeiro ao terceiro ano do Ensino Fundamental. Diante disso, o objetivo deste trabalho consiste em apresentar uma reflexão teórica inicial sobre o bilinguismo pedagógico, um desdobramento relevante da alfabetização intercultural.

É preciso advertir que não se trata de Educação Bilingue na perspectiva de religiosos católicos ou protestante, considerando as finalidades coloniais de catequização ou evangelização: “O bilingüismo dos missionários está voltado para o domínio da língua indígena como forma de se territorializarem no universo do outro e, ‘de dentro’, levarem aos indígenas o acesso a Bíblia, traduzida em língua nativa”. (TOMMASINO, 1997, p. 119). E nem tampouco, estamos nos referindo a uma forma de bilinguismo provisório implementado pelo governo brasileiro com propósitos civilizatórios por meio da ação escolar:

[…] o ensino bilíngue foi adotado como estratégico para o efetivo aprendizado do português e dos valores da sociedade dominante: valorizava-se a língua indígena porque ela era a chave para o aprendizado da língua nacional. Esse método, usado pelo Estado em conjunto com missões religiosas, pode ser descrito como o bilingüismo de transição, porque ele só serve para que as crianças saiam do monolinguismo da sua língua de origem para o monolinguismo em português. Ao abandonarem suas línguas, pressupunha-se que também abandonassem seus modos de vida e suas identidades diferenciadas. A escola em áreas indígenas servia, assim, para a promoção da homogeneização cultural. (GRUPIONI, 2006, p. 44).

A Pedagogia bilíngue da qual estamos nos referindo busca inspiração e ancoragem teórica nas contribuições de Emília Ferreiro (1989) no que diz respeito aos estudos sobre o processo de alfabetização. Leva em conta, dentre outros aspectos, as reflexões oriundas de sua experiência junto aos povos indígenas no México. Foi neste contexto que observou que o material produzido nem sempre apresentou uma linguagem acessível à docência, tendo em vista as finalidades de sistematização de um lado e de aprendizagem do outro: “As gramáticas das línguas indígenas que existem são todas feitas por linguistas para linguistas, não há um texto de gramática da língua indígena acessível a um professor indígena comum e corrente. (FERREIRO, 2001, p. 160).

As premissas da educação crítica de Paulo Freire (1987), que enxergava o ato de ler o mundo, como uma possibilidade inaugural que antecipava o gesto de ler a palavra (1989), constituem elementos importantes nesta elaboração. Uma ilustração que contribui para a importância da relação contexto e escrita nas sociedades indígenas, que opera como um mecanismo de atribuição de sentidos à alfabetização, sobretudo pelo fato de serem consideradas ágrafas.

Neste texto, discutiremos os processos que envolvem a aquisição da língua escrita indígena e portuguesa, a partir de aspectos conceituais do termo bilinguismo e bilinguismo pedagógico, este último se encontra em fase de elaboração. Além disso, levaremos em conta a fundamentação legal expressa na Constituição Federal (BRASIL, 1988), na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996) e nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena (BRASIL, 2012), bem como as orientações do Referencial Curricular Nacional para as Escolas indígenas (1998).

1.Bilinguismo pedagógico – notas teóricas sobre as línguas – indígena e portuguesa no processo de aprendizagem inicial da língua escrita

Da condição de diferentes línguas, diferentes culturas, diferentes graus de inserção na sociedade nacional e regional, diferentes níveis de bilingüismo etc., derivam práticas curriculares distintas na seleção dos conteúdos, […] na fluência, na correção dos textos etc. Incorporar essa diversidade dentro de urna unidade que se chama escola indígena é o grande desafio. (TEIXEIRA, 1997, p. 141).

A epígrafe nos mobiliza a pensar como a multiplicidade de povos, culturas e línguas engendram modos também diversos de produção dos processos comunicativos com a adoção de duas ou mais línguas. E no início da escolarização fundamental, esta movimentação repercute na sala de aula, momento em que as aproximações entre as vivências das práticas sociais das crianças indígenas buscam dialogias com os saberes de escola.

Traduzimos esta temporalidade como Alfabetização Intercultural, uma concepção educacional que se interessa por interpretar os gestos formativos presentes nas aprendizagens iniciais da língua escrita em contextos indígenas. Os estudos a esse respeito têm sido produzidos há quase duas décadas (NEVES,2005;2009), por pesquisadores indígenas e não indígenas, com atualizações contínuas (SURUI, 2015; NUNES, 2018; SANTOS, 2020; ZORÓ, 2023), o que vem configurando esta temática como um novo campo do conhecimento inspirado nas realidades das populações originárias da Amazônia. É no âmbito desta discussão, que situamos o bilinguismo pedagógico, expressão que discutiremos mais adiante.

Em relação aos aspectos conceituais, as leituras apontam que de forma geral “O bilingüismo ocorre em um indivíduo, cujas condições culturais e sócio-econômicas se inter-relacionam perfeitamente em duas sociedades e culturas, onde ele fala as duas línguas e a elas atribui igual valor”. (FILHO, 2016, p. 179). Mas, no que se refere às populações originárias, tendo em vista suas especificidades comunitárias, “O conceito de bilinguismo, na realidade indígena brasileira, deve ser visto sob a ótica da interculturalidade, uma vez que está relacionado não somente ao processo linguístico, mas também à aceitação e à valorização da cultura do outro”. (LIMA; COSTA; SILVA, 2019,  p. 184).

Nos aproximamos deste entendimento, porque parte de uma perspectiva ampla que leva em conta a utilização da língua como um elemento cultural fundamental para expressar, nomear as múltiplas experiências individuais/coletivas desenvolvidas no âmbito das sociedades. Em âmbito indígena, a necessidade de falar em mais de uma língua, emergiu como uma demanda após o período do contato: “[…] tradições culturais, […] educação das gerações mais novas […] as representações simbólicas, a organização política, os projetos de futuro […] das sociedades indígenas são, na maioria dos casos, manifestados através do uso de mais de uma língua”. (BRASIL, 1998, p. 25).

Estas e outras leituras têm sido importantes para a constituição conceitual do termo bilinguismo pedagógico observado no âmbito da alfabetização intercultural. É compreendido até o momento como um conjunto de reflexões/ações sobre as aprendizagens iniciais da leitura e da escrita, relacionadas aos usos concomitantes ou não da língua indígena e da língua portuguesa no âmbito social e escolar, possibilitado pelo diálogo de saberes da Pedagogia com a Linguistica e a Antropologia.

A mobilização para este estudo, reitera considerações anteriores relacionada a ausência de discussão, pois, “[…] ainda não existe uma política mais consistente, específica e institucional acerca das práticas bilingues ou plurilíngues que orientem como esta prática deve acontecer nas escolas indígenas” (NEVES, 2009, p. 212), principalmente no processo inicial de aquisição das línguas escritas. Essa constatação foi importante para o desenvolvimento deste trabalho.

Em outros escritos, já havíamos manifestado esta inquietação, ao perguntar: “Que saberes são necessários para desenvolver o bilinguismo na sala de aula?” (NEVES, 2023, p. 1). A nosso ver, geralmente esta pergunta tem sido parcialmente respondida com elementos da própria prática pedagógica das escolas indígenas tendo em vista que na realidade de Rondônia e noroeste do Mato Grosso, primeiro o (a) professor (a) foi para a sala de aula e só depois é que ocorreu o processo de formação, o que possibilitou um estudo inicial a esse respeito.

O contexto social da região evidencia um repertório verbal[1] bastante diverso. De forma geral, a língua portuguesa é falada em todas as comunidades indígenas contactadas de Rondônia. Em caso de territórios com várias etnias, caso da Terra Indígena Rio Branco, localizada no município de Alta Floresta constitui a língua de uso comum dos povos. Nas áreas em que reside um único povo, como na Terra Indígena Karitiana, em Porto Velho, por exemplo, é utilizada como 2ª língua para a maioria dos falantes. Mas, há lugares em que é a única língua adotada no grupo, caso dos Puruborá que já não falam a língua indígena, um panorama que exibe uma ampla diversidade de situações:

Há grande quantidade de sociedades indígenas cujas primeiras línguas são aquelas de seus antepassados. Outras adotaram variantes regionais do português diante do desaparecimento de suas línguas originárias nos últimos cinco séculos. Em geral, há uma tendência ao bilingüismo como parte dos processos de contato com a sociedade nacional. Entretanto, existem ainda casos de indivíduos monolíngues em língua indígena, geralmente os velhos e as crianças e não são raros os indivíduos monolíngues em língua portuguesa, sobretudo entre as novas gerações. Também se encontram casos de multilinguismos em algumas terras indígenas do país, onde se entendem e/ou falam fluentemente ou parcialmente duas ou mais línguas indígenas, junto a uma ou duas línguas dominantes como espanhol e português, sobretudo em regiões de fronteira. (MATOS; MONTE, 2006, p. 71).

Para D’Angelis, (2007), as relações pós-contato provocaram a obrigatoriedade de falar, compreender, ler e escrever o português. Diz respeito a uma configuração que explicita as assimetrias presentes nesta relação. Uma situação bem diferente do comportamento urbano em que as pessoas, por determinadas razões, buscam o estudo de uma 2ª língua, mas de forma opcional, o que nos leva a considerar que no Brasil: “[…] o Bilinguismo para os indígenas assume um caráter compulsório. A esses não é dada a possibilidade de escolha. O domínio da língua portuguesa é uma obrigação. […] existe uma “necessidade imperiosa” de falar português […]” (ALMEIDA, 2011, p. 3992).

Em Rondônia, embora seja possível afirmar que a maioria das sociedades indígenas sejam falantes de suas línguas maternas, por outro lado, as observações empíricas evidenciam que o processo de globalização, tem chegado cada vez mais nas aldeias indígenas por meio do aumento de deslocamentos para as cidades ou da internet nas aldeias, situação que foi ampliada no período de 2020-2022 devido ao isolamento resultante da pandemia de covid-19. Essa intensificação da presença da língua portuguesa, veiculada de forma majoritária nos produtos consumidos pela população, com destaque para a geração mais jovem e sobretudo, para as crianças que já nasceram neste contexto tecnológico, tem possivelmente produzido alterações significativas na comunicação oral e escrita, em língua indígena, mas sobretudo em português na vida dos povos. Estes e outros elementos desta natureza tem impulsionado as políticas de formação docente indígena da Universidade Federal de Rondônia.

Estamos nos referindo ao estudo da condição bilingue presente no Projeto Pedagógico do Curso da Licenciatura em Educação Básica Intercultural, aprovado em 2008, na ementa da disciplina, Língua e literatura nos anos iniciais I – componente que discute a aquisição inicial da escrita: “O ser humano e a linguagem. Processos de Alfabetização. Bilinguismo. Psicogênese da língua escrita. […]. Leitura e escrita: práticas culturais e práticas escolares. Leitura significativa. Cultura escrita em contextos ágrafos” (RONDÔNIA, 2008, p. 60, grifo nosso), o que engloba situações que evidenciam territorialidades linguísticas na atualidade: “A escrita mediatizada pelos recursos  tecnológicos […] serve para a comunicação em língua indígena com os parentes de aldeias distantes ou em língua portuguesa com pessoas de outras etnias e/ ou não-indígenas”. (NEVES, 2023, p. 1).

Assim, se por um lado, inegavelmente foi ampliado os diálogos em diferentes línguas indígenas por meio dos aplicativos digitais, de outro a língua portuguesa segue, ao lado de outros idiomas, como o inglês, por exemplo, cada vez mais majoritária, explicitando casos de diglossia, ou seja, de evidências de uma série de diferenças na utilização das línguas em um determinado contexto, pelo fato de  “[…] carregarem em si status sociais, políticos, de pertencimento ou não a um certo grupo. Línguas com mais prestígio são usadas em circunstâncias mais formais, enquanto outras, de menor prestígio social, ficam restritas a ambientes informais”. (DIAS DE LIMA, 2019, p. 6). A título de ilustração reiteramos a utilização cada vez mais constante do celular ou tablet por crianças e jovens indígenas, que consomem freneticamente vídeos, músicas e páginas informativas quase que exclusivamente em língua portuguesa, sem muita discussão na comunidade. Este aspecto chama a nossa atenção considerando as feições assimétricas que se presentificam no referido processo: “É o bilingüismo em que uma das duas línguas conta com uma larga tradição escrita, enquanto a outra foi tradicionalmente ágrafa”. (MELIÀ, 1997, p. 89).  

Neste sentido, diferentes de outros tempos em que a escrita em contextos indígenas era um objeto confinado à escola e a igreja, na contemporaneidade, a mediação tecnológica propiciada pelos aparelhos tecnológicos redimensiona a sua utilização para diferentes tempos e espaços: “[…] as crianças indígenas se deparam com escritos em línguas indígenas e em língua portuguesa com muita frequência. Em suas aldeias, para além do espaço escolar ou religioso, observam e participam de diversos eventos comunicativos expressos”. (NEVES; GAVIÃO; SANTOS, 2021, p. 93). 

O conhecimento destes elementos das práticas sociais, são importantes para a reflexão pedagógica, tendo em vista que a conexão existente entre ambos, favorece a produção de sentidos e com isso as possibilidades de aprendizagem no processo da alfabetização. Contexto que nos remete ao pensamento freireano de que há uma precedência nesta relação: “A leitura do mundo precede a leitura da palavra […]. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente”. (FREIRE, 1989, p. 9). Uma reflexão ampla e política do que significa a ação leitora.

Outro fator importante na discussão do bilinguismo pedagógico, são os documentos da legislação brasileira. A esse respeito, a Constituição Federal de 1988, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei nº 9394/1996, sustentam que a Educação Escolar Indígena pelo seu caráter intercultural, se caracteriza pela atuação bilingue.

O artigo 231, da Constituição Federal, estabeleceu que: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam […]” (BRASIL, 1988, p. 1, grifo nosso). O direito de continuar se expressando na comunidade ou na escola por meio da língua indígena, também está presente na LDB: “[…] O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem” (BRASIL, 1996, p. 1).

Em outras normativas, caso das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena, de acordo com o Parecer nº 13, “Na organização curricular das escolas indígenas, devem ser observados os critérios: a) de reconhecimento das especificidades […] quanto aos seus aspectos comunitários, bilíngues e multilíngues, de interculturalidade e diferenciação” (BRASIL, 2012, p. 24, grifo nosso).

 Incluímos também nesta reflexão, o Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (RCNEI), documento que orienta a pedagogia bilíngue na escola: “A inclusão de uma língua indígena no currículo escolar tem a função de atribuir-lhe o status de língua plena e de colocá-la, pelo menos no cenário escolar, em pé de igualdade com a língua portuguesa, um direito previsto pela Constituição Brasileira”. (BRASIL, 1998, p. 118). Um gesto político-pedagógico de valorização e visibilidade dos idiomas nativos no espaço escolar.

Assim de acordo ainda com este documento oficial, o direito de falar, ler e escrever na língua indígena se estende também à escola. É utilizado como recurso favorecedor das aprendizagens na medida em que a língua indígena, como primeira manifestação da linguagem oral, situação que ocorre em determinados contextos, caso da comunidade Gavião Ikolen, do município de Ji-Paraná, em Rondônia, por exemplo, possibilita a compreensão das crianças sobre os conteúdos em discussão e a progressiva ampliação dos saberes: “[…] a língua indígena deverá ser a língua de instrução oral do currículo. […] para introduzir conceitos, dar esclarecimentos e explicações. (BRASIL, 1999, p. 4).

Além de se presentificar na sala de aula, como língua de instrução oral, a língua indígena também pode ocupar o importante espaço de língua de instrução escrita, enquanto recurso relevante de expressão da interculturalidade. Significa dizer que o exercício da escrita pode ampliar os saberes nos territórios impressos ou digitais, inclusive com o delineamento classificatório das funções que a escrita desempenha nas sociedades, principalmente: “[…] naquelas situações que digam respeito aos conhecimentos étnicos e científicos tradicionais ou à síntese desses com os novos conhecimentos escolares […] poderá contribuir para a criação […] de funções sociais da escrita nessas línguas” (BRASIL,1998, p. 119-120).

A ampliação do uso da escrita em língua indígena e da língua portuguesa, ocorrerá certamente a partir das demandas colocadas pelo próprio contexto social. Ao que tudo indica, esse processo vem acontecendo por meio do suporte eletrônico, bem mais intensificado que o suporte impresso, caso das mensagens telefônicas, antes via torpedo e na atualidade mediante utilização do aplicativo WhatsApp, por exemplo, na comunidade e na escola.

Considerações Finais

A intenção desse escrito foi apresentar uma reflexão de caráter introdutório sobre o que temos chamado de bilinguismo pedagógico no âmbito da alfabetização intercultural. Ele representa uma resposta inicial às inquietações específicas que têm surgido sobre a pedagogia bilingue que se materializa nas aulas de primeiro ao terceiro ano do ensino fundamental nas escolas indígenas de Rondônia e noroeste do Mato Grosso. Inferimos que a complexidade da condição bilíngue existente nestas localidades, de caráter diverso e assimétrico, sobretudo pela visibilidade, uso e poderio da língua portuguesa, repercute no chão da sala de aula.

 Em nossa compreensão, é preciso aprofundar estudos sobre as relações entre a língua indígena e a língua portuguesa durante o processo de aquisição da língua escrita com vistas à proposição de dialogias junto ao coletivo docente. Um primeiro passo nesta direção, é ampliar as conexões entre os saberes pedagógicos e os conhecimentos linguísticos e antropológicos.

O bilinguismo pedagógico que estamos construindo busca elementos argumentativos nos referenciais teóricos da psicogênese de Emília Ferreiro e na educação crítica de Paulo Freire, bem como no reexame da legislação e dos documentos normativos. Significa dizer que esta pedagogia bilíngue não se filia a perspectiva da educação bilíngue de orientação missionária ou civilizatória, em que o uso das línguas indígenas assumia um caráter temporário dados as finalidades estabelecidas.

 Os próximos passos deste estudo envolvem a sistematização a respeito do estado da arte sobre o bilinguismo no contexto da alfabetização em territórios indígenas, bem como na análise das práticas pedagógicas, atividade que será possibilitada por meio da observação do uso das línguas no espaço comunitário e no ambiente escolar.

Referências

ALMEIDA, S. A. de. Bilinguismo e Educação Bilíngue Intercultural: os Apinayé e o uso das línguas apinayé e portuguesa nos seus domínios sociais. Anais do VII Congresso Internacional da Abralin, Curitiba, 2011.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2020].

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei nº 9394, de 20 de dezembro de 1996. Brasília, DF: Presidência da República, [2009].

BRASIL. Ministério da Educação. Referencial Curricular Nacional para as Escolas indígenas. Brasília: MEC, 1998.

BRASIL. CNE/CEB Nº: 13/2012. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena. Brasília: MEC, 2012.

D’ANGELIS, Wilmar da Rocha. “Como nasce e por onde se desenvolve uma tradição escrita em sociedades de tradição oral?” Editora Curt Nimuendaju. Campinas. SP. 2007.

DIAS DE LIMA, Júlia Mariáh. Diglossia na Costa do Marfim: relação entre o francês e as línguas nacionais. 28f. Monografia (Licenciatura em Letras).Rio de Janeiro, 2019.

FERREIRO, Emilia. Reflexões sobre a Alfabetização. 14. ed. São Paulo: Cortez/Editores Associados, 1989.

FERREIRO, Emilia. Cultura Escrita e Educação. Porto Alegre: Artmed, 2001.

FILHO, A. J. Bilingüismo e educação bilíngüe Kaiowá/Guarani, l1 – português, l2 na reserva indígena de Caarapó/MS. Multitemas[S. l.], n. 12, 2016.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 49. ed. São Paulo: Cortez, 1989.

GRUPIONI, Luís Donisete Benzi. Contextualizando o campo da formação de professores indígenas no Brasil. In: Formação de professores indígenas: repensando trajetórias. GRUPIONI, Luís Donisete Benzi. (Org.). Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2006.

LIMA, Karine Nafaeli Sousa; COSTA, Priscila Venâncio; SILVA, Rosélia Sousa. A educação intercultural bilíngue e o paradigma escolar: perspectivas e desafios das comunidades indígenas brasileiras. Revista Philologus, Ano 25, n. 75. Rio de Janeiro: CiFEFiL, set./dez.2019.

MATOS, Kleber Gesteira; MONTE, Nietta Lindenberg. O estado da arte da formação de professores indígenas no Brasil. In: Formação de professores indígenas: repensando trajetórias. GRUPIONI, Luís Donisete Benzi. (Org.). Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2006. p. 69-111.

MELIÀ, Bartomeu. Bilingüismo e Escrita. In: D’ANGELIS, Wilmar; VEIGA, Juracilda. (Orgs).  Leitura e escrita em escolas indígenas: encontro de educação indígena no 10º COLE/1995. Campinas, SP: Mercado de Letras, 1997, p. 89-104.

NEVES, Josélia Gomes. A Psicogênese na Aldeia: refletindo o processo de alfabetização com professores e professoras indígenas. Revista P@rtes, São Paulo, out., 2005.

NEVES, J. G. Cultura escrita em contextos indígenas. 369f. Tese (Doutorado em Educação Escolar). Universidade Estadual Paulista. Araraquara-SP, 2009.

NEVES, Josélia; GAVIÃO, Alberto Júnior Ihv Kuhj; SANTOS, Vanubia Sampaio dos. Alfabetização Intercultural na escola Gavião Ikolen: quando os cadernos falam… Revista Brasileira de Alfabetização[S. l.], n. 15, p. 91–107, 2021. 

NEVES, Josélia Gomes. Alfabetização Intercultural Indígena na pauta dos Direitos Humanos – prerrogativa das populações originárias às culturas do escrito. 2023. Portal do Sistema Estadual de Redes em Direitos Humanos-MG. Disponível em:

https://serdh.mg.gov.br/repositorios/artigos/alfabetizacao-intercultural-indigena-na-pauta-dos-direitos-humanos-prerrogativa-das-populacoes-origi  Acesso em: 20 mai. 2024.

NUNES, Franciele de Oliveira. Alfabetização Intercultural: O ler e o escrever na perspectiva docente indígena Amondawa. Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). Campus de Ji-Paraná. Universidade Federal de Rondônia. Curso de Pedagogia. Departamento de Ciências Humanas e Sociais, 2018.

RONDÔNIA. Projeto Pedagógico do Curso: Licenciatura em Educação Básica Intercultural. Universidade Federal de Rondônia. Ji-Paraná-RO, 2008. Disponível em:

https://deinter.unir.br/uploads/87443803/arquivos/PPC_intercultural_2008_446779189.pdf Acesso em: 20 mai 2024.

SANTOS, Vanúbia Sampaio dos. Alfabetização Intercultural na escola indígena Zoró Pangyjẽj. 344f. Tese (Doutorado em Educação). Universidade Estadual de Maringá. Maring-PR, 2020.

SURUÍ, Naraykopega. Alfabetização Intercultural Paiter Suruí: historiografando trajetórias do tempo ágrafo à cultura escrita. 45f. Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). Universidade Federal de Rondônia, Campus de Ji-Paraná. Departamento de Educação Intercultural, 2015.

TEIXEIRA, Raquel. Limites e possibilidades de autonomia de escolas indígenas. In: D’ANGELIS, Wilmar; VEIGA, Juracilda. (Orgs).  Leitura e escrita em escolas indígenas: encontro de educação indígena no 10º COLE/1995. Campinas, SP: Mercado de Letras, 1997, 139-165.

TOMMASINO, Kimiye. Diretrizes para a política de educação escolar indígena no Paraná: algumas considerações preliminares. In: D’ANGELIS, Wilmar; VEIGA, Juracilda. (Orgs).  Leitura e escrita em escolas indígenas: encontro de educação indígena no 10º COLE/1995. Campinas, SP: Mercado de Letras, 1997, p. 113-138.

ZORÓ, Marcelo Barpeh Pohj. O que as crianças Gavião Ikolen sabem sobre a escrita? A sondagem de alfabetização em contexto indígena. 38f. Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). Universidade Federal de Rondônia, Campus de Ji-Paraná. Departamento de Educação Intercultural, 2023.


Josélia

* Professora da Universidade Federal de Rondônia – Campus de Ji-Paraná – Atua no curso Licenciatura em Educação Básica Intercultural e no Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática (PPGEM) joseliagomesneves@gmail.com

[1] “Repertório verbal” refere-se ao número de línguas usadas por um indivíduo: os sujeitos monolíngues têm apenas uma língua no seu repertório verbal, os bilíngues têm duas, os trilíngues têm três etc. receptivos (a pessoa entende duas ou mais línguas, mas não fala todas elas). (BRASIL, 1998, p. 116).

Deixe um comentário