ENTRE AFETOS E DISTOPIAS
O tempo é um rio que nos leva para o futuro, mas a memória é a margem onde podemos nos sentar e observar o que passou.
Maya Angelou
A obra Uma Chance de Continuarmos Assim[1], da gaúcha Taísmin Ohnmcht, mergulha o leitor em uma narrativa complexa e provocativa, onde os limites do tempo e da realidade são desafiados. Ohnmcht, uma autora emergente no cenário literário contemporâneo, tem se revelado uma voz original e perspicaz, capaz de explorar temas profundos e universais com sensibilidade e imaginação.
Psicóloga clínica e psicanalista, Taísmin Ohnmcht iniciou sua carreira literária publicando contos em antologias e revistas especializadas. Seus personagens são frequentemente mulheres negras fortes e resilientes que lutam contra a opressão e constroem novas possibilidades de vida. A autora explora as interseccionalidades de raça, gênero e classe, abordando temas como racismo, sexismo, desigualdade social e violência. Seu primeiro romance, Vozes de retratos íntimos (2021), finalista do Prêmio Jabuti, recebeu elogios da crítica e conquistou um lugar de destaque no cenário literário nacional.
Uma Chance de Continuarmos Assim, seu segundo romance, é um exemplo marcante da ficção especulativa, gênero literário que abrange uma variedade de obras que exploram mundos imaginários, futuros alternativos e tecnologias avançadas, muitas vezes incorporando elementos de ficção científica, fantasia e horror. No caso de Ohnmcht, observamos que ela utiliza esse gênero como uma ferramenta para explorar questões sociais, políticas e existenciais por meio de mundos imaginativos e personagens complexos. Além disso, percebe-se uma clara influência do movimento afrofuturista, um subgênero da ficção especulativa, que usa o conceito da tecnologia para projetar um futuro do ponto de vista da comunidade negra, constituindo-se um guia para que a sociedade conquiste uma visão de empoderamento da população negra.
Influenciada por autores como Octavia Butler, Ohnmcht vale-se da ficção especulativa como uma lente para examinar e questionar as estruturas sociais e culturais do presente e do futuro. Assim como Butler, Ohnmcht demonstra uma disposição para experimentar e inovar, criando uma narrativa que desafia as expectativas e convida o leitor a refletir sobre questões profundas e urgentes.
Em Uma Chance de Continuarmos Assim, acompanhamos a jornada de Paula e Marcela, duas jovens negras unidas por uma amizade profunda e pelo desejo de transformar suas realidades. Munidas de um dispositivo extraordinário que permite viajar no tempo, elas se lançam em uma missão instigante: revisitar o passado, ressignificar suas histórias e construir um futuro promissor para si mesmas e para a sociedade. Ao longo da narrativa, Paula e Marcela passam por uma transformação profunda, aprendendo a enfrentar seus desafios pessoais, fortalecendo-se internamente e assumindo o papel de agentes de mudança em sua comunidade.
Um dos aspectos mais marcantes do livro é a maneira como a autora explora a relação entre tempo, memória e afeto. As protagonistas se veem constantemente confrontando suas próprias lembranças e revivendo traumas do passado, enquanto buscam construir um futuro diferente. As viagens no tempo permitem que elas revivam momentos dolorosos, reinterpretem eventos marcantes e busquem reconciliação consigo mesmas e com seus familiares. Por meio das experiências compartilhadas de Paula e Marcela, somos lançados em um universo de realidades alternativas, distopias e utopias, no qual as personagens navegam por diferentes linhas do tempo e onde cada uma representa uma possibilidade distinta para o futuro. Por meio dessa multiplicidade de perspectivas, a autora nos convida a refletir sobre o poder das nossas escolhas e o impacto que elas podem ter no mundo ao nosso redor.
A narrativa também se destaca pela criatividade e originalidade, entrelaçando elementos de ficção científica com reflexões profundas sobre a condição social das mulheres negras no Brasil. A autora explora com maestria as interseccionalidades de raça, gênero e classe, construindo assim um retrato potente das opressões e desigualdades que marcam a vida das protagonistas. Pode-se dizer que um dos pontos de conexão entre Ohnmacht e Butler reside justamente na exploração dessas interseccionalidades. Tanto Butler quanto Ohnmacht criam personagens negras e complexas que enfrentam os desafios do racismo, sexismo e outras formas de opressão em suas sociedades. Como resultado, as autoras denunciam as desigualdades estruturais e convidam o leitor a refletir sobre os mecanismos que perpetuam a marginalização de grupos minoritários.
Uma Chance de Continuarmos Assim não apenas reflete e dialoga com o contexto histórico e social em que foi escrita, mas também se destaca dentro do panorama mais amplo da literatura contemporânea. A obra demonstra uma tendência crescente de escritores explorarem temas existenciais e filosóficos por meio da ficção especulativa, buscando novas formas de expressar as complexidades da condição humana em um mundo em constante transformação. Com sua sensibilidade e imaginação, Taísmin Ohnmcht conquista os leitores e os convida não só a explorar os mistérios do tempo e da memória, mas também a refletir sobre as estruturas de opressão, a enaltecer a força da comunidade e a acreditar no poder da transformação individual e coletiva.
[1] OHNMCHT, Tahismin. Uma Chance de Continuarmos Assim. São Paulo: Editora Diadorim, 2023.