Daniel Medeiros*
A ironia do tempo: no domingo, a direita brasileira cantou a plenos pulmões o verso do Chico: “Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal. Ainda vai tornar-se um imenso Portugal”. Afinal, a vitória das direitas – a mais racional, tradicional, sob o nome de Aliança Democrática, e a mais bizarra, chamada – seguindo a cartilha da novilíngua de Orwell – de “Chega”, desbancaram o Partido Socialista, há oito anos no poder, nas eleições antecipadas depois da demissão do Primeiro-Ministro, enrolado em meio a acusações de corrupção. Aliás, outra ironia – já que as esquerdas sempre pregaram a lisura na gestão pública – outra canção do Chico: “Dormia, a nossa pátria-mãe tão distraída, sem perceber que era subtraída, em tenebrosas transações.”
O resultado, comemorado por bolsonaros, maltas, malafaias et caterva, não é propriamente uma vitória acachapante, mas uma vitória suficiente, já que garante uma desestabilização inegável do bipartidarismo português, vigente, em meio a arranjos (muitas vezes à socapa) desde a revolução dos Cravos, o movimento dos capitães que acabou com a ditadura que relegou Portugal à condição de um pária europeu, um país melancólico, de favas e fados e vilas de senhoras de luto permanente com rosários nas mãos e imagens de António de Oliveira na parede caiada e sem viço.
Agora, sobre o futuro, nem a Deus pertence, mas aos arranjos que envolverão, à direita – PPD, PSD, CDS, PP, PPM – com a Iniciativa Liberal, e /ou com o Chega, que alcançou a posição de terceira força política do país, ganhando a projeção que o Vox tem na Espanha, ou o Partido pela Liberdade na Holanda, ou mesmo o Alternativa para a Alemanha. Luís Montenegro, líder da coligação vencedora, a AD, prometeu que não colocaria o Chega no governo. Mas a realidade pode mudar suas convicções. Sem a extrema direita, a Aliança Democrática governará como minoria, como Lula faz por aqui, no Brasil, tendo que matar um leão por dia, e, mesmo assim, sem conseguir escapar de extensas e dolorosas mordidas. No caso de Portugal, isso significa a possibilidade de novas eleições, o que pode gerar um impasse como o que a Bélgica e Israel viveram. É o preço de um sistema de governo pensado para ser bipartidário e não a colcha de retalhos no qual a política portuguesa se transformou.
Por outro lado, o Partido Socialista – replicando outro verso do genial Chico Buarque: “Eu semeio o vento, na minha cidade, vou pra rua e bebo a tempestade” – recebeu uma reprimenda dos eleitores, e perdeu mais de meio milhão de votos – 10% do total de eleitores que foram às urnas. O tempo no poder – quase 9 anos – sempre cobra um preço, mas a renúncia do primeiro ministro em meio a acusações de corrupção enquanto os salários médios dos portugueses são um dos menores da União Europeia, somado a uma brutal gentrificação de suas principais cidades, tem provocado um efeito “manifestações de 2013”, sem os black blocs, mas com a mesma indignação. Os brazucas que o digam, vítimas que têm sido em diversos episódios de ódio incontido e de desprezo declarado. Todo esse caldo é um prato cheio para o novo fascismo que põe em risco a Democracia no século XXI. Resta torcer que os versos do Chico não se tornem realidade e não tenhamos de ver e viver “outra realidade menos morta, tanta mentira, tanta força bruta” outra vez.
* Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo.
Patrocinado