RESENHA
O contrabando no Brasil no século XVIII
Tese de doutoramento de 1997 do historiador holandês Ernst Pijning ainda aguarda sua publicação no Brasil
Adelto Gonçalves (*)
I
Tradicionalmente, faz-se resenha de livro impresso lançado recentemente, mas o que o leitor vai encontrar aqui é uma recensão de tese de doutoramento defendida em 1997 na Johns Hopkins University, de Baltimore, Maryland/EUA, que, passadas quase três décadas, incompreensivelmente, ainda não despertou o interesse de nenhuma editora brasileira ou portuguesa, apesar de sua excepcional importância para a história do Brasil colonial e de Portugal. Tem como título Controlling Contraband: Mentality, Economy and Society in Eighteenth–Century Rio de Janeiro (Contrabando: Mentalidade, Economia e Sociedade no Século XVIII no Rio de Janeiro) e seu autor é o historiador holandês Ernst Pijning (1963), professor titular de História da Minot State University, de Dakota do Norte/EUA, desde 1999.
O tema de suas pesquisas é o comércio de contrabando no Brasil colonial e suas relações com Portugal e os Países Baixos (Holanda), especialmente no período que vai de 1690 a 1808. Em seu trabalho, o pesquisador discute não apenas a mecânica do contrabando e a atuação dos participantes deste comércio ilegal, mas os vários fatores que ocasionaram as medidas portuguesas, metropolitanas e coloniais, para impedir que esse comércio clandestino se alastrasse.
Ou seja, o historiador analisa como essas medidas representaram um compromisso entre diferentes interesses, tais como o papel do monarca, a integridade ou a maleabilidade da autoridade real, a aplicação dessa legislação e os tipos de penalidades impostas aos infratores. Nesse sentido, coloca em discussão questões sobre o que constituíam ações legais ou ilegais, assim como outras mais amplas com relação à ética e à moralidade pública no Brasil colônia.
Um resumo de sua tese de doutoramento pode ser lido no artigo “Contrabando, ilegalidade e medidas políticas no Rio de Janeiro do século XVIII”, em tradução de Cristina Meneguello, publicado na Revista Brasileira de História, v. 21, nº 42, 2001, pp. 397-414.
II
Para Pijning, o contrabando não era visto pelas autoridades lusas como uma contravenção ética ou moral, mas como parte dos interesses comerciais de Portugal. Dessa maneira, dependendo da escala social em que estaria o possível contraventor, essa prática seria tolerada. Sem contar que as autoridades que supostamemnte deveriam combater o contrabando, frequentemente, atuavam como intermediários nesse comércio, a princípio, ilegal. E que vários vice-reis retornaram para Portugal demasiadamente enriquecidos, o que sempre permitiu que se levantassem suspeitas de que teriam lucrado muito, ao contribuírem para que o contrabando corresse solto.
“Mas se o contrabando era uma prática onipresente e aceitável, como explicar que algumas pessoas tenham sido presas e perseguidas?”, questiona o historiador. E ele mesmo responde: “É que havia dois tipos de contrabando: um condenado e outro permitido pelas autoridades”. Em outras palavras: a ilegalidade dependia do status social de quem o praticava e dos interesses do governo que representava a Coroa portuguesa.
Pijning lembra que, para entender essa posição duvidosa, é preciso levar em conta o contexto em que Portugal vivia, pois o país, para sobreviver, dependia militar e economicamente de outras nações. Sem contar que a vizinha Espanha ameaçava ocupar o território português e só aguardava um pretexto válido para estender o seu domínio, como já havia feito em relação à província da Galiza, cujo idioma é, praticamente, uma língua irmã do português.
Diante da fraqueza da Coroa portuguesa, alguns grupos internos tinham uma desmedida influência sobre a política econômica e social colocada em prática: por exemplo, vários ramos do comércio, como sal, pesca ou caça às baleias e pesca costeira, eram monopólios. E aqueles que detinham esses monopólos estavam, praticamente, acima de qualquer lei. Era também o caso do comércio ilegal com Buenos Aires e todo o Rio da Prata que era abertamente encorajado pelas autoridades portuguesas. Também o comércio entre Lisboa e Falmouth, na Jamaica, seria, em tese, proibido, mas a Coroa costumava assinar licenças para que isso pudesse ocorrer.
Pijning observa que qualquer estimativa que se possa fazer sobre a magnitude desse comércio ilegal será altamente especulativa, já que não há nos arquivos portugueses e brasileiros estatísticas oficiais. Seja como for, o investigador lembra que, entre outros documentos, há aquele em que dom Pedro Miguel de Almeida Portugal e Vasconcelos (1688-1756), conde de Assumar, governador da capitania de São Paulo-Minas do Ouro de 1717 a 1721, estima em 166 arrobas o comércio ilegal de ouro em 1733 de vários portos da América portuguesa, como Salvador, Rio de Janeiro, Recife, São Luís do Maranhão e Belém do Pará, para Lisboa, Angola, Açores, Colônia do Sacramento, Moçambique, Madagáscar e Guiana. Já o comércio legal de ouro nesse período teria atingido 990 arrobas.
III
Pijning recorda ainda que, como Portugal dependia de outros países europeus, como Inglaterra, França e Holanda principalmente, para manter sua independência em relação a Espanha, tinha de fazer muitas concessões a essas nações, a ponto de funcionar, virtualmente, como uma colônia britânica. Para tanto, Lisboa só obrigava que o comércio de mercadores estrangeiros com a América portuguesa fosse feito por meio de intermediários portugueses. “É de se ressaltar que uma proporção significativa de produtos importados por Portugal da Inglaterra tinha como destino final portos brasileiros”, acrescenta.
Em determinada época, mercadores da Inglaterra e da Holanda tiveram maiores privilégios tanto em Portugal quanto nas possessões do Atlântico, que lhes proporcionavam facilidades para ingressar em atividades ilegais por intermédio de mercadores portugueses. Além disso, eram julgados por seus próprios magistrados e de acordo com as leis de seus países. Tinham também descontos nas alfândegas e liberdade de credo.
Segundo Pijning, se a política do rei dom João V (1689-1750) contra o comércio ilegal era caracterizada por uma resistência passiva, seus sucessores haveriam de adotar uma posição mais ativa contra o contrabando, especialmente a partir da atuação do ministro Sebastião José Carvalho e Mello (1699-1782), o marquês de Pombal, secretário do reino de dom José I (1714-1777), que procurou diminuir a presença da alta nobreza e dos clérigos nos negócios do Estado e estimular a criação de uma nova classe de comerciantes aristocratas. “Pombal tratou de defender reformas na indústria e na agricultura, reestruturando também a educação, além de reorganizar a administração régia”, diz.
Segundo Pijning, a condenação moral direta aos contrabandistas era rara. “A legislação portuguesa chamava o comércio ilegal de “pernicioso”, não porque fosse imoral, mas porque o contrabandista roubava as riquezas do rei ou fraudava os bens do povo, ao mesmo tempo em que prejudicava o bom andamento do comércio honesto”, observa. “Mas se o contrabando não prejudicasse o tesouro real nem fosse complementar a atividades comerciais normais — como no comércio com Buenos Aires —, então era tolerado e até mesmo estimulado. Em outras palavras, por vezes, quebrar a lei era visto como algo muito positivo”, conclui.
IV
O professor-doutor (PhD) Ernst Pijning, especializado em História da América Latina no século XVIII, fez graduação e mestrado na Universidade de Leida, nos Países Baixos, e doutorado na Johns Hopkins University, em Baltimore, Maryland/EUA. É co-autor do livro La Guinée équatoriale aux archives nationales – XVIIIe–début XXe siècles (Editions L´Harmattan, 2016), juntamente com os historiadores Valérie De Wulf, Jean-Marc Lefebvre, Gustau Nerin e Jacint Creus Boixaderas, obra que conta a história do ciclo de escravos na Guiné Equatorial, com base em pesquisas em documentos originais do Arquivo Nacional de Paris. Trata-se de estudo que permite ao leitor descobrir como se interligavam as histórias de todas as partes do mundo, nomeadamente dos três continentes que rodeiam o oceano Atlântico.
Depois de seu doutoramento, ampliou suas pesquisas sobre o contrabando no século XVIII, levantando informações também em arquivos franceses e ingleses. Publicou vários artigos e capítulos em revistas e coletâneas do Brasil, Portugal, Canadá, Colômbia, França e Países Baixos. Já fez várias palestras em simpósios internacionais, especialmente na Universidade de São Paulo (USP), em universidades de Goiás e em outras instituições universitárias do Brasil, de Portugal e de vários países da América Latina e da África.
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Controlling Contraband: Mentality, Economy and Society in Eighteenth-Century Rio de Janeiro, de Ernst Pijning, tese de doutoramento em História defendida na Johns Hopkins University, de Baltimore, Maryland/EUA, 388 páginas, 1997. E-mails do autor: ernst.pijning@minotstateu.edu ernst@srt.com
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(*) Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Fernando Pessoa: a Voz de Deus (Santos, Editora da Unisanta, 1997); Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003, São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Editora LetraSelvagem, 2015), e O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo – 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br