RESENHA
A trajetória de Cecília Meireles revisitada
Em seu novo livro, Salomão Sousa homenageia a poeta com um texto em que corrige várias informações sobre a sua vida pessoal
Adelto Gonçalves (*)
I
Um instigante texto que procura mostrar que a obra da poeta Cecília Meireles (1901-1964) ultrapassa os padrões originais do Modernismo e corrige várias informações a respeito de sua vida pessoal é o que o leitor irá encontrar, além de outros ensaios e artigos igualmente atraentes, no livro Bifurcações – memória, resistência e leitura (Cidade Ocidental-GO, edição do autor, 2022), do poeta e jornalista Salomão Sousa (1952). Trata-se de um “pequeno artigo”, na própria definição do autor, que prenuncia o que pode vir a constituir uma biografia que o poeta tem todas as condições de escrever.
Na verdade, não há nenhum estudo biográfico mais alentado que abranja de forma aprofundada a existência da poeta, como reconhece o escritor, admitindo que são raras as informações sobre o seu cotidiano, relações familiares e com amigos, sobretudo com a intelectualidade, sua defesa de uma educação laica e universal à época da ditadura de Getúlio Vargas (1937-1946) e sua vasta produção poética, acadêmica e jornalística.
Sem contar, como assinalou Salomão Sousa, que há em várias obras informações deturpadas, como a que aparece em O livro no Brasil: sua história (São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo – Edusp, 2023), do historiador britânico Laurence Hallewell (1929), tese de doutoramento escrita em 1975, que saiu no Brasil pela primeira vez em 1982 (tradução de Maria da Penha Villalobos, Lólio Lourenço de Oliveira e Geraldo Gerson de Souza), com segunda edição revista pelo autor e publicada pela Edusp, em 2005.
Uma incorreção é que Cecília Meireles teria sido presa por ter traduzido As aventuras de Tom Sawyer, de Mark Twain (1835-1910), quando, na verdade, apesar de suas divergências com o Estado Novo, trabalhou no Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) como editora da revista Travel in Brazil, de divulgação para turistas, entre 1941 e 1942.
Aliás, se o autor quiser ir adiante nesse possível projeto, este articulista gostaria de assinalar que não se pode deixar de mencionar a beleza física que Cecília Meireles deixava transparecer. Um testemunho disso é a menção que o professor, filósofo e ensaísta português Eduardo Lourenço (1923-2020) fez no ensaio “Orpheu e Presença”, que consta de suas Obras Completas. Tempo e Poesia, tomo III (Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2016), a respeito de uma visita que Cecília Meireles fez a Portugal, provavelmente, nos anos 30. Ali se lê: “(…) Essa senhora, além de ser uma grande poetisa, era uma estampa – como se dizia no meu tempo –, ainda passados muitos anos o poeta Afonso Duarte (1884-1958) falava de forma admirável das célebres pernas da Cecília Meireles. A senhora deixou um rasto de prestígio intelectual e de elegância, de fascínio, que ainda repercutia nos anos 40 quando eu estava em Coimbra”.
II
A par de sua brilhante e sempre exaltada produção poética, Cecília Meireles foi também uma jornalista profícua, a uma época em que era rara a presença de uma mulher nas redações de jornais e revistas. Como lembra Salomão Sousa, a atuação jornalística da poeta rendeu só no Diário de Notícias, do Rio de Janeiro, com a seção “Página de Educação”, mais de 750 artigos, que se encontram organizados em cinco volumes. Por sua página no jornal, a poeta defendeu um ensino laico e universal para a escola pública, contrariando a corrente de conservadores católicos, liderada por Alceu de Amoroso Lima (1893-1983), que preconizava um ensino religioso e condenava o que entendia como escola “materializante e comunizante”.
Essa oposição conservadora levou o jornal a acabar com a página de Cecília Meireles, sem nenhuma explicação, provavelmente por pressão do governo. Tudo isso, como observa Salomão Sousa, pode ser lido em A farpa na lira: Cecília Meireles na Revolução de 30 (Rio de Janeiro, Editora Record, 1996), da professora Valéria Lamego, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), autora também do recente artigo “A extrema liberdade em Cecília Meireles” (São Paulo, Opiniães – Revista dos Alunos de Literatura Brasileira, nº 20, jan.-jul. 2022, pp. 61-76).
Neste artigo em que a professora faz um breve paralelo entre a intelectual brasileira e a pensadora e militante política francesa Simone Weil (1909-1943), há, inclusive, referência a um texto inédito encontrado entre os materiais enviados pela filha da poeta à autora. Como se vê, há ainda muito o que se pesquisar sobre a produção intelectual e a vida pessoal da autora de Romanceiro da Inconfidência (1953), sua mais aclamada obra.
III
Se só se referindo a um “pequeno artigo” já se chegou até aqui, o leitor há de antever o que irá encontrar neste livro em que, além de poemas, há ensaios instigantes como aquele dedicado ao filósofo e ensaísta sul-coreano Byung-Chul Han, professor da Universidade de Artes de Berlim. Neste texto, o autor, a partir de argumentações daquele pensador, reconhece que “vivemos um novo momento de extrema crise de identidade política, de desordem social e de ilegitimidade cultural, sem compreender onde iremos desaguar com a nossa solidão de Humanismo”.
E lembra que, hoje, com a atuação nas redes sociais, não participamos da vida em sociedade nem da discussão política, pois só agregamos concordância: “Cada vez que curtimos, diz Byung-Chul Han, dizemos amém. Assim, a democracia se afirma com expectadores, pois damos a ela nossa subordinação e concordância e não nossa participação”.
Neste livro, o leitor ainda encontrará artigos ou resenhas de livros de poetas não tão célebres como Cecília Meireles, mas que igualmente começam a se firmar no cenário literário brasileiro dos nossos dias, como Dheyne de Souza, Daniel Francoy, Renato Suttana, Ana Cristina Cotrim e Nirton Venâncio, entre outros, e, por fim, o discurso de posse do autor na Academia de Letras do Brasil (ALB), em Brasília.
IV
Nascido em Silvânia-GO, Salomão Sousa é formado em Jornalismo pelo Centro Universitário de Brasília (Ceub). Aposentado do poder executivo federal, vive em Brasília desde 1971. Estreou em 1979 com A moenda dos dias, que mereceu resenha na revista da Universidade de Harvard/EUA. Além da ALB, é membro da Associação Nacional de Escritores (ANE), da Academia de Letras, Artes e História de Silvânia e da Academia Mundial de Letras da Humanidade (AMLH), de Santo André-SP.
Está também na Antologia da nova poesia brasileira (1992), organizada pela poeta Olga Savary (1933-2020), e em A poesia goiana do século XX (1998), organizada por Assis Brasil (1929-2021). Foi um dos 47 poetas incluídos no número que a revista Anto, de Portugal, dedicou, em 1998, à literatura brasileira, em comemoração dos 500 anos da descoberta do Brasil.
Organizou antologias, entre as quais Deste Planalto Central – poetas de Brasília (2008), como parte da I Bienal Internacional de Poesia da Biblioteca Nacional de Brasília, Em canto cerrado e Conto candango, com escritores de Brasília. Obteve o Prêmio Capital Nacional do Ano de 1998 de Crítica Literária. A União Brasileira dos Escritores (UBE), seção de Goiás, concedeu-lhe, em 2011, o Troféu Tiokô como personalidade goiana que mais se destacou fora do Estado no biênio 2010-2011.
É autor ainda de Falo (Brasília, Thesaurus Editora, 1986); Criação de lodo (Brasília, edição de autor, 1993); Caderno de desapontamentos (Brasília, edição de autor, 1994); Estoque de relâmpagos, Prêmio Brasília de Produção Literária (Brasília, 2002); Ruínas ao sol, Prêmio Goyaz de Poesia (São Paulo, 7Letras, 2006); Safra quebrada (reunião de livros anteriores e de dois inéditos: Marimbondo (feliz) e Gleba dos excluídos (Brasília, Fundo de Apoio à Cultura, 2007); Momento crítico, textos críticos, crônicas e aforismos (Brasília, Thesaurus Editora, 2008); Vagem de vidro (Brasília, Thesaurus Editora, 2013); Desmanche I (Brasília, 2018); Poética e andorinhas (Brasília, 2018) e Descolagem (Goiânia, Editora Kelps, 2017), entre outros.
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Bifurcações – memória, resistência e leitura, ensaios, de Salomão Sousa. Cidade Ocidental-GO, edição do autor, 164 páginas, R$ 37,00, 2022. E-mail: salomaosousa@yahoo.com.br
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(*) Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Fernando Pessoa: a Voz de Deus (Santos, Editora da Unisanta, 1997); Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003, São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015), O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo – 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br.