As religiões são caminhos diferentes convergindo para o mesmo ponto. Que importância faz se seguimos por caminhos diferentes, desde que alcancemos o mesmo objetivo?
Mahatma Gandhi
Por Margarete Hülsendeger
Segundo pesquisa publicada pela BBC News Brasil, em janeiro de 2023, o “número de denúncias de intolerância religiosa no Brasil aumentou 106% em apenas um ano. Passou de 583, em 2021, para 1,2 mil, em 2022, uma média de três por dia”[1]. Na mesma pesquisa, também foram identificados os Estados campeões de denúncias: 1º: São Paulo (270); 2º: Rio de Janeiro (219); 3º: Bahia (172); 4º: Minas Gerais (94); e 5º: Rio Grande do Sul (51). Infelizmente, hoje, pode-se afirmar que a intolerância religiosa no Brasil “evoluiu” para outra chaga social: o racismo religioso.
Assim, enquanto a intolerância religiosa ocorre quando uma pessoa discrimina outras por ter a crença ou a religião diferente da dela, no racismo religioso vemos algumas religiões sofrendo preconceitos e sendo indevidamente vistas como ruins, perversas, desumanas e cruéis simplesmente porque muitos de seus seguidores são negros. Por isso, a expressão “intolerância religiosa” já não é mais suficiente para explicar atitudes agressivas e ofensivas que têm o único propósito de ferir a dignidade religiosa do outro. No Brasil, essa discriminação religiosa é dirigida quase que exclusivamente às religiões de influência africana, como o Candomblé (em suas diferentes manifestações) e a Umbanda. Contudo, o que impulsiona muitos dos responsáveis por esses ataques não é apenas o preconceito, mas também a completa ignorância sobre como essas duas religiões funcionam. Portanto, aqui vão algumas informações importantes.
Se o Candomblé – “dança com atabaques” – é de origem africana, pois foi trazido pelos negros escravizados, a Umbanda – “arte de cura” – nasceu em solo brasileiro, mais especificamente no Rio de Janeiro, em 1908, pelas mãos de um jovem médium chamado Zélio Fernandino de Morais. Do mesmo modo, apesar de suas origens serem diferentes, as duas religiões são monoteístas, ou seja, cultuam um só Deus. Na Umbanda esse Deus supremo recebe o nome de Olorum e no Candomblé irá depender da nação africana de origem: para os Ketu é Olorum, para os Bantu é NZambi e para a nação Jeje é Mawu. Ambas as religiões acreditam na vida após a morte e na predestinação, ou seja, que cada indivíduo tem um destino pré-determinado e que as divindades e/ou espíritos podem influenciar e guiar esse destino.
Outro ponto que as conecta é o fato de as duas não possuírem dogmas ou princípios que se aceitam sem discussão. O caso do Catolicismo é emblemático, construído sobre dogmas que poucos se atrevem a contestar, como a virgindade de Maria, a Santíssima Trindade e a transubstanciação – transformação do pão e vinho, no corpo e sangue de Jesus Cristo, respectivamente. O Candomblé e a Umbanda não têm nada parecido com isso, mas, como outras religiões, tem seus rituais, crenças e normas morais e éticas.
Entre as crenças comuns ao Candomblé e à Umbanda está o culto aos Orixás. No caso do Candomblé, os Orixás são deuses de personalidades e habilidades distintas que possuem preferências ritualísticas e escolhem em quem incorporar. Cada um deles tem um dia específico, roupas com cores particulares e alimentos próprios. Ademais, a base do Candomblé é a Natureza; assim, seus seguidores acreditam que animais e plantas também possuem espiritualidade. No seu panteão podem existir de 16 a 72 Orixás, um número que varia de acordo com o terreiro.
Como na Umbanda encontramos uma mistura de diferentes vertentes – catolicismo, espiritismo, indígenas, cabalísticas e, é claro, o Candomblé –, os Orixás dividem o espaço com os guias. Esses são espíritos que ajudam no contato com os seres desencarnados, aconselhando e orientando. Os espíritos mais conhecidos são os pretos-velhos, as pomba-giras, os caboclos, os marinheiros, os boiadeiros e os ciganos. Os Orixás, por sua vez, são espíritos ancestrais. Em geral, apenas nove são cultuados: Iansã, Iemanjá, Nanã Buruquê, Obaluaê/Omulu, Ogum, Oxalá, Oxóssi, Oxum e Xangô. Além disso, influenciado pelo kardecismo espírita, apropriou-se de conceitos como “evolução” e “reencarnação”, o que teria aproximado a religião da população brasileira branca e urbana do começo do século XX.
De qualquer maneira, a discriminação, fruto da ignorância e da arrogância, tem perseguido aqueles que se atrevem a se identificar como umbandistas ou candomblecistas, essas duas religiões tão mal compreendidas. Essa intolerância, contudo, não é novidade; em outros tempos e lugares, hostilidades similares afetaram diversos grupos sociais, basta lembrar das perseguições aos judeus na Europa. Parece que é da natureza humana colocar-se sempre na posição de juiz (e até de carrasco) para julgar o que é certo ou errado, o que é justo ou injusto ou em que deus devo acreditar e que fé preciso cultivar. Como explica a psicóloga Tânia Jandira Rodrigues Ferreira, “Toda intolerância religiosa é uma violência, toda violência gera trauma, e todo trauma afeta, com maior ou menor intensidade, a saúde psíquica de um indivíduo”[2]. Talvez, se todas as agressões dirigidas ao povo da Umbanda e do Candomblé fossem canalizadas para questões mais urgentes como saúde e educação públicas, corrupção e pobreza, o Brasil poderia, um dia, se tornar um modelo a ser seguido.
Um Axé a todas e todos! Saravá!
[1] Disponível https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64393722. Acesso em 19 dez 2023.
[2] Disponível: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64393722. Acesso em 19 dez. 2023.
Patrocinado