Qual é a maior lição que uma mulher pode aprender? Que desde o primeiro dia, ela sempre teve tudo o que precisa dentro de si mesma. Foi o mundo que a convenceu que ela não tinha.
Rupi Kaur
Margarete Hülsendeger |
Quando, em 1889, a matemática russa Sofia Kovalevskaia (1850-1891) candidatou-se a uma vaga como professora na Universidade de Estocolmo, o dramaturgo e romancista sueco August Strindberg (1849-1912) tentou impugnar sua candidatura alegando que “tão decididamente como dois e dois fazem quatro, é uma monstruosidade uma mulher professora de matemática e, portanto, é desnecessário, ultrajante e está fora de lugar”. Sessenta anos depois, o escritor argentino Ernesto Sabato (1911-2011) escreveria que Sofia foi levada ao trabalho científico “pelo amor, coisa muito natural em uma mulher, e não por amor à própria ciência, coisa típica do homem”. Hoje, apesar da opinião desses dois “sábios”, reconhece-se o papel pioneiro de Sofia Kovalevskaia no desenvolvimento da matemática em uma época que esse campo era dominado pelos homens.
O caso de Sofia ilustra três poderosos mitos em torno da matemática que colaboram para excluir as mulheres. O primeiro é aquele que vê o universo matemático habitado por indivíduos irritados que trabalhando sozinhos criam a “grande matemática” apenas pela pura força de seu intelecto imaginativo. O segundo acredita que a matemática sempre fornece um conhecimento certo, eterno e universal, ao qual se chega pelo raciocínio dedutivo e por provas formais. E, por fim, o terceiro mito defende que, em virtude das razões anteriores, ser matemático e ser mulher são duas condições incompatíveis, pois como sua ênfase está no trabalho mental, não é uma atividade para as fêmeas da espécie. Ou como escreveu Sabato: “A ciência pela ciência, a arte pela arte, a fé pela fé, tudo que está situado à margem do concreto e do útil, carece de sentido para a mulher”.
Foram essas ideias, tantas vezes repetidas, as responsáveis pelo distanciamento das mulheres não só da matemática como da ciência[1] em geral, já que a primeira serve como filtro crítico para carreiras científicas. Desse modo, como o prestígio de uma ciência depende, em maior ou menor grau, de seu grau de matematização, quanto mais matemática for exigida para um emprego, maior será a remuneração, mas, em contrapartida, menor será a taxa de participação de mulheres. No entanto, hoje sabemos que a resposta à questão “Os homens são melhores do que as mulheres em matemática” depende do parâmetro que se escolhe.
Um relatório da UNESCO[2] publicado em 2018 evidencia o peso que normas culturais e sociais têm sobre a percepção das meninas no que se refere a suas habilidades, seus papéis na sociedade e suas aspirações futuras. Assim, em países com maior igualdade de gênero, “as meninas tendem a ter atitudes e confiança mais positivas a respeito da matemática, e a disparidade de gênero no sucesso em disciplinas é menor”. Do mesmo modo, pesquisas confirmam que os estereótipos de gênero veiculados pela mídia “são internalizados por crianças e adultos desde muito cedo, afetando a forma como eles veem a si mesmos e os outros”. Entre os vários estereótipos conhecidos, dois são predominantes quando se trata de gênero e as áreas de STEM[3]: “os meninos são melhores em matemática e em ciências do que as meninas” e “carreiras em ciência e engenharia são domínios masculinos”. Esses estereótipos sobre uma suposta habilidade intelectual de alto nível entre os meninos em geral, e especificamente em matemática e ciências, disseminados pela mídia são depois reforçados dentro da própria família e mais tarde na escola. Como resultado, mídia, família e escola podem difundir ou anular os estereótipos de gênero sobre as habilidades e as carreiras nas áreas de STEM.
Nesse sentido, tem sido demonstrado que questões que envolvem gênero abundam nas culturas da matemática e das ciências determinando, até certo ponto, quem é mais preparado, melhor financiado e, por consequência, desfruta de maior prestígio. Por isso, trata-se de um tema complexo que exige não só mais investigação, mas medidas específicas e eficazes para promover a igualdade de gênero. De qualquer forma, não é mais possível insistir na ideia de que o sexo de um indivíduo determina sua capacidade para aprender matemática ou qualquer outro tipo de conhecimento.
As pesquisas em neurociências já demonstraram a existência de “algumas diferenças na estrutura e nas funções cerebrais de homens e mulheres; porém, poucas diferenças confiáveis foram encontradas no cérebro de meninos e meninas que possam ser consideradas relevantes para a aprendizagem ou para a educação”. Da mesma maneira, estudos sugerem que as diferenças na habilidade cognitiva provavelmente são maiores entre indivíduos do mesmo sexo do que entre homens e mulheres, e que a capacidade genética interage com o ambiente e é altamente influenciada por ele.
A cultura da ciência estabelece as condições para quem tem a formação e a oportunidade de fazer as perguntas certas. O feminismo, por sua vez, tem feito contribuições significativas ao fazer perguntas que, em geral, estão em desacordo com as premissas de uma disciplina. Perguntas que têm sacudido os alicerces de uma sociedade patriarcal que durante séculos esforçou-se em excluir as mulheres levando-as a acreditar que são inferiores e incapazes. O problema, portanto, não está no cérebro feminino, mas na ausência de ações efetivas que deem as meninas e mulheres as mesmas oportunidades que têm sido dadas aos homens.
[1] Neste texto, quando utilizo a palavra ciência estou me referindo às ciências da natureza (física, química e biologia), áreas nas quais a matemática é de fundamental importância.
[2] Disponível em https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000264691. Acesso 20 out. 2023.
[3] STEM é um acrónimo em língua inglesa para “science, technology, engineering and mathematics”, que representa um sistema de aprendizado científico, o qual agrupa disciplinas educacionais em “ciência, tecnologia, engenharia e matemática (Fonte: Wikipédia).