SOFT OU HARD? QUAL O LUGAR DA MULHER?
Eu não terei a minha vida reduzida. Eu não vou me curvar ao capricho ou à ignorância de outra pessoa.
Bell Hooks
Por Margarete Hülsendeger
No universo acadêmico costuma-se dividir as áreas de conhecimento em duas grandes categorias: as ciências soft e as ciências hard. A primeira geralmente é usada para se referir às ciências humanas e sociais, enquanto a segunda reúne as ciências que estudam o mundo natural mais a matemática. Assim, são consideradas soft a história, a psicologia, a sociologia, entre outras. Já as hard englobam a física, a química, a biologia e a matemática. Existem muitos mitos em torno delas, sendo o mais conhecido o grau de dificuldade. Criou-se a ideia de que as ciências hard são mais complexas e difíceis que as ciências soft, principalmente porque as primeiras utilizam modelos matemáticos enquanto as segundas lidam com coisas intangíveis, como sentimentos, comportamentos e relações interpessoais.
Além disso, as ciências hard são consideradas “imparciais”, distantes, abstratas e quantitativas enquanto as ciências soft são “compassivas”, qualitativas, introspectivas e, portanto, próximas das preocupações cotidianas. Desse modo, as ciências hard são mais complexas porque exigiriam um alto grau de pensamento abstrato, forte aptidão analítica e longas horas de trabalho árduo. As ciências soft, por outro lado, seriam mais simples porque incluem crenças comuns e, por consequência, requerem apenas inferências, ou seja, raciocínios concluídos ou desenvolvidos a partir de indícios, de pistas, de sinais, de vestígios.
Felizmente, há algum tempo, essa divisão vem recebendo muitas críticas. Em 2019, a Scientific American publicou um artigo intitulado “The really Hard Science”, do psicólogo e historiador Michael Shermer[1], no qual ele alerta para o risco dessa classificação. Segundo Shermer, é urgente superar antigos conceitos do que é simples e complexo, fácil e difícil, procurando valorizar as ciências soft,já que seu foco é compreender melhor os padrões de comportamento humano que impactam a vida em todo o planeta. E o que pode ser mais importante do que entender o porquê do ser humano agir de uma determinada maneira, principalmente, se suas atitudes estão causando tantos problemas ao meio ambiente?
De qualquer forma, foi esse mito, amplamente disseminado, que manteve, durante muito tempo, as mulheres afastadas das ciências consideradas hard. A “dureza” dessas áreas do conhecimento – no que elas estudam e no nível de dificuldade a elas atribuídos – tem relação direta ao prestígio, aos financiamentos e, negativamente, ao número de mulheres atuando nelas. Assim, quanto mais matemática é exigida para um dado emprego, menor a taxa de participação de mulheres. Daí a pergunta: o que vem antes, as poucas mulheres nas ciências hard ou a ideia de que sendo hard, ela não é receptiva a elas?
Historicamente essa imagem foi assegurada pela separação cartesiana clara e distinta entre a prática da ciência e o seu exame crítico. Como resultado, o deus da ciência tornou-se desprovido de ética, política e, principalmente, religião. Um deus “neutro de valor”, do mesmo modo que os homens de ciência pensam que sua ciência é. E qual seria o lugar da mulher nessa “nova ordem”?
Infelizmente, essa mudança de paradigma no pensamento científico não afetou a posição das mulheres. Ao contrário. Parece que fortaleceu a ideia de que elas teriam nascido apenas para lidar com as questões do dia a dia, como os cuidados da casa e dos filhos, enquanto as mentes masculinas, “como dita a natureza”, dedicar-se-iam a descobrir os grandes mistérios do mundo. Como resultado, tornou-se infinitamente mais fácil isolar as mulheres em casa, fazendo-as crer que esse fora o propósito para o qual foram criadas. E o que não faltaram foram teorias ditas “cientificas” para fundamentar tal pensamento, todas obviamente elaboradas e defendidas por homens.
É claro que existiram mulheres que, por seus próprios méritos e também, é preciso reconhecer, com a ajuda de homens com mente mais aberta, romperam muitas das barreiras sociais impostas as elas. É o caso da filósofa Elena Cornaro Piscopia (1646-1604) que, com o apoio do pai, reconhecendo a genialidade da filha, alcançou uma vasta formação em idiomas, música, matemática, teologia e filosofia. O resultado dessa educação privilegiada, oferecida na esmagadora maioria dos casos apenas aos homens, permitiu que Elena se tornasse a primeira doutora em filosofia da Europa. Um título que lhe permitiu ensinar matemática na Universidade de Pádua a estudantes de todo o continente.
No entanto, Elena Piscopia, assim como a física Laura Bassi (1711-1778) ou matemática Sophie Germain (1776-1831), era uma exceção diante do que se esperava de uma mulher ou do que se acreditava que uma mulher era ou não capaz de fazer. Por isso, pode-se pensar em outra pergunta: as ciências hard são realmente mais difíceis que outros campos de estudos ou tudo faz parte de uma imagem cultural alimentada, por uma sociedade patriarcal, com o único propósito de manter as mulheres afastadas delas? Ou ainda: até que ponto as mulheres foram convencidas de que são incapazes de desenvolver pensamentos abstratos complexos e, portanto, ineptas para a matemática, a física ou a química?
Não se deve nunca desprezar o poder da pressão social quando isso significa manter o controle sobre mais da metade da população do planeta. Foi essa pressão a responsável por determinar que as virtudes do sucesso, quaisquer que sejam elas, sempre estivessem associadas aos homens. Daí a importância de se insistir no entendimento crítico de como o gênero atua na discriminação e segregação das mulheres em áreas amplamente dominadas pelo sexo masculino. Apenas quando esse entendimento for alcançado é que poderemos contar com a presença feminina não só nas ciências soft, mas, em especial, nas hard porque a verdade é que mulher gosta de matemática e sabe fazer ciência.
[1] Disponível em https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/especial-publicitario/ampesc/admiravel-mundo-novo/noticia/2019/01/17/o-que-sao-as-hard-sciences.ghtml. Acesso: 14 ago. 2023.