AS MULHERES DO PROJETO
Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome.
Clarice Lispector
Por Margarete Hülsendeger
Com a estreia de “Oppenheimer” nos cinemas do Brasil e do mundo, redescobriu-se a história do projeto que deu “vida” às duas primeiras bombas atômicas: o Projeto Manhattan. Apesar do filme focar mais nas questões políticas do projeto, deixando um pouco de lado todo o esforço científico exigido, a produção americana tem o mérito de rememorar o trabalho que representou a “ciência grande” em seu apogeu. Entenda-se a expressão “ciência grande” como sendo a ciência em grande escala, com equipes multidisciplinares envolvidas em pesquisas orientadas para missões específicas, trabalhando com equipamentos que exigiam custos operacionais elevados e alta necessidade de reinvestimento.
Por isso, entre os historiadores da ciência, não há dúvidas em considerar o Projeto Manhattan o ápice da “ciência grande” em seu tempo. Um projeto de pesquisa cooperativo, coordenado nacionalmente, financiado pelo governo, envolvendo milhares dos melhores cientistas da época e dirigido no sentido da criação de um único produto: uma bomba atômica. Um projeto que, apesar de seu objetivo sinistro, também ajudou a lançar alguma luz sobre a ausência das mulheres nas ditas ciências hard.
No início do século XX as mulheres ainda eram consideras muito “frágeis” para arcarem com a “tensão mental do estudo difícil”. Por isso, elas dificilmente teriam sido consideradas candidatas preferenciais para pesquisas em armas. Esse quadro se manteve até a década de 1970, de tal modo que a maioria das mulheres que se doutorava em alguma área da ciência raramente encontrava empregos na indústria ou em agências científicas federais. No entanto, havia mulheres, não só em Los Alamos, mas também em Oak Ridge, Tennessee, onde foi realizado o processo de enriquecimento do Urânio. Todas eram cientistas? Não, mas todas, à sua maneira, juntaram-se ao esforço de construir uma arma que teoricamente acabaria com todas as guerras.
Muitas mulheres que participaram do Projeto eram basicamente as esposas dos homens que construíram a bomba. Coube a elas dirigir escolas, coordenar eventos socias, ter bebês, cozinhar, limpar, enfim, criar uma vida, de certo modo tolerável em uma cidade improvisada no deserto e onde a ordem era manter segredo absoluto do que estava sendo feito por lá. Mulheres que, de uma hora para outra, não puderam perguntar aos seus maridos “como havia sido o seu dia” porque estava proibido comentar qualquer coisa, por mais insignificante que fosse, sobre o que estava ocorrendo nas instalações nas quais elas não tinham permissão nem para chegar perto.
Outras mulheres, contudo, algumas casadas com homens do Projeto e algumas solteiras, serviam como “computadores”, eram secretárias, faxineiras e até mesmo controlavam painéis que estavam ligados diretamente aos reatores construídos para separar o plutônio do urânio. Todas trabalhavam às cegas e de forma completamente compartimentada para que nenhuma informação importante pudesse ser descoberta pelo inimigo. As “calculadoras”, por exemplo, eram mulheres que tinham a função de calcular soluções para equações diferenciais e integrais sem saberem o que aqueles resultados significavam ou para que serviam.
Havia, no entanto, um pequeno grupo de mulheres cientistas – cerca de 85 – que se envolveram diretamente no esforço militar. Nomes como Maria Goeppert Mayer (1906-1972), segunda mulher a receber o Nobel de Física, que, ao lado de Edward Teller, esteve envolvida na separação de isótopos de urânio dando origem, mais tarde, à chamada Bomba de Teller. Ou a física Elizabeth Riddle Graves (1916-1972), pioneira na física de nêutrons e na medição de nêutrons rápidos, que trabalhou na seleção de um refletor de nêutrons para envolver o núcleo da bomba atômica. Mulheres que foram deixadas de fora no filme de Christopher Nolan, silenciando-se sobre o quanto o trabalho delas também foi importante para o sucesso desse grande empreendimento científico.
Algo precisa ficar claro: ao utilizar a expressão “grande empreendimento científico”, não estou fazendo juízo de valor sobre a validade ou não de se construir uma arma tão terrível capaz, de em questão de segundos, ceifar milhares de vidas humanas com consequências catastróficas para o planeta. O objetivo é mostrar que, mesmo agora, nesse filme que alcançou um enorme sucesso de público e bilheteria, o trabalho das mulheres no âmbito da ciência continua sendo ignorado.
No último filme de Nolan, com exceção da esposa de Robert Oppenheimer, Kitty, e de Jean Tallock, amante dele, apenas a química Lilli Hornig (1921-2017) aparece no filme. Por essa razão, “Oppenheimer” foi reprovado no Teste Bechdel, um método para avaliar a diferença de gênero em filmes e séries. Para ser aprovada, uma produção artística precisa responder afirmativamente a três perguntas: o filme tem pelo menos duas ou mais personagens femininas, essas personagens interagem umas com as outras durante o filme e elas falam sobre algo que não seja um homem? No caso do filme de Nolan, a resposta a duas das perguntas é negativa, o que garante a sua reprovação no teste.
Volto a repetir: o mérito de “Oppenheimer” é inegável no que se refere ao resgate de um evento histórico de suma importância. A questão que trago para o debate é porque não recuperar os nomes de algumas das mulheres que estiveram diretamente envolvidas no Projeto? Porque só cientistas homens aparecem na tela? Porque apenas uma das 85 mulheres cientistas foi mencionada? E se pensarmos que foi uma mulher que descobriu a fissão nuclear – a física austríaca Lise Meitner (1878-1968) – o absurdo dessas ausências torna-se ainda maior. Esperemos que no futuro outras produções, quem sabe dirigidas por mulheres, possam resgatar o esforço conjunto dessas cientistas, não apenas no Projeto Manhattan, mas em tantas outras realizações científicas nas quais estiveram presentes, mas foram ignoradas pela história.