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DESVANTAGEM CUMULATIVA

DESVANTAGEM CUMULATIVA

Se uma mulher tem poder, porque é preciso disfarçar que tem poder? Mas a triste verdade é que o nosso mundo está cheio de homens e de mulheres que não gostam de mulheres poderosas.

Chimamanda Ngozi Adichie

Margarete Hülsendeger

Em 1968, o sociólogo estadunidense Robert K. Merton (1910-2003) cunhou o termo “efeito Mateus”, usado metaforicamente para se referir a questões de fama e status. Merton retirou essa expressão da Parábola dos Talentos, presente no Evangelho segundo Mateus, e com ela procurou descrever como cientistas importantes, com frequência, recebem mais crédito do que um pesquisador desconhecido, mesmo os estudos sendo similares. Assim, segundo o “efeito Mateus”, um prêmio quase sempre irá para o pesquisador mais experiente mesmo que a maior parte do trabalho tenha sido feita por um estudante de pós-graduação. Merton também observou como o aumento da atenção sobre indivíduos eminentes pode provocar o crescimento da sua autoconfiança, levando-os a trabalhar em pesquisas de áreas importantes, mas arriscadas.

Já em 1981, a historiadora de ciência Margaret Rossiter alertou para outro fenômeno observado no interior da ciência: o fato de as mulheres sofrerem tipos diferentes de segregação. Desde a diminuição expressiva de mulheres em postos de poder e prestígio (segregação hierárquica), passando pela tendência das mulheres de se agruparem em determinas disciplinas enquanto estão quase ausentes em outras (segregação territorial), até a triste realidade de que, quanto mais prestigiosa for uma instituição, mais as mulheres demoram a ser promovidas (segregação institucional). Apesar de nesses mais de 40 anos desde a publicação da pesquisa de Rossiter algumas mudanças terem ocorrido, continua sendo verdade que muitas mulheres, desiludidas pelos baixos salários, optam por abandonar a ciência ao invés de continuar lutando por reconhecimento e remuneração.

Dessa forma, se a pesquisa de Merton trata de homens recebendo prêmios por serem famosos enquanto seus assistentes ficam nas sombras, Rossiter adverte para um cenário no qual as mulheres são geralmente consideradas meros recipientes de conhecimento e poucas vezes geradoras de saberes. Uma das razões para esse pensamento encontra-se na educação que homens e mulheres recebem desde a infância. Enquanto os primeiros, desde cedo, são estimulados a ingressarem em disciplinas “masculinas”, como a física, a química, a matemática e a engenharia, a sociedade espera que as mulheres, mais do que os homens, sejam humildes esquecendo que a modéstia está, muitas vezes, ligada à baixa autoestima. Por consequência, as mulheres, seguindo uma pauta imposta pela cultura, não apenas subestimam suas chances de êxito, como diversas vezes atribuem o sucesso alcançado a coisas fora do seu controle como, por exemplo, um “golpe de sorte”.

O efeito desse duplo discurso é que o número de mulheres em uma determinada área da ciência tende a ser inversamente proporcional ao seu prestígio: quanto mais alto se ascende na hierarquia científica, menos mulheres se encontram. E quando as estatísticas parecem melhorar, observa-se que apenas os empregos pouco valorizados estão disponíveis para as mulheres. Como decorrência, não importa a produtividade ou a qualificação, as mulheres não são igualmente recompensadas com aumentos salariais, promoções ou reconhecimento profissional na mesma proporção que os homens. Há um enorme abismo, determinado pelo gênero, difícil de ser ignorado e que precisa ser urgentemente fechado.

Desse modo, se alguns homens sofrem uma “vantagem cumulativa”, outro nome para o “efeito Mateus”, as mulheres enfrentam, há um longo tempo, uma “desvantagem cumulativa”, ou seja, uma discriminação sutil e inquantificável. Por isso, mais comum que o assédio direto é a dieta constante de pequenas ofensas e insinuações que algumas mulheres suportam. Um sexismo sutil que, apesar de não ser fisicamente danoso, é assustadoramente penetrante e debilitador. Um sexismo que leva muitas mulheres bem sucedidas a se sentirem excluídas dos centros reais de poder.

Margarete Hülsendeger – Possui graduação em Licenciatura Plena em Física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1985), Mestrado em Educação em Ciências e Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002-2004), Mestrado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2014-2015) e Doutorado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2016-2020). Foi professora titular na disciplina de Física em escolas de ensino particular. É escritora, com textos publicados em revistas e sites literários, capítulos de livros, publicando, em 2011, pela EDIPUCRS, obra intitulada “E Todavia se Move” e, pela mesma editora, em 2014, a obra “Um diálogo improvável: homens e mulheres que fizeram história”.

Por conta desse quadro é preciso aplaudir a iniciativa da deputada Jack Rocha (PT-ES), relatora do Projeto de Lei nº 1085/23, do Poder Executivo. Nele instituem-se “medidas para tentar garantir a igualdade salarial e remuneratória entre mulheres e homens na realização de trabalho de igual valor ou no exercício da mesma função”[1]. Nas palavras da deputada, “falar de igualdade salarial é falar sobre a emancipação das mulheres. A luta das mulheres é a promoção da implementação de programas de diversidade no ambiente de trabalho, que incluam capacitação de gestores, lideranças, empregadores”. Uma lei como essa, que prevê multa para quem não a cumprir, é um passo importante quando se trata da luta por direitos iguais para homens e mulheres, pelo menos no ambiente de trabalho. Sabe-se, contudo, que apenas a promulgação de uma lei não é suficiente; é necessário que a sociedade a entenda, a valorize e exija a sua aplicação.


[1] Disponível em https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/comissao-de-defesa-dos-direitos-da-mulher-cmulher/noticias/camara-aprova-projeto-que-preve-salarios-iguais-para-homens-e-mulheres. Acesso em 19 jul. 2023.

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