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(Des)Semelhanças da Constituição em Hegel e Lassalle
César Augusto Hülsendeger[*]
RESUMO
Para Hegel, a Constituição é anterior ao Estado, o cria e dá forma ao organizar e unir os estamentos da sociedade civil para garantir direitos. Para Lassalle, a Constituição só existe se adequar-se aos fatores reais do poder que comandam a sociedade. Porém, apesar de diferenças entre ambos – para Hegel, a Constituição é forma de unir a sociedade contra a desordem; para Lassalle, deve ser uma ferramenta da liberdade contra a opressão – pode-se dizer que há uma aproximação entre ambos, pois os dois entendem que a Constituição, para ter eficácia, deve ser aceita por quem lhe dá fundamento.
Palavras-chave: Constituição; Hegel; Lassalle; volksgeist; fatores reais do poder.
RESUMEN
Para Hegel, la Constitución es anterior al Estado, lo crea y lo configura organizando y uniendo las capas de la sociedad civil para garantizar los derechos. Para Lassalle, la Constitución sólo existe si se adapta a los factores reales de poder que rigen la sociedad. Sin embargo, a pesar de las diferencias entre ambos – para Hegel, la Constitución es una forma de unir a la sociedad contra el desorden; para Lassalle, debe ser una herramienta de libertad contra la opresión – se puede decir que hay un acercamiento entre ambos, pues ambos entienden que la Constitución, para ser efectiva, debe ser aceptada por quienes la fundaron.
Palabras clave: Constitución; Hegel; Lassalle; volksgeist; factores de potencia reales.
INTRODUÇÃO
Atualmente, todos os Estados democráticos de direito são fundados em uma Constituição que garante direitos fundamentais – em rol mais ou menos extenso, conforme o país – aos seus cidadãos.
Contudo, até chegar-se a essas Constituições, muitos conceitos acerca de seu objeto, seu alcance, sua criação e sua abrangência foram formulados, considerando vários aspectos. Neste trabalho, tratar-se-á do que é uma Constituição no entendimento de Hegel e Lassalle. O primeiro, filósofo alemão que influenciou e ainda influencia um sem-número de pensadores da Constituição; o segundo, um advogado ativista pelos direitos dos trabalhadores, também alemão, que é considerado pai do conceito sociológico de Constituição.
Inicialmente, se abordará o que Hegel considerou como Constituição – uma forma de estruturar o Estado a partir da união de estamentos –; em seguida, tratar-se-á da forma como Lassalle a viu – uma forma utilizada pelos fatores reais do poder para dominar a sociedade e apropriar-se da riqueza produzida coletivamente. Ao final, se apresentará pontos em que se entende haver divergências e aproximações entre ambos os autores.
HEGEL E A CONSTITUIÇÃO: NÃO UMA NORMA, MAS UMA ESTRUTURA
Conforme Bobbio, para Hegel o Estado não é mera junção de indivíduos, mas união para a consecução de fins comuns (Bobbio, 1989, p. 99). Esse Estado é estamental, ou seja, é formado por vários grupos, associações que visam a garantir direitos. Junto com a família, são as bases éticas do Estado. Para Hegel, quanto mais forte for a sociedade civil – o conjunto dos estamentos – menos chance haverá de um Estado totalitário.
A Constituição hegeliana está além da Constituição entendida como lei máxima de dado Estado constitucional. É, antes, a organização da sociedade dividida em classes (Bobbio, 1989, p. 102), que se segue à sociedade patriarcal/família. Essa sociedade dividida em classes – a sociedade civil –, organizada pela Constituição, se transforma em Estado. A Constituição, portanto, é um processo para a “constituição” do Estado a partir da sociedade dividida em classes/estamentos, o que Bobbio (id., p. 109) chama de “organização do todo”:
Portanto, a Constituição, como organização do todo, é a forma específica em que as várias partes que compõem um povo são chamadas a cooperar, ainda que desigualmente, para um único fim, que é o fim superior do Estado, diferente do fim dos indivíduos singulares (Bobbio,1989, p. 99).
Em sua ideia de Constituição, Hegel faz, ainda, uma crítica ao contratualismo, pois o filósofo alemão entende o Estado como uma reunião de grupos de indivíduos para um fim superior – o Estado estamental –, e não meramente indivíduos reunidos para defender seus direitos individuais. O centro da ideia hegeliana de Constituição, dessarte, é a luta pela UNIDADE, contra a DESUNIÃO (lembremos de que não existia Alemanha unificada na época de Hegel), mais do que uma preocupação contra o despotismo, algo mais próximo de Hobbes e Maquiavel do que de Locke e Rousseau (Bobbio, 1989, p. 109). Porque, como propõe o filósofo, se a sociedade civil for suficientemente unida para defender seus direitos, menor chance haverá de o Estado daí resultante ser um Estado despótico.
Dessa forma, Hegel propõe uma Constituição sob o aspecto ético-político, e não somente jurídico, embora esse último não esteja fora do suas preocupações, apenas se subordina àquele.
LASSALLE: A CONSTITUIÇÃO REAL E A FOLHA DE PAPEL
O clássico de Ferdinand Lassalle – Über die Verfassung – foi uma conferência proferida em 1863 para intelectuais e operário prussianos, a teor da nota explicativa à fl. vii da tradução da Lumen Juris (2001). Considerado um precursor da social-democracia alemã, foi contemporâneo de Marx, constando que estiveram juntos durante a Revolução Prussiana de 1848 (Lassalle, 2001, orelha da capa), sendo um combativo sindicalista e um propagandista ativo dos ideais democráticos.
Nessa conferência, proferida cerca de um ano antes de sua morte – em um duelo –, Lassalle externa sua convicção de que a Constituição é a personificação dos fatores reais do poder de um Estado. Se ela não contemplar os interesses desses “fatores reais do poder”, será mera folha de papel, sem qualquer valor. O redator do Prefácio faz um interessante comentário (Lassalle, 2001, p. xii):
O seu pressuposto jurídico, evidente confronto com o pensamento jusnaturalista e positivista, é de que as constituições (burguesas?) não promanam de idéias (sic) ou princípios que se sobrepõem ao próprio homem, mas dos sistemas que os homens criam para, entre si, se dominarem ou se apropriarem da riqueza socialmente produzida. (Grifamos)
Assim, se vê certa influência do contemporâneo Marx na concepção lassalliana de Constituição: um instrumento criado para a denominação do homem pelo homem. Mas não qualquer homem, somente aqueles que fazem parte do que Lassalle denomina de fatores reais do poder que regeriam uma sociedade: a monarquia, o exército, a aristocracia (os grandes senhores de terra, os junkers), a grande burguesia e os banqueiros da Prússia do século XIX. Esses seriam a
força ativa e eficaz que informa todas as leis e instituições jurídicas vigentes, determinando que não possam ser, em substância, a não ser tal como elas são. (Lassalle, 2001, p. 11. Grifos no original)
E essa seria a essência da Constituição: “a soma dos fatores reais do poder que regem uma nação” (Lassalle, 2001, p. 17. Grifo no original). No momento em que esses fatores sejam escritos, integralizados, numa folha de papel, adquirem expressão escrita, passando a ser, mais do que fatores reais do poder, “verdadeiro direito – instituições jurídicas. Quem atentar contra eles atenta contra a lei, e por conseguinte é punido” (id., ib.).
Mas essa é a verdadeira Constituição da nação?
Nem sempre, segundo Lassalle. Pode haver uma Constituição escrita, promulgada conforme um rito específico, mas que não reflete os interesses dos fatores reais do poder. A essa, o alemão chama, pejorativamente, de folha de papel: pouca validade e durabilidade teria, pois seria modificável e modificada a qualquer tempo, várias vezes. Essa não seria a real Constituição.
Porém, se a Constituição escrita corresponde àquela que tem suas raízes nos fatores do poder que regem o país, ela “é boa e duradoura” (Lassalle, 2001, p. 33. Grifo no original), deixa de ser mera folha de papel. No entanto, onde não houver correspondência da Constituição escrita com a real, será inevitável um conflito, no qual a primeira sucumbirá à segunda, “a das verdadeiras forças vitais do país” (id. ib.).
Assim, o que se denota do conceito de Constituição de Lassalle é seu centro na luta pela liberdade contra o despotismo (visão rousseauniana e lockiana, no dizer de Bobbio, p. 109), especialmente se considerado que o alemão foi um defensor ferrenho do sufrágio universal, eliminado na Constituição prussiana de 1850. Esse era o cenário prussiano no meio do século XIX, antes da ascensão de Bismarck, no qual o movimento operário e o pensamento socialista começavam a se delinear.
A contribuição de Lassalle foi estabelecer o que se pode dizer um conceito sociológico e ideológico de Constituição, mais do que um conceito jurídico, sendo considerado pai dos conceitos sociológico de Constituição e de oposição entre Constituição real e Constituição jurídica, muito importantes na Teoria da Constituição.
(DES)ENCONTROS DO FILÓSOFO COM O DOUTRINADOR
Conforme já adiantado nos itens precedentes, o centro das preocupações de ambos os autores com a Constituição são diversos. Para Hegel, essa seria o fruto final da luta pela união contra a desunião da nação; para Lassalle, seria um instrumento – se bem utilizado – de luta da liberdade contra o despotismo.
Outro desencontro está no que é, realmente, a Constituição para ambos os pensadores.
Hegel a considera anterior e pré-existente ao Estado e à Constituição instrumento jurídico. É a própria criadora do Estado, a partir da união dos estamentos em busca de um fim comum, um instrumento ético-político.
Lassalle, por sua vez, apresenta dois conceitos de Constituição: um, uma mera folha de papel, sem qualquer ligação com a realidade; outro, a constituição real, calcada nas relações de poder de uma sociedade, um instrumento para a dominação e apropriação.
No entanto, há algumas semelhanças entre as concepções dos dois alemães. Em Hegel, a Constituição só existe se for aceita e, para ser aceita, deve expressar o volksgeist, o espírito do povo (Bobbio, 1989, p. 105); em Lassalle, ela existe, é eficaz, se estiver conforme aos fatores reais do poder. Ou seja: para ambos, a eficácia da Constituição carece de aceitação e conformidade com um fator ético-político (Hegel) ou político-ideológico (Lassalle).
Contudo, é interessante observar um detalhe. Embora Lassalle coloque específica e enfaticamente o monarca, o exército, a aristocracia, os grandes industriais e os banqueiros entre os fatores reais do poder, também refere, quase acanhadamente, que
dentro de certos limites, também a consciência coletiva e a cultura geral da nação são partículas, e não pequenas, da Constituição. (Lassalle, 2001, p. 16. Itálico no original, negrito nosso)
E Aurélio Wander Bastos, no Prefácio, chama a atenção para isso (Lassalle, 2001, p. xv): na opinião de Lassalle, a consciência coletiva e a cultura geral da nação seriam “o fundamento preliminar da ordem jurídica”, embora acreditasse que esses fatores sucumbiriam aos “efetivos fatores reais”. E nisso entende-se que Lassalle se aproximaria do volksgeist hegeliano.
Sinale-se, ainda, que Konrad Hesse criticou o conceito lassalliano sob o argumento de que esse considera a Constituição apenas como justificadora das relações do poder dominante numa sociedade. Segundo o jurista alemão, ambas as Constituições – a real e a jurídica (a folha de papel) –, estão em relação de coordenação, condicionando-se mutuamente, sem depender uma da outra, a jurídica tendo significado próprio (Hesse, 1991, p. 15). Crítica semelhante faz Bastos no Prefácio da obra analisada (Lassalle, 2001, p. xviii), ao comentar que Lassalle “fecha as comportas de seu sistema e fica preso a um círculo vicioso sem qualquer possibilidade de provocar modificações ou rupturas na ordem estabelecida” ao insistir que “o problema constitucional é um problema exclusivamente político, que deve ser resolvido politicamente”.
Assim, como se vê, há algum consenso e algum dissenso entre os dois pensadores alemães na sua concepção de Constituição, mas parece correto inferir que Lassalle foi influenciado, em certa medida, por Hegel – como, de resto, Marx e outros pensadores de sua geração –, especialmente quando diz que a Constituição deve ser aceita por quem lhe dá a base – o volksgeist, de Hegel, os fatores reais do poder, para Lassalle – para ser duradoura e ter eficácia.
REFERÊNCIAS
BOBBIO, Norberto. A Constituição em Hegel. In: BOBBIO, Norberto. Estudos Sobre Hegel. Rio: Brasiliense, 1989. Col. Leituras Afins. P. 95-110.
HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: SAFe, 1991. Tradução de Die normative Kraft der Verfassung, por Gilmar Ferreira Mendes.
LASSALLE, Ferdinand. A Essência da Constituição. 6. ed. Rio: Lumen Juris, 2001. Baseada na tradução de Walter Stönner de Über die Verfassung (1933). Prefácio de Aurélio Wander Bastos.
[*] Jornalista pela FAMECOS/PUCRS; Bel. em Ciências Jurídicas e Sociais pela UFRGS; Especialista em Gestão Pública e Controle Externo pela ESGC Francisco Juruena/TCE-RS; Especialista em Direito Público pelas Faculdades IDC; Mestrando do PPG-DIR/PUCRS; Advogado OAB/RS nº 127.591; Auditor de Controle Externo do TCE/RS (aposentado). hulsendeger@gmail.com.