MULHERES E CIÊNCIA[1]
Fique assegurada, cara amiga, que muitas ciências e artes grandes e dignas de nota foram descobertas por meio do entendimento e sutileza das mulheres, tanto na especulação cognitiva, demonstrada em escritos, como nas artes, manifestadas em obras de trabalho manual.
Christine de Pizan
Margarete Hülsendeger
As universidades, durante muito tempo, não foram boas instituições para as mulheres. Desde a sua fundação no século XII até o final do século XIX e, em alguns casos, mesmo no início do século XX, as mulheres não tinham permissão de frequentá-las. Pode-se dizer que ao longo desses séculos apenas umas poucas mulheres conseguiram estudar e ensinar em universidades. Um dos casos mais conhecidos é o da italiana Laura Bassi (1711-1788) que se tornou a segunda mulher – depois da veneziana Elena Cornaro Piscopia (1646-1684) –, na Europa, a receber um grau universitário pela Universidade de Bolonha. No entanto, mesmo que algumas historiadoras – Paula Findlen é uma delas – defendam que ela se tornou “um símbolo da regeneração científica e cultural” o fato é que seu acesso a Universidade foi, durante anos, restrito a dar palestras em sua própria casa. Apenas dois anos antes de sua morte é que ela pode, finalmente, frequentar e ensinar em uma sala de aula dentro da instituição.
A exclusão das mulheres do meio acadêmico tornou-se ainda pior quando, ao lado das universidades, surgiram as academias científicas. A Royal Society de Londres (1660) só admitiu mulheres a partir de 1945; a Académie Royale des Sciences de Paris (1666) recusou não só a premiada matemática Sophie Germain (1776-1831), como a Prêmio Nobel Marie Curie (1867-1934). Seguindo o mesmo modus operandi, a Societas Regia Scientiarum (1710), em Berlim, vetou a astrônoma Maria Winkelman (1670-1720) mesmo que ela já trabalhasse no observatório da academia, primeiro com seu marido e depois com o filho. Como resultado, o número de mulheres que, ao longo de diferentes épocas e lugares, foram sistematicamente excluídas do meio científico e acadêmico é tão grande que seria preciso mais tempo e espaço para identificá-las. Um cenário que nos permite dizer que a ciência moderna foi um produto de centenas de anos de discriminação das mulheres.
Com a passagem do tempo, porém, muitas instituições ganharam, e ainda ganham, respeitabilidade porque passaram a exibir umas poucas mulheres destacadas, ao mesmo tempo assegurando que o fundamental não mudasse. Esse foi o caso da Universidade de Bolonha: ao manter Laura Bassi em seus quadros, podia gabar-se de ter a mulher mais erudita da Europa, mesmo mantendo-a afastada da sala de aula. Por isso, seria ingênuo esperar que, de uma hora para outra, as mulheres tenham sucesso em um projeto que, em sua base, foi estruturado para excluí-las. O movimento de trazer as mulheres para a ciência exigiu, e continuará exigindo, profundas mudanças estruturais na cultura, nos métodos e no conteúdo da ciência. Mudanças a demandar a análise de certos aspectos da cultura científica que ajudem a esmiuçar a dinâmica do gênero no interior da ciência.
Compreender o choque histórico entre culturas discordantes (ciência versus feminilidade) é, portanto, crucial para entender o mal-estar que muitas mulheres ainda sentem no mundo da ciência profissional. Um mal-estar que se reflete nos números apresentados por agências nacionais e internacionais. Um relatório da Elsevier[2], divulgado em 2020, indica que apesar da participação feminina nas ciências ter aumentado, a “desigualdade permanece quando o assunto são publicações, citações, bolsas concedidas e colaborações”. Já uma pesquisa do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira[3] demonstrou que quase 59% dos estudantes universitários do país são mulheres; porém, quando o recorte da pesquisa foca em cursos voltados para as ciências naturais, o número de mulheres matriculadas cai para 41%. Esses dados apenas corroboram o que já se sabe, mesmo estando presentes como maioria no ambiente de pesquisa, as mulheres ainda continuam sendo vistas nas ciências como algo incomum.
Muitos dos problemas que as mulheres enfrentam têm como causa uma série de fatores, a maioria deles relacionados às práticas dominantes e lugares de poder em uma sociedade androcêntrica: responsabilidades domésticas versus profissionais e/ou relógio da carreira versus relógio biológico. Assim, enquanto para os homens ainda vale o “mito do progresso inevitável”, quando se trata das mulheres a história o descarta completamente. Para elas, a marcha do progresso foi substituída por avanços e recuos que mudam conforme as condições sociais e os pontos de vista. Assim, somente quando houver uma compreensão mais efetiva dos processos de mudança culturais é que será possível intensificar os esforços de abrir a ciência às mulheres. Essa melhora no entendimento crítico do gênero ajudará a esclarecer como a discriminação baseada no sexo funciona, não só na ciência, mas na sociedade como um todo.
[1] As ideias discutidas neste texto foram baseadas na obra O feminismo mudou a ciência?, de Londa Schiebinger (Edusc, 2001).
[2] Elsevier é uma empresa editorial holandesa especializada em conteúdo científico, técnico e médico. É uma das seis empresas que domina a publicação científica no mundo inteiro (https://www.elsevier.com/pt-br).
[3] Disponível em: https://www.blogdoead.com.br/tag/mercado-de-trabalho/participacao-feminina-na-ciencia#b. Acesso: 23 jun 2023.
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