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E SE?

E SE?

Para uma sociedade baseada na exploração, não há ameaça maior do que não ter mais ninguém para oprimir.

N.K. Jemisin

Margarete Hülsendeger

E se as máquinas evoluíssem a ponto de escravizar a humanidade? E se uma raça alienígena chegasse ao nosso planeta e, em vez de nos exterminar, nos tornasse dependentes deles? E se um vírus, artificialmente fabricado, escapasse dos laboratórios e infectasse os seres humanos transformando-os em zumbis? E se um dia a Lua escapasse da sua órbita? E se um médico resolvesse criar uma criatura a partir das partes de cadáveres?

Essas perguntas, em um primeiro momento, podem até parecer estranhas e, para alguns, um pouco absurdas; no entanto, todas têm como base situações, se não reais, pelo menos possíveis. E por serem possíveis são um campo fértil para escritores e escritoras de um gênero literário chamado “ficção especulativa”.

Para bem da verdade, essa denominação serve para reunir um conjunto de diferentes tipos de ficção, cada qual com suas próprias características e especificidades. É, como li em um artigo, uma espécie de “guarda-chuva”[1] sob o qual poderemos encontrar histórias que envolvem robôs, fadas, fantasmas, zumbis, extraterrestres, super-heróis, sociedades distópicas e utópicas. Não há, porém, um consenso sobre o que esse gênero realmente seria ou que tipo de obras poderiam receber essa denominação. Margaret Atwood, autora do Conto da aia, considera as histórias “sem marcianos” como a verdadeira ficção especulativa, restringindo o termo a tudo aquilo que “realmente poderia acontecer”. Polêmicas à parte, hoje procura-se dar à expressão um sentido mais neutro, com seu significado dependendo de quem o utiliza e do contexto no qual é usado.

Outra questão interessante é que durante muito tempo a ficção especulativa era um território predominantemente masculino. Escritores como Isaac Asimov, Arthur Clark, Philip K. Dick eram nomes recorrentes quando se tratava de ganhar os prêmios. Como resultado, escrever sobre o que a ciência e a tecnologia poderiam ocasionar à sociedade ou como o homem enfrentaria os desafios das viagens espaciais eram temas dos quais as mulheres estavam excluídas. Repetia-se nessas premiações a ideia de que o sexo feminino não tinha interesse em especular sobre a ciência ou o futuro da humanidade. Esse “clube do Bolinha”, no entanto, tinha seus dias contados.

Pioneiras como Ursula Kroeber Le Guin (1929-2018) e Octavia Butler (1947-2006) conseguiram romper esse cerco masculino e conquistar o merecido reconhecimento. Le Guin, por exemplo, ganhou oito prêmios Hugo e seis prêmios Nebula[2], enquanto Butler recebeu três Hugo e dois Nebula. Em suas obras, as duas autoras abordam temas importantes como a exploração de minorias, a transição à vida adulta, a determinação de um indivíduo explorado para fazer mudanças críticas, sistemas políticos e sociais alternativos e, no caso de Butler, discutir sobre a existência de comunidades mistas onde mulheres pretas são alçadas à categoria de protagonistas. A tecnologia – robôs, naves espaciais, armas de raios – não está ausente, mas não é o centro da atenção das duas escritoras. Na realidade, o foco das duas é o ser humano e sua forma de adaptar-se a situações extremas e inusitadas.

Felizmente, a presença feminina na ficção especulativa não se encerrou com a morte de Le Guin e de Butler. Ao contrário. Se procurarmos os vencedores dos prêmios Nebula e Hugo nos últimos anos vamos observar outras escritoras recebendo essas honrarias. É o caso da afro-americana N. K. Jemisin, que recebeu o Hugo três anos seguidos por sua trilogia A terra partida, tornando-se a primeira pessoa a receber essa premiação por três anos consecutivos.

A terra partida – composta pelos livros A quinta estação (2016), O portão do obelisco (2017) e O céu de pedra (2018) – especula sobre a possibilidade de a Lua (não necessariamente a nossa Lua) ter sido arrancada da sua órbita. Nesse cenário pós-apocalíptico, ela descreve não apenas os fenômenos cataclísmicos – terremotos, maremotos, erupções vulcânicas, secas, inundações – que começaram a atingir a terra, mas, em especial, como os seres humanos precisaram se ajustar para sobreviver a esses eventos. Seguindo a tradição de Octavia Butler, o protagonismo feminino é evidente, assim como o fato de existir uma variedade de comunidades divididas em castas, cada qual responsável por um aspecto da vida em sociedade. A partir do ponto de vista da personagem principal, uma jovem preta, pertencente a uma casta capaz de conter os movimentos da terra, é possível seguir, além da sua trajetória pessoal, os problemas que homens e mulheres precisam confrontar em situações tão adversas.

Margarete Hülsendeger – Possui graduação em Licenciatura Plena em Física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1985), Mestrado em Educação em Ciências e Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002-2004), Mestrado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2014-2015) e Doutorado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2016-2020). Foi professora titular na disciplina de Física em escolas de ensino particular. É escritora, com textos publicados em revistas e sites literários, capítulos de livros, publicando, em 2011, pela EDIPUCRS, obra intitulada “E Todavia se Move” e, pela mesma editora, em 2014, a obra “Um diálogo improvável: homens e mulheres que fizeram história”.

No entanto, da mesma forma que Le Guin e Butler, Jemisin não se limita a narrar as aventuras de sua heroína. No processo dessa verdadeira “jornada do herói” ela explora temas complexos como o preconceito, o racismo e os conflitos culturais e sociais decorrentes. Do mesmo modo, procura demonstrar o quanto a cooperação entre diferentes segmentos de uma comunidade pode ser determinante para que dificuldades e obstáculos, à primeira vista insuperáveis, sejam superados. Em um ambiente inóspito, de uma terra literalmente partida, a solidariedade, a colaboração e a empatia são o único caminho capaz de derrotar a intolerância e, assim, conseguir sobreviver.

A ficção criada por Jemisin, do mesmo modo que a de Le Guin e Butler, desafia o leitor de muitas maneiras, sobretudo porque rompe com aquilo que costumamos chamar de “normal”. Essa ruptura tira o leitor da sua zona de conforto, muitas vezes, de maneira chocante, pois alerta para possíveis perigos que corrompem nosso mundo sem nem mesmo percebermos. Portanto, mesmo que autores e críticos não tenham ainda se decidido por uma denominação definitiva para esse tipo de ficção – se especulativa ou outra “coisa” –, o preconceito não pode macular esse gênero que abarca tantos estilos e conteúdos. Como disse Ursula Le Guin, as “pessoas que negam a existência de dragões em geral são consumidas por eles. Em seu interior”.


[1] Disponível em https://medium.com/escotilha-ns/o-que-e-ficcao-especulativa-bc8915c3ac3b. Acesso em 24 maio 2023.

[2] O Prêmio Nebula é concedido anualmente pelo Science Fiction and Fantasy Writers of America (SFWA), para os melhores trabalhos de ficção científica/fantasia publicados nos Estados Unidos durante os dois anos precedentes. O Prêmio Hugo é entregue anualmente para os melhores trabalhos e realizações de fantasia ou ficção científica do ano anterior. O prêmio é em homenagem a Hugo Gernsback, o fundador da pioneira revista de ficção científica Amazing Stories, e já foi oficialmente conhecido como Science Fiction Achievement Awards até 1992. Fonte: Wikipédia.

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