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QUANDO CAIM NÃO MATOU ABEL

QUANDO CAIM NÃO MATOU ABEL

Nas famílias, desiste-se muito das palavras para evitar exílios e, assim, nascem desertos.

Carla Madeira

Margarete Hülsendeger

Quando se trata de histórias repletas de reviravoltas e muita violência não há como a Bíblia, ou melhor, o Velho Testamento. Lá vamos encontrar mulheres sendo amaldiçoadas só porque demonstraram curiosidade ou sede de conhecimento, reis enviando generais para a frente de batalha para poderem ficar com suas esposas, governantes idosos com predileção por meninas e, é claro, brigas entre irmãos.

Esse último tema aparece em duas histórias muito conhecidas: a de Caim e Abel e a de Esaú e Jacó. As duas falam de sentimentos próprios do ser humano, mas nem por isso menos condenáveis: inveja, ressentimento, ciúme e orgulho. Nos dois casos temos irmãos disputando a primazia do amor e se perdendo na hora de conquistá-lo. Caim matou Abel porque se ressentiu de Deus quando Ele demonstrou preferência pelo irmão. Esaú, ao perder para Jacó seu direito de progenitura, desencadeia um confronto que separará a família. Nas duas histórias estão em jogo ideias e valores que pretendem definir o certo e o errado, o justo e o injusto, servindo de modelo para comportamentos considerados vergonhosos.

Acredito que, por se tratarem de histórias nas quais o conflito tem origem em necessidades e desejos muito humanos, diversos escritores as utilizaram como fonte de inspiração. Seguindo uma ordem cronológica, é possível lembrar de três obras que se aproveitaram dessas fábulas: Esaú e Jacó (1904), de Machado de Assis, Caim (2009), de José Saramago e Véspera (2021), de Carla Madeira.

Esaú e Jacó é o penúltimo livro escrito por Machado de Assis antes morrer e depois do sucesso que representou a publicação de Dom Casmurro (1899). Apesar do título da obra ser uma referência direta à narrativa bíblica, os protagonistas chamam-se Pedro e Paulo, dois irmãos gêmeos que, apesar de terem a mesma aparência física são opostos em tudo. No entanto, mesmo tendo concepções de mundo diferentes, eles acabam se apaixonando pela mesma mulher. A indecisão da jovem (Flora) sobre quem escolher emula muitas das disputas que estavam ocorrendo fora das páginas do romance, entre elas a transição do país de monarquia para república. Pedro é monarquista, enquanto Paulo é republicano; mas será que eles, assim como essas duas formas de governo, são realmente tão diferentes? Essa incerteza, ou ambiguidade, será a marca do romance, assim como sempre foi a marca de Machado.

Caim também é um dos últimos livros de José Saramago, falecido em 2010. Nele o autor português faz uma releitura do mito de Caim e Abel, mas com foco no vilão da história. De maneira divertida e irreverente, Saramago transforma Caim em um errante, não do espaço, mas do tempo. Como resultado, ele passa a viajar pelo passado e pelo futuro tornando-se testemunha, e até partícipe, de outras histórias bíblicas conhecidas. A crítica mordaz está presente ao longo de toda a obra, já que Caim questiona as decisões do Criador[1], a começar pela predição por Abel. Ateu convicto, Saramago reinterpreta a história de acordo com as suas convicções e exercita a liberdade de expressão apontando Deus como o autor intelectual do crime, ao desprezar o sacrifício que Caim havia oferecido.

Véspera, segundo livro de Carla Madeira, também reinterpreta a lenda dos irmãos do Velho Testamento. Na verdade, ela mistura as histórias de Esaú e Jacó e de Caim e Abel e aproveita para homenagear Machado de Assis, pois originalmente os nomes dos irmãos são Pedro e Paulo, clara referência ao romance de Machado. O conflito começa quando o pai, em um momento de bebedeira, resolve registrar os filhos com os nomes de Caim e Abel para desespero da mãe, uma mulher amargurada, mas extremamente religiosa. Assim, até os dois entrarem no colégio, a mãe, Custódia, nega-se a chamar um dos filhos pelo nome registrado, optando por chamá-los de Abel e Abelzinho. É a entrada na escola que marca a diferença entre os irmãos; uma diferença que não está na aparência, mas no espírito, tornando-se a responsável por romper a ligação que antes os unia. Para marcar essa ruptura, aquele que durante tanto tempo não teve um nome próprio encontra sua identidade, enquanto o outro a perde. Conforme a história se desenvolve, essa desconexão apenas se intensifica até o final inesperado.

Como escrevi no início deste texto, o que não falta nas histórias bíblicas é conflito e reviravoltas. Algumas sangrentas, outras nem tanto. No caso dos irmãos, o sangue até que é pouco, mas as possíveis interpretações, ou leituras, são infinitas. Aqui apresentei apenas três, mas, com certeza, não são as únicas. De qualquer forma, o importante é a capacidade de se extrair de velhas histórias novos significados capazes de mostrar a essência do que é o ser humano em um mundo, muitas vezes, desumano.

Margarete Hülsendeger – Possui graduação em Licenciatura Plena em Física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1985), Mestrado em Educação em Ciências e Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002-2004), Mestrado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2014-2015) e Doutorado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2016-2020). Foi professora titular na disciplina de Física em escolas de ensino particular. É escritora, com textos publicados em revistas e sites literários, capítulos de livros, publicando, em 2011, pela EDIPUCRS, obra intitulada “E Todavia se Move” e, pela mesma editora, em 2014, a obra “Um diálogo improvável: homens e mulheres que fizeram história”.

[1] Saramago, ao contrário de mim, sempre que mencionava Deus o fazia em letra minúscula (deus).

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