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OS DIFERENTES ROSTOS DO RACISMO

O mundo social, com toda a sua carga de ocultação e distorção de sentido, não começa com o nosso nascimento.

Jessé Souza

Por Margarete Hülsendeger

O sociólogo, advogado, professor e pesquisador Jessé Souza é conhecido por suas fortes opiniões sobre a realidade brasileira. Em seus muitos livros ele aborda, entre vários temas, questões sobre a desigualdade social e, por consequência, a divisão de classes em um país em que, segundo ele, a população negra continua sendo tratada como uma “ralé de novos escravos”. Nessas obras ele dialoga com diferentes pensadores, no qual se destaca o sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002) de quem toma emprestado o conceito de habitus[1].

No livro Como o racismo criou o Brasil[2] Jessé defende a tese de que no Brasil, assim como no resto mundo, as tentativas de explicar o racismo se reduzem a apenas comprovar que ele existe. Como resultado, o porquê do racismo acaba se tornando um grande mistério, dando margem a todo tipo de confusão e mal-entendidos. Logo, saber apenas que o racismo existe, sem procurar compreendê-lo, não permite que se entenda o que ele é, como funciona e, em especial, como afeta suas vítimas. Para o sociólogo, é “fundamental discutir a questão da classe social quando se fala em opressão social”, caso contrário será impossível apreender o modo como qualquer tipo de opressão realmente atua.

Por essas razões, Jessé convida o leitor a “reconstruir e compreender as formas históricas de moralidade”. Em outras palavras, como as “concepções de justiça inarticuladas e pré-reflexivas” presentes em um contexto social motivam nosso comportamento social e político? Ou quais conteúdos morais são tornados invisíveis e não articulados para facilitar a exploração, o abuso e os diferentes tipos de racismo?

Para responder a essas questões o autor transita pelo judaísmo antigo, pelo nascimento do cristianismo e pela revolução protestante. Assim, se o judaísmo deixa para trás a magia e inventa uma “divindade pessoal” que estabelece regras (mandamentos) de bom comportamento, o cristianismo, além de herdar a religiosidade ética judaica, absorve da filosofia grega seu caminho de salvação característico. Desse modo, o mundo cristão passa a viver uma luta constante entre as paixões insaciáveis do corpo (consideradas inferiores) e o desejo transcendente de garantir a vida eterna (alcançável apenas por um espírito nobre e elevado). No entanto, quando a revolução protestante acontece, surge um novo tipo de ética religiosa. Agora o trabalho transforma-se em “chamado divino” e passa a ser considerado sagrado, tornando-se “o novo e verdadeiro caminho da salvação”. Para Jessé, foi a revolução protestante a verdadeira revolução da consciência da modernidade, pois, como todos podem trabalhar, se estabelece um equilíbrio entre uma autoestima saudável e o reconhecimento social.

A partir dessas considerações históricas Jessé defende que a “história do Ocidente pode ser percebida como um grande processo de aprendizado moral”. Um aprendizado que não se restringe apenas à evolução religiosa, mas à necessidade de uma legitimação social. A própria ideia de cidadania está ligada ao conceito de soberania popular, ou seja, “à possibilidade de participar com igual direito da escolha racional e autônoma das regras da vida social”. Uma escolha que, ao proporcionar autorrespeito e autoconfiança, permite que qualquer pessoa, sem importar seu status, seja considerada “capaz de julgamento autônomo em igualdade de condições”. Todos aqueles aos quais esses direitos não são assegurados são automaticamente excluídos e marginalizados.

O raciocínio que o autor constrói ao longo da obra tem o objetivo de demonstrar que o racismo, em suas diferentes facetas, nada mais é do que uma forma de negar o reconhecimento social a indivíduos e grupos sociais. Da mesma forma, Jessé deixa claro que os interesses econômicos sempre vêm representados por demandas morais, na maior parte das vezes, mantidas ocultas e não tematizadas, que parecem óbvias para nossos contemporâneos. Assim, culturas consideradas “superiores” são as identificadas com o espírito (Europa, Estados Unidos), enquanto as “inferiores” estão mais conectadas ao corpo e aos afetos (África e América Latina). Por isso, para o autor, todo o tipo de preconceito e racismo implica um processo de “animalização” dos indivíduos, no qual o corpo tende a prevalecer sobre o espírito. Essas ideias acabam se tornando senso comum, a ponto de nenhum americano ou europeu ocidental considerar-se inferior a um latino-americano ou a um africano. Há, como explica Jessé, uma “gramática da moralidade” que está presente em qualquer lugar no mundo. Uma gramática que marginaliza muitos e privilegia poucos.

Em Como o racismo criou o Brasil, o autor explora os meandros do que ele denomina “racismo multidimensional”, isto é, “toda a forma de amesquinhar, humilhar e desprezar o oprimido convencendo-o de sua própria inferioridade”. Logo, o racismo não tem a ver apenas com a cor da pele, mas também com a classe social na qual o indivíduo nasceu e se formou. Por isso, Jessé prega a necessidade de compreendermos como esse racismo se constrói, pois só assim seremos capazes de perceber as máscaras que ele assume.

Como o racismo criou o Brasil não é uma leitura fácil, que se possa fazer na beira da praia em um dia de verão. Ela exige atenção, principalmente pela quantidade de informações e conceitos que o autor traz para avaliação do leitor. Jessé Souza preocupa-se em detalhar essas informações estabelecendo, a todo momento, conexões com a realidade brasileira. Contudo, apesar dessa dificuldade, trata-se de uma leitura necessária para quem deseja entender como esse processo de “amesquinhar, humilhar e desprezar o oprimido” vem se desenrolando ao longo dos séculos, na maior parte do tempo, sem conseguirmos avançar na sua eliminação. Por isso, segundo Jessé Souza, é preciso compreendermos que o racismo racial sempre está ligado a outros tipos de racismos (de gênero, de classe social, de etnia), racismos de caráter “multidimensional” que comandam todo o processo de dominação social e política no Brasil e no mundo.


[1] Bourdieu afirmava que com o habitus queria chamar atenção às capacidades que temos para agir em sociedade. Essas capacidades não seriam produtos da “natureza humana” e nem de uma “razão universal”, e sim consequências da própria inteligência e vivência dos indivíduos.

Fonte: https://cafecomsociologia.com/habitus/. Acesso: 19 abr. 2023.

[2] Souza, Jessé. Como o racismo criou o Brasil. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2021 (Edição Kindle).

Margarete Hülsendeger – Possui graduação em Licenciatura Plena em Física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1985), Mestrado em Educação em Ciências e Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002-2004), Mestrado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2014-2015) e Doutorado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2016-2020). Foi professora titular na disciplina de Física em escolas de ensino particular. É escritora, com textos publicados em revistas e sites literários, capítulos de livros, publicando, em 2011, pela EDIPUCRS, obra intitulada “E Todavia se Move” e, pela mesma editora, em 2014, a obra “Um diálogo improvável: homens e mulheres que fizeram história”.

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