Flávio de Leão Bastos Pereira
Professor da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Especialista em Genocídios e Direitos Humanos
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O próximo dia 19 de abril marca mais um diados povos indígenas, o primeiro sob a nova denominação após promulgação da Lei 14.402, de 2022 e que revogou o Decreto Decreto-Lei 5.540, de 1943.
Referida alteração propõe de imediato uma reflexão ainda pouco exercida pela maioria das pessoas não-indígenas: a necessidade da “decolonização”. Afinal, por qual razão se dá a mencionada alteração?
O mundo vem passando por profundas transformações civilizacionais. Assim, não se admite mais a manutenção da invisibilização discriminatória que historicamente manteve minorias e maiorias vulnerabilizadas marginalizadas em relação à partilha dos benefícios e serviços sociais e econômicos, objetivo e razão de ser do Estado.
O processo de colonização que conduziu milhões de seres-humanos das Américas, África, Ásia e Oceania à escravização, ao extermínio e, posteriormente à abolição do sistema escravagista (o Brasil é o país que mais escravizou na história e a última nação das Américas a abolir o odioso regime) legou dinâmicas comportamentais e linguísticas, conscientes ou não, que ainda perpetuam a mentalidade negacionista de uma sociedade brasileira com sua forma social escravista, expressão utilizada por Muniz Sodré em sua recente obra O Fascismo da Cor — Uma Radiografia do Racismo Nacional (Vozes, 2023, p.225).
Daí, porque, decolonizar é preciso, bem como a compreensão de que palavras podem projetar engrenagens que colaboram para o processo racializado de invisibilização. São mais do que palavras, uma vez que ultrapassam fronteiras para além da mera gramática; reproduzem comportamentos por vezes discriminatórios, tal como buscou ensinar Ludwig Wittgenstein: as fronteiras da minha linguagem são as fronteiras do meu universo.
Não raramente somos questionados: por que a mudança para povos indígenas? Qual a distinção para o termo índio? O questionamento tem origem: a história dos povos indígenas do Brasil, milenar, passou a ser apagada após a invasão dos portugueses que, ao encontrar um território ocupado por mais de mil distintas nações e culturas, passaram a escravizar e a erradicar referidas nações, tanto do ponto de vista físico, quanto cultural. Índio, nada é; nada significa.
O termo “povos indígenas”, de antemão, sob o ponto de vista gramatical e teleológico, esclarece de imediato que não estamos nos referindo a uma entidade sem história, sem rosto, sem cosmologias; aponta ao mais desatento que são diversos os povos originários, com suas próprias culturas, crenças, cosmologias, línguas e modos de vida. Melhor seria que a sociedade brasileira se referisse a tais culturas por meio das designações corretas: Mebengokrê; Kinja; Pataxó; Kayowá, dentre outras.
Eis a importância de uma data que celebre os povos indígenas do Brasil. Ela leva à reflexão sobre a barbárie que, enquanto nação, ainda cometemos. Pensar nas barbáries acerca das quais somos todos responsáveis sob o ponto de vista histórico, traduz passo vital para nossa evolução. Como explicou Edgar Morin “pensar a barbárie é a ela resistir”.
Avanços importantes, embora ainda iniciais, podem ser celebrados.
A criação, pela primeira vez em nossa história, de um Ministério dos Povos Indígenas, liderado por Sonia Guajajara, importante liderança indígena, assim como também a FUNAI pela primeira vez também comandada pela ex-Deputada Federal Joenia Wapichana, ainda que conquistas atrasadas, ensejam esperança. Mas cabe o alerta: o tempo dirá se a institucionalização do reconhecimento dos povos indígenas não se tornará, como já ocorreu no passado, instrumentos cooptados para minimizar a histórica visão racista e anti-indigena do Estado brasileiro.
Exemplos críticos comprovam que não basta a mudança de governos para que o respeito à vida dos povos originários do Brasil se torne realidade.
A extrema violência e o genocídio cometido contra o povo Guarani-Kayowá no estado do Mato Grosso do Sul, que já enseja medidas apresentadas perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em Wasghington D.C. em vista da leniência das autoridades competentes para processar e punir mandantes e seus pistoleiros; além do flagrante crime de genocídio ao qual foi, uma vez mais, submetido o povo Yanomami, nos últimos quatro anos, nos quais o garimpo predatório foi estimulado nas terras tradicionais daquele povo, demonstram que a destruição das bases existenciais fundamentais dos povos indígenas do Brasil é politica de Estado, muitas vezes cometida por governos de distintas colorações ideológicas e políticas.
Sob o ponto de vista da saúde e da educação, nossos povos indígenas são simplesmente ignorados em suas culturas, ainda que o artigo 215, §1° da Constituição Federal de 1988 garanta a todo o povo brasileiro (incluídos os indígenas, evidentemente), a proteção a “todas as manifestações das culturas populares, indígenas e afrobrasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional”. Ora, sequer o ensino bilíngue e o acesso ao ensino superior são garantidos às crianças, aos jovens e à população adulta indígena.
Ainda sobre as crianças indígenas, o Mapa da Violência Contra os Povos Indígenas referente ao ano de 2021, anualmente publicado pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI), aponta a morte de 744 pequenos, naquele ano. A análise do referido mapeamento concernente aos anos anteriores não varia de modo relevante: 776 mortes, em 2020; 825, em 2019; 599, em 2015; 785, em 2014.
Portanto, a quantidade de mortes de crianças indígenas por doenças evitáveis manteve-se em patamares similares, entre 2014 e 2021, sem indicativos de redução.
Em relação ao ponto fundamental em torno do qual gravitam grande parte das violações dos direitos dos povos indígenas, isto é, a demarcação das terras indígenas, o contexto de violações sistemáticas a este direito humano fundamental garantido pela Constituição Federal de 1988 em seu artigo 231, além das normas internacionais vigentes também no Brasil, prossegue sem os avanços necessários.
Assim, o Supremo Tribunal Federal prossegue neste ano de 2023 o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1017365 e que decidirá sobre o estatuto jurídico-constitucional das relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena. A proposição da ideia de um marco temporal para garantir o direito dos povos indígenas às suas terras tradicionais, como sendo em 5 de outubro de 1988, é de tal modo inconstitucional que soa surpreendente que tenha chegado ao STF. Espera-se que seja rejeitada pela maioria da Corte.
O direito dos povos indígenas sobre suas terras tradicionais é anterior ao próprio estado brasileiro e representa condição inafastável para a própria existência destes povos e suas culturas. Os povos originários não detêm a terra tradicional; eles são a própria terraancestral.
Desde o encerramento dos trabalhos do grupo de transição para o novo governo, especialmente a partir dos pareceres do grupo dos povos indígenas, a expectativa passou a recair sobre a demarcação de, pelo menos, 14 terras indígenas sobre as quais os procedimentos administrativos demarcatórios já foram esgotados.
Finalmente, cumpre apontar que a devastação dos biomas brasileiros prossegue, mesmo após a assunção de um novo governo comprometido com a proteção do meio-ambiente, direito humano das atuais e futuras gerações. Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais demonstram que os desmatamentos atingiram 322 quilômetros quadrados de floresta em fevereiro de 2023, portanto, um crescimento de 62% em relação a 2022, o mais alto da série histórica iniciada em 2016, até então.
A invasão e destruição dos biomas têm por consequência imediata a supressão existencial dos povos indígenas que são, ademais, os maiores protetores das florestas. Investigação encetada pela organização MapBiomas a partir de imagens de satélites e por meio da inteligência artificial aponta que entre 1985 e 2020 as áreas mais preservadas do Brasil foram as terras indígenas, demarcadas ou não. Nesses territórios, o desmatamento e a perda de floresta foram de apenas 1,6% no período de 35 anos. Os povos indígenas lutam pela sobrevivência de toda a humanidade. Representam apenas 5% da população mundial, mas preservam 80% da biodiversidade, segundo as Nações Unidas.
Como se percebe, a despeito de alguns avanços, os desafios e os riscos para a continuidade da existência dos povos indígenas do Brasil prosseguem altos. Riscos tais que recaem sobre as bases existenciais de tais povos, ainda que se possa comemorar os dados iniciais do Censo realizado em 2022 e que aponta para o crescimento destes povos no Brasil, já que a coleta de dados do Censo Demográfico registrou 1.652.876 pessoas indígenas.
É preciso que o Brasil erradique, definitivamente, o racismo e o colonialismo que ainda mantêm as ideias de liberdade, de igualdade e de dignidade humana restritas à concepção que vem excluindo de sua abrangência os povos indígenas e as populações negras. Eis a importância do dia dos povos indígenas: discutir a barbárie para vislumbrar caminhos.