Não existe verdade inferior. E, se eu não relatar essa experiência até o fim, estarei contribuindo para obscurecer a realidade das mulheres e me acomodando ao lado da dominação masculina no mundo.
Annie Ernaux
Por Margarete Hülsendeger
Falar de aborto é, na maioria das vezes, abrir espaço para a polêmica. Em geral, na sua defesa, ou condenação, estão envolvidas convicções pessoais, além de argumentos éticos ou religiosos que diferem de uma pessoa para outra. No Brasil, o aborto é considerado um crime, com o Código Penal prevendo penas que variam de um a dez anos para quem o praticar. Na Europa, no entanto, a tendência é da legalização, no sentido de remover as barreiras legais e políticas que o criminalizam. É, claro, que existem exceções. A Polônia, por exemplo, tem uma legislação semelhante a brasileira permitindo o aborto apenas quando ameaça a vida ou a saúde da gestante, ou em casos de estupro e incesto.
Feministas, como bell hooks, vem na descriminalização do aborto um dos caminhos para a libertação sexual genuína de mulheres e homens. Para ela, as consequências de uma gravidez indesejada redundam em amargura, raiva e desencanto com uma situação de vida que não foi prevista. Nesse sentido, são as mulheres pobres as que mais sofrem porque, ao contrário do que acontece nas classes privilegiadas, elas não têm meios de fazer um aborto sem que suas vidas corram riscos. Por isso, os movimentos antiaborto se concentram com mais veemência nos abortos subsidiados pelo Estado, pois são baratos e, quando necessários, até gratuitos. Como resultado, diz hooks, “mulheres de todas as raças que têm privilégios de classe continuam a ter acesso a abortos seguros – continuam tendo o direito de escolher –, enquanto mulheres em desvantagem material sofrem”.
O drama dessas mulheres sem escolha está representado na narrativa O acontecimento, da escritora francesa, Prêmio Nobel de Literatura, Annie Ernaux. A obra trata do drama de uma jovem estudante que se vê diante de uma gravidez indesejada e tem de assumir, sozinha, a decisão de não a levar adiante. Como ocorre em outros relatos da autora, essa também é uma obra autobiográfica. Ernaux narra todos passos que a levaram a decidir-se pelo aborto quando tinha apenas 23 anos e “rasgou o atestado de gravidez”. Uma decisão difícil, pois, além de não poder contar com os pais, o aborto, na época, era ilegal na França.
A autora diz desejar, durante anos, escrever sobre esses meses de sua vida e que, ao ler qualquer relato de um aborto em um romance, se sentia arrebatada, “como se as palavras se transformassem instantaneamente em [uma] sensação violenta”. Desse modo, quando, finalmente, se decidiu, mergulhou ansiosa nas memórias daqueles dias. De acordo com ela, seu esforço seria no sentido de se aprofundar em cada imagem, até que pudesse ter a sensação física de “alcançá-la”, para que assim, sobre as palavras que surgissem, ela pudesse dizer “é isso”.
O momento da escrita, quase quarenta anos depois do ocorrido, é importante porque sobre ele não pesava mais nenhum impedimento, ou seja, ela poderia falar sem temer qualquer punição. Os pais que a condenariam estão mortos e a lei francesa já não persegue as mulheres que tomaram o mesmo caminho que ela. Com essa ideia em mente, Ernoux começa seu relato declarando que, no amor e no gozo, nunca se sentiu intrinsicamente diferente do corpo dos homens. Como muitas mulheres antes dela, não acreditava que aquilo poderia “pegar” no seu ventre. Esse pensamento mudou drasticamente quando o exame de gravidez confirmou o seu estado. Na época, conta Ernoux, sua primeira reação foi rasgar o papel com o resultado do teste e depois informar ao potencial pai que não queria o filho.
Tomada essa decisão, passamos a acompanhar o périplo da jovem estudante na busca de uma saída para o seu problema. Contar aos pais conservadores não era uma possibilidade, pois sabia qual a reação deles: condená-la a uma vida que ela não desejava. Como abortar era considerado um crime, nenhum médico estava disposto a se expor. Assim, conforme a ansiedade crescia, ela começou a pensar em formas de resolver o problema sozinha: “Grandes agulhas de um azul metálico. Eu não tinha saída. Decidira agir sozinha”.
Estranhamente, apesar de ver no espelho “a bunda e os seios esticarem os vestidos”, havia períodos nos quais ela esquecia que estava grávida. Como explica, “esse apagamento do futuro, que anestesia a mente da angústia da data-limite, faz com que as garotas deixem passar as semanas, depois os meses, até chegar a termo”. E assim teria acontecido com ela se, dez dias antes do Natal, uma amiga não lhe tivesse dado o endereço de uma mulher que uma vez havia cuidado do seu problema. A amiga, além do endereço, também lhe ofereceu o dinheiro necessário para pagar o procedimento, as duas coisas no mundo que ela mais precisava naquele momento.
A partir desse ponto, Ernaux descreve todos os passos que a levaram até a casa da mulher: a primeira visita, a data sendo marcada, o acerto do preço, quando começar a tomar penicilina para evitar uma possível infecção. Nos dias que antecederam o aborto, o medo abriu espaço em sua mente enquanto ela, abalada, repetia “é comigo que isso está acontecendo” e “eu não vou aguentar”. E, por fim, ela chega à imagem do quarto onde tudo aconteceu. Aqui o relato mescla a descrição do que a mulher está fazendo com o seu corpo, com seus próprios pensamentos e emoções: “Tenho a impressão de que aquela mulher em plena atividade entre minhas pernas, que introduz o espéculo, me faz nascer. Eu matei minha mãe em mim naquele momento”. Contudo, o sofrimento não termina nesse dia, será preciso uma nova visita, uma nova sonda para que, enfim, a tarefa da mulher terminasse.
O relato desses dias de dor e angústia são impactantes, mas Ernaux esforça-se, como ela mesma explica, em resistir ao lirismo da cólera ou da dor. Segundo ela, não queria fazer nesse texto o que não fez naquela época, gritar e chorar. Porém, é impossível não sentir as emoções que dominam essa jovem mulher em um momento tão delicado de sua vida. É impossível não se colocar em seu lugar, perguntando-nos o que faríamos se, como aconteceu com ela, não nos fossem dadas escolhas. É muito fácil apontar o dedo para uma mulher que tomou essa difícil decisão e rotulá-la de irresponsável, insensível ou qualquer outro termo mais forte. Mas, uma pergunta que a maioria dos moralistas de plantão evita fazer é: onde estava o homem? A resposta parece óbvia: não estava. Fingiu que nada daquilo era sua responsabilidade, como se para fazer um filho, e correr riscos por conta disso, não fosse preciso a concordância de duas pessoas.
O acontecimento é um livro forte, não só pelas imagens que Annie Ernaux descreve sem qualquer tipo de romantismo, mas, em especial, pelas emoções poderosas que ela desperta no leitor. É, como diz a autora, uma “experiência humana total, da vida e da morte, do tempo, da moral e do interdito, da lei, uma experiência vivida de um extremo a outro pelo corpo”. Uma experiência que, independentemente das razões, Ernaux sentia que precisava contar e nós, com certeza, precisávamos conhecer. Por que falar de aborto é falar sobre os direitos da mulher sobre seu corpo, é permitir que todas as mulheres tenham o poder de decidir quando querem ser mães sem colocar em risco sua saúde e, principalmente, suas vidas.
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