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As fraturas expostas das tragédias anunciadas

Por Anderson Kazuo Nakano (*)

As recorrentes tragédias humanas que ocorrem no Brasil e no mundo evidenciam as fraturas expostas das discrepâncias produzidas pelas profundas injustiças e desigualdades sociais, raciais, ambientais e espaciais acumuladas ao longo dos séculos da história brasileira e mundial. Em um país altamente urbanizado como o Brasil, onde 85% da população vivem em diferentes tipos de cidades, as tragédias humanas evidenciam as fraturas expostas das injustiças e desigualdades entre os bairros da classe dominante e os da classe trabalhadora, que se encontram, respectivamente, bem e mal providos de serviços, equipamentos e infraestruturas de uso coletivo e onde as condições de vida são menos e mais vulneráveis a diferentes tipos de riscos, perigos e ameaças.
 

A exemplo da tragédia da pandemia de covid-19, as decorrentes dos eventos extremos das mudanças climáticas destroem e matam mais nos bairros da classe trabalhadora do que nos bairros da classe dominante. Em praticamente todas as catástrofes, as injustiças e desigualdades urbanas destroem e matam mais quem já sofre com as inúmeras consequências da pobreza, do racismo, da precariedade urbana, das péssimas condições de moradia e das várias formas de opressão social. É preciso produzir dados das vítimas dessas tragédias, caracterizando-as segundo cor, raça, renda, condições de moradia, situação de trabalho, dentre outros marcadores raciais, sociais, urbanos e ocupacionais.
 

Evitar os desastres anunciados exige acabar com as injustiças e desigualdades urbanas cujos mecanismos garantem o acesso e a concentração de terras nas mãos dos(as) “donos(as) do poder” e impedem o acesso a essas terras por parte dos(as) trabalhadores(as) de baixa renda que não possuem recursos suficientes para comprá-las. É necessário formular e implementar política pública para produção e distribuição de terras urbanas seguras e com boas provisões de serviços, equipamentos e infraestruturas básicas.
 

Essas terras devem ser acessadas por agentes provedores(as) de habitação de interesse social destinada aos(às) trabalhadores(as) de baixa renda, principalmente os(as) agentes públicos(as) e os movimentos sociais que praticam a autogestão habitacional. Isso é fundamental para evitar que esses(as) trabalhadores(as) tenham que ir viver em assentamentos precários e informais onde conseguem adquirir terras urbanas precárias, inseguras, sob riscos geológicos e hidrológicos. Assim, evitam-se as ocorrências de novas calamidades anunciadas que acabam com vidas e patrimônios carreados por deslizamentos de encostas, corredeiras de lama, rolamentos de rochas, inundações, enchentes, enxurradas, dentre outras.
 

Na cidade de São Sebastião, local da mais recente tragédia brasileira no litoral norte paulista, é necessário que o planejamento e a gestão urbana, habitacional e ambiental se integrem a medidas preventivas, corretivas e emergenciais. É necessário colocar em prática uma política de terras que destine solos seguros e adequados para a provisão de habitações de boa qualidade para a classe trabalhadora de baixa renda. Para isso, é preciso definir áreas de expansão urbana com base em carta geotécnica atualizada e detalhada que indique as localizações desses solos, inclusive nas proximidades de loteamentos e condomínios de alto padrão implantados junto às praias e distantes das escarpas da Serra do Mar.
 

Esses solos seguros podem ser utilizados também para a realocação participativa de moradores(as) que vivem em áreas de risco muito alto. Os(As) moradores(as) que convivem com riscos que podem ser sanados com obras e intervenções devem ser envolvidos(as) na elaboração e implementação de projetos de melhorias urbanas, habitacionais e ambientais.
 

O governo da cidade de São Sebastião deve ter um plano de contingências com equipes de defesa civil, sistemas de alertas, formação cidadã, alojamentos provisórios, suprimentos de alimentos e remédios, dentre outras ações emergenciais necessárias ao salvamento de vidas. Tudo isso está previsto no sistema nacional de proteção e defesa civil, instituído pela lei federal n.º 12.608/2012. Esse sistema depende do sistema nacional de habitação de interesse social, instituído pela lei federal n.º 11.124/2005. Depende também do sistema de planejamento urbano e territorial cujos elementos estão previstos na lei federal n.º 10.257/2001.
 

Todos esses sistemas estão adormecidos no papel. É preciso despertá-los e colocá-los em prática em processos contínuos, que não se interrompam nos intervalos entre uma e outra tragédia anunciada.

(*) Anderson Kazuo Nakano é arquiteto urbanista, demógrafo e professor do Instituto das Cidades da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)

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