O racismo – seja o de classe ou de raça, de cultura ou de gênero – é sempre, em todos os casos, um processo de animalização, de reduzir o outro a corpo animalizado e, portanto, “inferior”.
Jessé Souza
Por Margarete Hülsendeger
Quando pensei que já tinha visto tudo, rapidamente percebi o quanto estava errada. Um quadro que, desde o final de 2022, vinha piorando atingiu o que seria o seu pior momento – ou isso acreditei – em 8 de janeiro de 2023. Nesta data, vimos estupefatos uma turba de fascistas fanáticos invadindo e depredando as sedes dos três poderes da República. Nesse dia, o caos se instalou em Brasília sob o olhar complacente das forças policiais. Lembro ter pensado que tínhamos atingido o fundo do poço, reproduzindo, quase que da mesma forma, o que já havia acontecido em Washington há dois anos.
No entanto, esses acontecimentos eram apenas a ponta do iceberg de horrores ainda maiores. Horrores encobertos pelo silêncio criminoso de governantes que deveriam zelar pelo bem estar e a segurança de seus cidadãos. Um silêncio que acobertava crimes hediondos perpetrados por grupos cujo objetivo sempre foi o lucro e o poder. Um silêncio que ocultava uma tentativa de genocídio com o único propósito de facilitar as queimadas indiscriminadas e os garimpos ilegais. A essa altura, o leitor já sabe ao que estou me referindo, a tragédia do Povo Yanomami[1].
Como se trata de uma tragédia anunciada, vou relembrar alguns eventos que nada mais são do que o prenúncio de um horror que, assim como aconteceu com os atos do dia 8 de janeiro, entrou em nossas casas a partir das imagens transmitidas pela TV e a internet.
No dia 25 de abril de 2021 uma menina yanomami, de apenas 12 anos, foi estuprada e morta por garimpeiros que exploram ilegalmente a região. O fato movimentou a mídia durante algum tempo, com algumas autoridades, artistas e influencers, exigindo que medidas fossem implementadas a fim de encontrar e punir os criminosos. Não é preciso dizer que nada foi descoberto pela Polícia Federal e o caso caiu no esquecimento.
Em novembro de 2021, o portal G1 publicou uma matéria intitulada “Terra Yanomami e o retrato do abandono: desnutrição, surto de malária e frascos de dipirona”[2], na qual relata o desamparo no qual estavam imersas as comunidades yanomamis, isoladas geograficamente no meio da selva amazônica. A notícia fala de fome, ausência de médicos e medicamentos básicos, de homens, mulheres e crianças morrendo devido à malária e à desnutrição. Quando, na época, o Ministério da Saúde foi questionado, atribuiu os problemas à “logística da Terra Yanomami”, transferindo a responsabilidade para “outros entes federados”, quando a legislação diz que a saúde indígena compete “exclusivamente à União”[3].
Último registro: também no portal G1, em abril de 2022[4], outra matéria foi publicada denunciando a violência dos garimpeiros. A notícia tinha relação com o relatório da Hutukara Associação Yanomami (HAY), intitulado “Yanomami sob ataque”. Nesse documento foram listados depoimentos de homens e mulheres yanomamis obrigados a conviver com agressões que iam desde o abuso sexual até ataques de garimpeiros armados contra as comunidades. Todos esses crimes foram expostos por esse relatório encaminhado ao Ministério Público Federal, que “pediu ao governo federal novas ações policiais na reserva”. De novo, preciso dizer que essas ações nunca ocorreram?
Todas as informações apresentadas nos parágrafos anteriores estão disponíveis na internet para quem quiser ler e se informar. Contudo, essa situação só foi amplamente divulgada quando o Presidente Lula, acompanhado de repórteres e cinegrafistas de diferentes meios, esteve nas aldeias yanomamis, em Roraima, e testemunhou o que havia sido feito, ou melhor não feito, com essas comunidades. As imagens são chocantes: crianças, homens e mulheres, jovens e idosos, doentes e subnutridos, sem acesso a qualquer tipo de assistência médica. As marcas da violência estão presentes em todas as partes, nas barrigas inchadas das crianças famintas e nos olhos assustados e desesperados dos adultos. Imagens que nos fizeram lembrar de outros lugares e épocas que acreditávamos, talvez ingenuamente, nunca presenciaríamos em nosso país.
Algumas pessoas não gostam de utilizar palavras fortes como “massacre” ou “genocídio”, mas basta procurar o significado dessas expressões no dicionário e olhar para as imagens que a TV e a internet colocaram à nossa disposição para entendermos que, sim, estamos diante de um massacre sistemático e calculado. E a pergunta que me tenho feito, desde que comecei a me informar sobre a horrenda realidade do povo Yanomami, é: onde estávamos, ou o que fazíamos, quando crianças morriam de fome, meninas eram estupradas e mortas e aldeias eram atacadas por bestas que se acreditam donos e senhores da terra onde pisam?
O silêncio que mencionei no início deste texto não é apenas o das autoridades coniventes com essas atrocidades, é também nosso. Nosso porque não nos levantamos contra semelhante situação e alguns até acreditam na mentira que os índios querem ser “civilizados” e por isso permitiram que suas terras fossem invadidas e exploradas. E aqui outra pergunta: que civilização é essa que permite tais barbaridades? Se ser civilizado significa compactuar com esses crimes, eu prefiro ser selvagem.
Agora, só nos resta acreditar que, enfim, algo será realmente feito. Nesse sentido, o presidente Lula, assim que tomou conhecimento da situação do povo Yanomami, decretou estado de emergência e enviou profissionais de saúde para atendê-lo. Dia 30 de janeiro ele também determinou que o tráfego aéreo e fluvial fosse cortado na região para dificultar a circulação dos garimpeiros. Da mesma forma, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, garantiu que o governo faria uma megaoperação para combater o garimpo ilegal.
Essas medidas serão suficientes? O dano feito às comunidades yanomamis poderá ser remediado?
Enquanto os garimpos ilegais estiverem agindo na região, sob o olhar tolerante das autoridades; enquanto se acreditar que índio gosta de celular e carro novo e por isso quer ser “civilizado”; enquanto o homem branco sentir, nem que seja uma pontinha de superioridade, nenhuma medida vai ser suficiente. No entanto, esse pensamento pessimista não deve impedir quaisquer movimentos no sentido de garantir a segurança e a dignidade, não só dos Yanomamis, como de todos os brasileiros e brasileiras que, sistematicamente, são silenciados e ignorados. Agora é importante ir além dos discursos. Agora é necessário, eu diria crucial, agir.
De qualquer forma, preciso dizer que minha vergonha é imensa. Tenho vergonha de viver em um país que durante anos manteve campos de extermínio em plena selva amazônica. Vergonha dessa suposta “civilização”. Vergonha de não ter dito ou feito nada porque, para mim, não há maior pecado que a omissão.
[1] Essa grafia não é reconhecida pelo Vocabulário Oficial da Língua Portuguesa (Volp), mas é utilizada pelo Governo Federal e pela Funai. Além disso, o próprio povo yanomami utiliza a forma com “y” e sem acento agudo. (Disponível em: https://www.clubedoportugues.com.br/ianomami-x-yanomami/. Acesso em: 27 fev. 2023)
[2] https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2021/11/14/terra-yanomami-e-o-retrato-do-abandono-desnutricao-surto-de-malaria-e-frascos-de-dipirona.ghtml. Acesso: 14 fev.2023.
[3] Recomendo que a matéria seja lida na íntegra porque já naquela época a situação nas aldeias yanomamis era calamitosa.
[4] https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2022/04/21/destroem-nossa-floresta-temos-medo-violentos-os-relatos-dos-yanomami-sobre-garimpeiros-na-maior-reserva-do-pais.ghtml. Acesso: 14 fev 2032.